Além da narrativa vinculada à provisão internacional de alimentos, a fala de Cardoso na Agrishow enfatizava a palavra “juntos” não por acaso. No ano de 1996, o presidente da República criara o Fórum Nacional da Agricultura (FNA), espaço de articulação entre o governo e empresários, congregando diversos atores da concertação do agronegócio e, nesse processo, contribuindo para que ela passasse a ter outra nucleação política. Como a Abag tinha recentemente perdido Bittencourt de Araújo, falecido no começo de 1996, havia um vácuo de liderança na concertação. Esse vácuo foi ocupado pelo FNA, que passou a ser o novo núcleo a concertação.
Instalado em 5 de setembro de 1996, o Fórum tinha dois coordenadores, um do setor público e outro do setor privado, e 34 grupos temáticos, metade deles voltados às cadeias produtivas e a outra parte direcionada aos instrumentos de política agrícola e outros temas, como crédito, defesa, comercialização, tributação, cesta básica, insumos à produção e agricultura familiar (MAPA, 1998). Ao criar o FNA em 1996, o presidente da República trazia para relações mais sistemáticas e institucionalizadas as diversas representações das cadeias ligadas à agropecuária, abrindo, assim, um canal de manifestações ao mesmo tempo político e técnico:
O FNA foi criado como um instrumento para sistematizar o pensamento estratégico voltado para o aprimoramento do agronegócio nacional, órgão do qual possam sair propostas que tenham abrangência geográfica e representatividade dos interesses dos agentes econômicos, consumidores e trabalhadores. O objetivo é a remoção de obstáculos à inserção no cada vez mais competitivo mercado mundial e o melhor atendimento do nosso cada vez mais exigente consumidor. É preciso encontrar fórmulas que permitam um melhor aproveitamento do extraordinário potencial de crescimento ainda não explorado na agricultura. O Fórum ilustra, ainda, o empenho do meu governo em mudar o modo de encarar alguns dos temas fundamentais do Brasil [...] (CARDOSO, 1998: 6).
O FNA era presidido pelo ministro da Agricultura, tendo como seu coordenador dos agentes estatais o secretário-executivo desse ministério. Roberto Rodrigues, como afirmado anteriormente, coordenava os agentes privados. A comissão organizadora tinha a seguinte composição relativa de entidades, como mostra o gráfico 10.
Gráfico 10: Composição relativa de entidades integrantes da comissão organizadora do
Fórum Nacional da Agricultura em 1996, por segmento.
Fonte: Ministério da Agricultura, 1998 (elaboração do autor).
Estavam representadas na comissão organizadora: Abag, Abia, CNA, SRB, OCB, Conselho Nacional do Café (CNC), Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F)135, Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Fiesp, Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), além da Contag e
135 Atualmente B3. A presença dessa instituição no âmbito da concertação guardava estreita
relação com o papel do mercado financeiro nas cadeias produtivas do agronegócio.
Agropecuária 54% Jusante 8% Abag 8%
Bancos e bolsas 15%
Outros 15%
da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado de São Paulo (Fetaesp)136 (MAPA, 1998).
Embora a Abag fosse participante do FNA, é interessante perceber que as composições deste Fórum e daquela organização eram muito distintas quando comparadas entre si. Nesse sentido, cabe salientar que o fórum era constituído por entidades, e não por empresas, que cada vez mais predominariam na Abag.
No FNA, a participação de representantes da agropecuária era muito maior: 54% (MAPA, 1998), ante 32% na Abag (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1993). Havia, ainda, somente 8% referente a segmentos a jusante no FNA, enquanto a Abag tinha apresentado 23% “depois da porteira”. A Abag continha, ainda em 1993, 16% de participação relativa de segmentos a montante da agropecuária, o que não se notava na comissão organizadora do FNA. Apenas uma entidade “antes da porteira”, a Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem), havia feito parte do Fórum, mas não em sua comissão organizadora, e sim como coordenadora do grupo temático de insumos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1993;; MAPA, 1998).
O aumento da participação relativa das entidades do patronato rural no núcleo da concertação, com a inserção de agentes como a CNA e a SRB, que não haviam composto o Conselho Administrativo da Abag, quando de sua inauguração, criava condições para Roberto Rodrigues afirmar que:
O elo principal da cadeia produtiva é o produtor rural porque dele depende o sucesso dos produtores de insumos e das agroindústrias. Assim, é evidente a necessidade de reorganização institucional do agronegócio nacional com foco no produtor rural (1998: 20).
Por um lado, essa maior presença relativa de atores ligados diretamente à agropecuária promoveu a mudança de atitude do núcleo da concertação em relação à questão agrária, como se mostrará a seguir.
Por outro lado, a despeito dessa predominância, e do próprio nome (Fórum Nacional da “Agricultura”), o FNA era caracterizado por uma perspectiva
de agribusiness, como argumentava FHC ao enfatizar que ele contém “[...] a visão integrada das cadeias produtivas, identifica ineficiências e facilita a harmonia entre os agentes econômicos” (CARDOSO, 1998: 5). As propostas do Fórum, ademais, eram baseadas na noção avançada pelo grupo da Agroceres.
Havia no FNA, também diferentemente da Abag, a representação de duas entidades relacionadas aos trabalhadores rurais (MAPA, 1998). A contribuição delas foi muito frágil, pois os pleitos da FNA no âmbito social eram mais conservadores que os da Abag em 1993 e 1994 (ABAG, 1993, 1994). Cabe destaque, ainda, para as participações da Abia e da Fiesp no Fórum, representando, fundamentalmente, indústrias a jusante da agricultura.
Após dois anos de trabalho, o FNA entregou, em 2 de setembro de 1998, os resultados de suas discussões, chamados de “As Dez bandeiras do Agronegócio”. As justificações estavam baseadas nas promessas de aumentar as exportações e a oferta interna de alimentos, ampliar a geração de renda e criar mais empregos (MAPA, 1998)137.
O documento síntese consolidava o uso de estatísticas macroeconômicas pela concertação, ao afirmar que
[...] o agronegócio brasileiro movimentou no ano passado US$ 320 bilhões, cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Nele, estão envolvidas atividades que abrangem desde o plantio até a estocagem e distribuição, passando pela produção de máquinas e implementos agrícolas. O setor também é um grande gerador de divisas. A balança comercial agrícola no ano passado proporcionou um superávit de US$ 11,8 bilhões. A contribuição do agronegócio foi fundamental para a geração de emprego e renda para a economia brasileira (MAPA, 1998: 23).
As dez bandeiras anunciadas pelo Fórum eram as seguintes (MAPA, 1998: 22):
1 - Financiamento do agronegócio;;
2 - Modernização da comercialização interna e externa;; 3 - Desoneração e simplificação tributária;;
4 - Redução do custo Brasil;; 5 - Desenvolvimento tecnológico;;
6 - Modernização da defesa agropecuária;;
137 A taxa de desemprego vinha crescendo no país, passando de 6,1% em 1995 para 9% em
7 - Sustentabilidade da agricultura;;
8 - Pequeno produtor em regime de agricultura familiar;; 9 - Política fundiária;; e
10 - Coordenação institucional do agronegócio.
No documento, o FNA encorajou a repressão às “invasões” de terras. A preponderância de entidades do patronato rural, como a CNA e a SRB, e a liderança de Roberto Rodrigues, tinham influenciado essa mudança em relação ao posicionamento da Abag de apoio à reforma agrária, quando de sua fundação (ABAG, 1993, 1994;; MAPA, 1998)138.
O FNA questionou, além disso, a legislação trabalhista. Essa contestação respondia, em parte, à criação, em junho de 1995, por meio do Decreto Nº 1.538, de 27 de junho de 1995, do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf).
Em outra direção, o Fórum incentivou a política agrícola específica para a agricultura familiar, com apoio ao recém-nascido Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf, Resolução nº 2191 do BCB, de 24 de agosto de 1995, e Decreto Nº 1.946, de 28 de junho de 1996), à cooperativização e à sua aproximação com as agroindústrias (MAPA, 1998).
O FNA adotava uma proposta mais aguerrida na política exterior, com demandas de melhor promoção comercial, redução de barreiras ao livre comércio, proteção comercial contra dumping e subsídios na origem, participação direta de agentes privados do agronegócio nas negociações internacionais e formação, no âmbito da administração pública, de especialistas no tema (MAPA, 1998).
Paralelamente aos pleitos relacionados às melhorias da política agrícola (crédito, preços mínimos, seguro agrícola, defesa e extensão) e de infraestrutura, nota-se, no documento do FNA, a articulação entre interesses da agropecuária com representantes de funções a montante e a jusante.
Na convergência com os segmentos a montante (os quais, conforme indicado, não detinham representação na comissão organizadora, mas a
138 Há, no capítulo 7, que trata especificamente das controvérsias em que a concertação foi
inserida, uma discussão mais aprofundada de seu posicionamento e sua atuação em relação à reforma agrária.
coordenação do grupo temático de insumos), essa aliança pode ser verificada nas propostas de alteração de regulações relacionadas aos insumos agropecuários e naquelas de desoneração e simplificação da incidência tributária sobre máquinas, equipamentos e implementos agrícolas. Na aproximação com as indústrias a jusante, o FNA solicitava a redução de tributos sobre a cesta básica e desonerações de produtos utilizados pelas agroindústrias (MAPA, 1998).
O Fórum também resgatava uma sugestão clássica do agronegócio no âmbito da educação: a de adequar a formação das universidades às necessidades técnicas e gerenciais do agronegócio. Ao mesmo tempo, insistia- se na institucionalização de um espaço permanente de discussão e articulação entre os atores públicos e privados relacionados ao agronegócio.
Em seu diário, publicado anos depois, o ex-presidente FHC escreveu:
Participei da cerimônia da entrega de propostas do Fórum Nacional
da Agricultura, havia muita vibração, foi uma coisa importante. Os
jornais quase não noticiaram, mas é um grande acordo de vários segmentos da agricultura a respeito da política agrícola e agrária (CARDOSO, 2016: 686).