Essa atitude em relação ao setor primário (o governo ainda não adotava, como afirmado anteriormente, a ideia abrangente da noção de agribusiness) começou a mudar em 1996. Em parte por conta das políticas adotadas no âmbito do Plano Real, a balança comercial brasileira havia se tornado deficitária a partir de 1995, tendo o déficit continuado a aumentar em 1996 (gráfico 9):
Gráfico 9: Balança Comercial Brasileira, 1990-1996 (US$ bilhões).
Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2016b.
Observando estatísticas da balança comercial desagregadas pelos três setores clássicos (agricultura, indústria e serviços), o governo começou a atentar para o fato de que o único setor que vinha produzindo saldos comerciais era a agricultura (BRAUN, 2004). Ao mesmo tempo, o setor primário tinha aumentado sua participação relativa nas exportações, passando de 26% em 1993 para 30% em 1995 (REVISTA DE POLÍTICA AGRÍCOLA, abril a junho de 2014). -‐10,0 -‐5,0 0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997
Em decorrência disso, o governo FHC começou, principalmente a partir de 1996, a alterar sua relação com a agropecuária. No começo desse ano, Luiz Felipe Lampreia (1995-2001), ministro das Relações Exteriores, afirmou que exportação de commodities seria a principal prioridade do Brasil (FSP, 10/03/1996).
O próprio presidente FHC tratou dos fundamentos dessa inflexão: “É preciso admitir que mudaram as condições e variáveis macroeconômicas que determinam e condicionam as políticas passíveis de serem aplicadas no campo” (CARDOSO, 1998: 7). E completou: “O Brasil esqueceu que, realmente, a agricultura está inserida nesse novo mundo. A agricultura não é o passado, é o futuro” (CARDOSO, 1998: 7).
Tanto por meio da atuação política dos agentes da concertação de agribusiness quanto por conta do destaque crescente que a categoria que eles defendiam passara a obter na esfera pública, essa inflexão foi gradualmente sendo deslocada para uma modificação da atitude governamental em relação ao “agribusiness”.
Segundo o então ministro da Agricultura, Arlindo Porto (1996-1998), a análise das variáveis macroeconômicas estava levando o governo a reconhecer a importância do “agribusiness”. De acordo com a reportagem do Estadão que trazia essa consideração do ministro, “Único setor da economia com saldo positivo e crescente na balança comercial, o agribusiness é hoje a ‘menina dos olhos’ da equipe econômica” (OESP, 26/05/1997: B7). A Abag começava a alcançar, ainda que de modo incipiente, seu principal objetivo: convencer o Estado da importância do agribusiness e do que seria sua representação política – a própria concertação –, o que significava ela ser considerada (e tratada como) estratégica. O lugar que esse convencimento tinha para o planejamento do governo era anunciado por FHC:
A agricultura e o agronegócio132 nacional têm amplas possibilidades
de desenvolvimento e crescimento no cenário internacional, particularmente a partir do funcionamento da Organização Mundial
do Comércio e da nova regulação que dela se está originando. O
setor agropecuário, desde a produção até a comercialização final,
132 Note-se que o governo, ao começar a reconhecer o agribusiness como estratégico,
mobilizava sua tradução, “agronegócio”. Mais adiante neste capítulo se tratará da passagem de “agribusiness” a “agronegócio” na esfera pública brasileira.
apresenta excelentes perspectivas de ganhos de participação nos mercados mundiais. Hoje, as exportações brasileiras são ainda muito modestas ante a demanda internacional. Existe um enorme espaço a ser conquistado pelo setor privado, e é isto que o meu governo quer apoiar, de modo a reduzir custos, aumentar a produtividade, eliminar barreiras e impedir a competição desleal. O Brasil, com o maior potencial de expansão de área agricultável do mundo, com certeza saberá aproveitar as novas oportunidades (CARDOSO, 1998: 5).
Uma política externa assertiva dentro de uma estratégia ampla de incentivo às exportações para as cadeias produtivas ligadas à agropecuária era demanda de empresas vinculadas à Abag (ABAG, 1994), principalmente daquelas que desenvolviam funções a jusante, a exemplo da Sadia, como se mostrou anteriormente. Em 1993, ano de lançamento daquela entidade, Bittencourt de Araújo e Pinazza publicaram, pela editora Globo, o livro “Agricultura na Virada do Século XX – Visão de Agribusiness” (BITTENCOURT DE ARAÚJO & PINAZZA, 1993). Nele, os autores escreveram que os países mais ricos requeriam a abertura de mercados no Brasil em áreas nas quais eram mais competitivos, mas continuavam protegendo demasiadamente seus produtos de origem agrícola. Seria fundamental, pois,
[...] promover ações mais coordenadas, em parceira com todas as associações que representam os vários segmentos do agribusiness brasileiro, para promover um maior apoio logístico, político e de informações ao nosso Ministério de Relações Exteriores, para que a questão do protecionismo se constitua em prioridade real de nossa Política Externa (BITTENCOURT DE ARAÚJO & PINAZZA, 1993: 15).
A partir dessa mudança no posicionamento do governo, o então ministro Luiz Felipe Lampreia passou a criticar com mais ênfase a proteção dos mercados europeu e da América do Norte contra as commodities agropecuárias brasileiras. “O Brasil tem no agribusiness um de seus principais polos de desenvolvimento, e essa concorrência limita as exportações nacionais”, afirmou ele (OESP, 04/11/1998: B6).
Em visita à Agrishow em 1997, o presidente FHC propôs aos líderes da concertação política do agribusiness que, “[...] juntos, e reafirmo que, juntos, nós vamos encontrar os caminhos viáveis para transformar o Brasil realmente
num grande celeiro para o mundo” (CARDOSO, 1998: 8). Como se pode notar, FHC reeditava a narrativa que posicionava o Brasil como potencial provedor mundial de alimentos.
Um fundamento importante dessa narrativa estava na ideia – falaciosa – de infinitude de terras disponíveis para serem exploradas no Brasil, dado que implicava ignorar a presença, nelas, de pequenos agricultores, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros grupos tradicionais133. Alguns dos primeiros
mobilizadores da noção de agribusiness haviam promovido essa ideia em meados de 1990. Para o então diretor da Esalq, Evaristo Marzabal Alves, a vocação do Brasil seria o agribusiness, confirmando que
[...] o maior patrimônio nacional é a terra, contemplada com as benesses da mãe-natureza que premiou as dimensões continentais do Brasil com possibilidades quase infinitas de explorações agropecuárias, abrigadas sob os climas tropical e temperado (FSP, 10/03/1996: 2-3).
Embora FHC fosse mais cuidadoso em seu discurso, enfatizando antes os ganhos de produtividade da agricultura, o MAPA conectava a narrativa de “celeiro” à existência de novas áreas a serem exploradas. Segundo o secretário- executivo desse ministério, Ailton Barcelos Fernandes, “O Brasil dispõe de 80 milhões de hectares agricultáveis nos cerrados, ainda virgens e por serem explorados, que representam um potencial para aumentar em nove vezes a produção de soja e milho” (FERNANDES, A. B., 1998a: 12)134.
Concomitantemente, o novo presidente da Abag, Luiz Garcia (1996-1999), contribuía com essa visão, defendendo, no I Congresso de Agribusiness, organizado pela Sociedade Nacional de Agricultura, em 1997, que 64% das terras brasileiros teriam potencial para serem usadas pela agricultura (GARCIA, 1997). Nesse mesmo ano, muitos territórios indígenas, como o de Marãiwatsédé, estavam invadidos por não-índios e passavam por intenso
133 A expressão “celeiro do mundo” constava da esfera pública brasileira desde, pelo menos,
o começo do século XX, como mostra uma carta de José Antunes dos Santos, proprietário português de empresa que trazia imigrantes para a lavoura cafeeira paulista. Santos afirmava, então, que o Brasil teria a chance de “[...] constituir o primeiro celeiro do mundo”. Além disso, a ideia de celeiro vinha acompanhada, na escrita dele, do que seria um trunfo do país, “[...] os inexgottaveis recursos naturaes de que é dotado” (OESP, 28/02/1903: 2).
desmatamento. Na visão que o MAPA e a Abag avançavam, tratava-se de cerrados virgens com potencial para cultivo.