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No último “apêndice” à Balada da Praia dos Cães, o Autor do romance registra sua conversa com o Arquiteto Fontenova, personagem “dissertada” do real, que lhe declara:

“Eu creio que o medo é uma forma dramática de solidão. Uma forma-limite também, porque corresponde à ruptura do equilí- brio do indivíduo com aquilo que lhe é exterior. Mas o pior é que essa ruptura acaba por criar uma lógica de defesa, eu pelo menos apercebi-me disso, a lógica do medo vai estabelecendo certas relações alienadas de valores até que um ponto em que se sente que o medo se torna assassino.”2

A nota editorial do romance refere-se a um dos protagonistas do as- sassinato ocorrido em plena ditadura salazarista, no momento em que se acirravam as tensões políticas do país, no plano interno e no Exte- rior. Uma situação de medo ainda mais acentuada pela contestação ao regime, que mostrava suas fissuras, e respondia a elas com maior re- pressão. Ao mesmo tempo, um momento de solidão, que acabava por impelir os cidadãos mais conscientes para pseudo-soluções, às vezes de um radicalismo de curto fôlego, que acabava por fornecer motivos para uma repressão ainda maior.

1Universidade de São Paulo [Nota dos organizadores].

2José Cardoso Pires, Balada da praia dos cães. 5.aEd. Lisboa: Edições O Jornal, 1983, p. 254.

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A essa altura do depoimento (1980), já a persona Arquiteto possuía um juízo amadurecido dos fatos em que se viu envolvida. Os tempos também já eram outros e será na perspectiva desses novos tempos que José Cardoso Pires era lido em Portugal. No Brasil, já nos finais da década de 1960, ele era estudado na Universidade de São Paulo com uma inclinação similar. Para nós, então estudantes de graduação, ele figurava como um horizonte contra o terror desta margem do Atlântico. Uma luz que nos motivava à resistência política contra o medo, gesto que persistiu na pós-graduação, quando para surpresa de professores conservadores, José Cardoso Pires, ao lado de outros escritores anti- -salazaristas, constituíram matéria crítica para a nossa própria resistên- cia. Os processos de simbolização da resistência portuguesa aponta- vam horizontes, é de se repetir. E já no final dessa década ainda mais, quando a circunscrição universitária alargou-se para o grande movi- mento da sociedade civil que iniciava o grande movimento de redemo- cratização do país.

Compreender criticamente o sentido alienante do “medo” e da cor- relata “solidão”, por ele induzida, viria a contribuir para esse grande movimento social, que já naquela época não aceitava mais a tortura e os desaparecimentos nos porões da ditadura. Se Balada da Praia dos Cães, na mencionada nota editorial, foi ficção dissertada a partir do real, para nós que a líamos na ocasião da posse do primeiro governante civil, em 1985, foi uma forma de a ficção voltar-se para a realidade, de afirmação de sonhos democráticos, ainda que apenas em parte, a essa altura.

Poderíamos falar, nesse sentido, numa solidariedade comunitária que vinha dos escritores portugueses, que a essa altura, paralelamente aos escritores africanos de língua portuguesa, nos visitavam e partici- pavam de nossos congressos e, mesmo, em salas de aula. Eram aqui editados esses autores portugueses e José Cardoso Pires era um desses ícones. Não só: Fernando Mourão, que fundara e dirigia o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo desde os finais dos a-

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nos 60, editava pela primeira vez no país uma série literária de autores africanos, envolvidos nas lutas de libertação nacional de seus países.

Afastava-se, assim, a atmosfera de medo e afirmava-se a solidarie- dade na defesa e promoção da cidadania brasileira. Um desenho seme- lhante aos sopros de sentido libertário que vinham dessas articulações comunitárias que nos ligavam a Portugal e aos países africanos de lín- gua portuguesa. Em nossa universidade, construíram-se formas de re- sistência ao medo ditatorial. Contamos inclusive com a presença de um professor como Vítor Ramos, que dirigira o jornal Portugal Democrá- tico, nesse seu exílio brasileiro. Poderíamos mesmo falar na existência de missões portuguesas, como havíamos tido missões francesas nos iní- cios de nossa universidade com a presença de intelectuais que depois se tornaram referências em seu país de origem. José Cardoso Pires e alguns outros escritores faziam suas embaixadas, contribuindo para a renovação da pesquisa e do ensino da própria Literatura Portuguesa.

José Cardoso Pires já havia rompido com o medo e a solidão dé- cadas antes, já nos princípios de sua trajetória literária. E o desenho de seu gesto poderia ser reatualizado nas campanhas da redemocrati- zação brasileira que se iniciavam. Já não havia sentido no medo que inibia a solidariedade – um espaço construído pela resistência demo- crática. No campo específico do ensino da Literatura Portuguesa no país, o embate era contra os entrepostos brasileiros associados à ideo- logia salazarista de um Portugal rural, religioso e passadiço, que não correspondia ao que ocorria no campo português e muito menos na ci- dade. Ao contrário desse ideológico Portugal, passou-se a estudar suas reais articulações de sentido alienante. Trata-se de desconstruir esses mitos e de provocar a criticidade no leitor, recontando a história ver- dadeira do país, escamoteada pela historiografia oficial. Um gesto do escritor empenhado a ser retomado, então, em nosso país. Da literatura, para a práxis política.

Há, pois, uma maneira de operar no conjunto da obra de José Car- doso Pires, cujo desenho se mostra de grande atualidade, marcada- mente após o crack financeiro de 2008, cujas contas estão sendo pagas

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pelas sociedades, sobretudo as européias. Com a hegemonia financeira, sua forma mentis tornou-se dominante nas últimas décadas do século passado, espraiando-se para o conjunto da vida sociocultural. Tornou- -se senso comum suas inclinações para a desregulamentação, um modo de pensar a realidade avesso ao sistêmico. Agora parece-nos o mo- mento da volta à regulamentação com suas implicações que articulam o mundo econômico aos fatos políticos e socioculturais. De forma aná- loga ao que ocorre no conjunto da obra de José Cardoso Pires.

De novo, o medo, num mundo em que competir virou sinônimo de democracia e humanidade. Se antes ele possuía um lócus definido na figura do ditador a que todos temiam (e ele não deixava de temer a to- dos), agora os atores são muitos, mas o fundamentalismo econômico é similar: o lucro a qualquer custo. Parece-nos um momento de re- levarmos novamente nossas articulações comunitárias supranacionais, mostrando o sentido do gesto de um José Cardoso Pires, sempre em- balado por um sentido de futuro, contrariamente aos muros da tragédia moderna. Uma travessia que também foi a de muitos escritores de sua geração, que souberam se colocar contra o medo, comutando o solitário pelo solidário.

José Cardoso Pires: em busca da