Em meados da década de 1980, cenário de crise fiscal no Brasil, o grande elemento catalisador do processo de industrialização da agropecuária, o crédito
rural subsidiado, perdera força. Concomitantemente, a questão agrária vinha reconquistando destaque com a retomada democrática. Em 1984, tinha sido fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e, em abril de 1985, criado o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário. Em outubro do mesmo ano, surgiu o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que previa, originalmente, assentar um milhão e quatrocentas mil famílias até 1989 (GOVERNO FEDERAL, 1985).
A retomada, em intensidade, das movimentações para responder à questão agrária causava, duas décadas após o golpe militar, bastante preocupação à elite atuante em relação à agricultura. No momento, seus atores encontravam-se fragmentados sob o aspecto da atuação política relacionada a temas que diziam respeito, ao mesmo tempo, ao conjunto das cadeias produtivas. Com a constituição dos CAIs, durante a ditadura, a relação desses setores com o Estado passava, principalmente, por representações de produtos e multiprodutos e das grandes cooperativas (GRAZIANO DA SILVA, 2014;; BRUNO, 2015;; CARVALHO, 201799). Em suma, não havia entidade capaz de
elaborar e transmitir um discurso unificado do CAI.
À época, a CNA100, entidade criada em 1951, e reconhecida em 1964
como entidade sindical representante dos interesses (fundamentalmente patronais) da agropecuária, estava, em larga medida, inoperante (GRAZIANO DA SILVA, 2014). Por um lado, essa situação era tributária do próprio processo de fragmentação política aludido acima.
Por outro lado, apesar de ter abrangência nacional – baseada em federações estaduais de agricultura e sindicatos municipais – e de ser a entidade do patronato rural com mais recursos financeiros, a CNA enfrentava sérias dificuldades em obter legitimidade na representação do setor agropecuário junto ao governo, que era visto como grande influenciador de suas estratégias.
99 Luiz Carlos Corrêa Carvalho, presidente da Abag, entrevista ao autor em 30 de junho de
2017.
100 Em 2001, a entidade passaria a chamar-se Confederação Nacional da Agricultura e
Essa falha de representação da CNA durante a renovação das demandas por reforma agrária foi o elemento fundamental que deu impulso à criação da União Democrática Ruralista (UDR) em maio de 1985 (GRAZIANO DA SILVA, 2014). Surgindo principalmente ligada a pecuaristas (a maior parte deles de produção extensiva) preocupados com o PNRA, a UDR ganharia terreno com a politização da questão agrária, começando a conquistar, inclusive, representatividade em setores mais modernos e produtivos da agropecuária (GRAZIANO DA SILVA, 2014).
O discurso da UDR era agressivo – principalmente no que se relacionava à defesa da propriedade da terra, tida como valor absoluto (MENDONÇA, 2008;; BRUNO, 2015) – e ousado – no que se referia à tentativa de posicionamento de sua imagem como a de uma associação “[...] que mobilizou e mobiliza toda a classe produtora neste país, e vem mostrando competência para isso”, como disse Ronaldo Caiado, maior líder da entidade, no Programa Roda Viva, da TV Cultura, em 6 de outubro de 1986.
Em grande medida por reação à ação da UDR (MENDONÇA, 2008), foi criada, em maio de 1986, a Frente Ampla da Agropecuária Brasileira (FAAB). A FAAB era liderada por Roberto Rodrigues e Flávio Teles de Menezes, respectivamente presidentes da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e da Sociedade Rural Brasileira (SRB).
Nascida em 1969, a OCB exercia a representação do sistema cooperativista. Embora a entidade abrangesse em sua atuação um amplo leque de temas do cooperativismo, os assuntos ligados à agricultura eram nela muito relevantes, razão pela qual a OCB tinha (e tem) forte atuação política nesse tema. Ademais, a organização apresentava acentuada inserção, por meio de seus quadros, em postos no MAPA (LAMOUNIER, 1994;; MENDONÇA, 2008;; RODRIGUES, 2017b101).
A SRB, por sua vez, era mais tradicional que a OCB, tendo sido fundada em São Paulo em 1919 por representantes da cafeicultura. Com o passar das décadas, e o gradual declínio do poder dos empresários do café, a “Rural”, como é chamada internamente, passara a ser influenciada por outros
interesses, a exemplo de grandes pecuaristas e agroexportadores, que, contudo, ainda permaneciam mais concentrados no estado de São Paulo, a despeito de investirem fortemente em outros estados, como o Paraná. Teles de Menezes era um dos líderes dessa nova fase. Mantida por doações voluntárias, a SRB tinha bem menos recursos financeiros que a CNA e menor capacidade de mobilização política que a OCB. Pouco inserida com quadros no âmbito no Estado, ela dependia da legitimidade e inserção de seus líderes em arenas dominantes da esfera pública (LAMOUNIER, 1994;; MENDONÇA, 2008;; RODRIGUES, 2017a)102.
O grande destaque público da FAAB na esfera pública deu-se por meio de seu lobby pela recuperação de elementos da política agrícola dos anos de ouro da industrialização da agricultura (1967-1979) (ACERVO HISTÓRICO DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 2017). A frente pressionava o governo argumentando que havia queda de renda do produtor rural e reclamando da política de crédito, do aumento do preço relativo dos insumos e máquinas e da política de controle dos preços de alimentos. Nessa ação sobre o Estado, a entidade disputava espaço com a UDR, que, como mencionado, tinha atuação pública mais radicalizada (ACERVO HISTÓRICO DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 2017)103.
Essa animosidade entre a FAAB e a UDR foi, contudo, bastante diminuída quando se tratou de fazer contraposição, no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, aos anseios sociais por redistribuição agrária no país104. De fato,
as duas entidades agiram conjuntamente nessa direção, pressionando e assessorando o bloco de parlamentares ligado ao tema105 nas argumentações e
estratégias contrárias aos planos das representações progressistas, como a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), a Contag, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dentre outros órgãos, que propunham uma redistribuição fundiária com
102 Roberto Rodrigues, entrevista ao autor em 6 de junho de 2017.
103 Sobre as disputas entre a FAAB e a UDR na Constituinte, ver Mendonça (2008).
104 Conforme analisou José Gomes da Silva (1989), a Constituição Federal promulgada em
1988 (CF-88) representou um retrocesso para as frentes progressistas que queriam uma redistribuição de terras rápida e ampla.
105 Vale ressaltar, no entanto, que houve alternância, entre essas entidades, de influência
amplitude e drasticidade (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1988;; GOMES DA SILVA, 1989).
Nesse sentido, destaca-se que, no ambiente de discussões da Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária da Constituinte, o tema agrário, muito mais que o agrícola, foi primordial. Um dado quantitativo demonstra isso: enquanto se utilizou, na referida subcomissão, a expressão “reforma agrária” 1.478 vezes, “crédito rural” apareceu em 36 momentos. Para “insumos”, foram 33 menções;; para “comercialização”, 29;; para “preços mínimos”, 12;; e para “seguro”, 33. “Agribusiness”, por sua vez, foi mencionado em apenas três ocasiões, e “Complexo(s) Agroindustrial(is)”, em nenhuma (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1988)106.
A razão principal desse foco é que, diante da movimentação progressista, a FAAB decidiu (articulada à UDR e à bancada ruralista) executar uma estratégia principal de resistência à reforma agrária (PAOLINELLI, 2017). Nesse processo, a política agrícola foi instrumentalizada pelo campo conservador para defender limites à referida reforma agrária, ou seja, o “tamanho” dessa reforma deveria estar limitado pela possibilidade de existência de apoio agrícola aos novos assentamentos (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1988). Essa operação da agricultura patronal não era nova, como Caio Prado Júnior havia indicado na década de 1960 (PRADO JÚNIOR, 1960, 1962).
A outra estratégia, voltada à política agrícola em si, seria tanto pressionar o governo Sarney para que atendesse, tempestivamente, a demandas como melhorias das condições de crédito e dos preços mínimos (FAAB, 1987a), dentre outros pleitos, quanto garantir a inclusão de itens fundamentais daquela política na CF-88, programando a elaboração de lei específica sobre o tema. Esses elementos constam do artigo 187 da Magna Carta e do artigo 50 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias107.
106 Cálculo realizado utilizando sistema informacional de contagem de termos a partir da
transcrição da totalidade dos debates ocorridos na Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1988).
107 Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a
participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:
A FAAB, especificamente, tinha dentre seus principais quadros Alysson Paolinelli. Eleito deputado constituinte pelo PFL, ele foi o primeiro líder do grupo multipartidário, formado logo na sequência da instalação da Assembleia, que viria a ser conhecido como a bancada ruralista. Completavam a liderança da entidade informal Rodrigues e Teles de Menezes, que participaram das movimentações contra a reforma agrária na Constituinte na condição de articuladores políticos e de convidados para suas audiências (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1988).
Em sua atuação no âmbito da Constituinte, a Frente Ampla da Agropecuária Brasileira produziu um resultado inovador, o de aproximar associações que tinham representatividade na agricultura – como a CNA (cuja presidência Alysson Paolinelli conquistaria no final de 1987), a OCB e a SRB – de algumas entidades de segmentos a montante e a jusante da agropecuária. Roberto Rodrigues, principal líder da FAAB, em diversas oportunidades enfatiza essa aproximação, caracterizando-a como o embrião de uma articulação política do agribusiness no Brasil:
A Frente Ampla tinha como objetivo básico unificar os discursos e as reivindicações em termos de uma política agrícola do complexo agroindustrial, tanto que a frente teve uma característica única: foi a primeira vez que o setor convocou para as discussões de política agrícola entidades que não eram agrícolas, como a Anda, Andef, Abrasem, Abiove, Abia, Febraban. Na verdade, a Frente Ampla, que era algo informal, se constituiu na semente de uma organização de
agribusiness no Brasil (Agroanalysis, agosto de 1996: 1).
A FAAB teve méritos pela aproximação com setores industriais e de serviços. Esse avizinhamento, contudo, respondia antes a necessidades de
II - os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização;; III - o incentivo à pesquisa e à tecnologia;;
IV - a assistência técnica e extensão rural;; V - o seguro agrícola;;
VI - o cooperativismo;;
VII - a eletrificação rural e irrigação;; VIII - a habitação para o trabalhador rural.
§ 1º Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agro-industriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.
Art. 50 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Lei agrícola a ser promulgada no prazo de um ano disporá, nos termos da Constituição, sobre os objetivos e instrumentos de política agrícola, prioridades, planejamento de safras, comercialização, abastecimento interno, mercado externo e instituição de crédito fundiário.
ordem econômica e política. Isso porque, pelo aspecto econômico, a crise do modelo público de crédito rural vinha paulatinamente transformando setores a montante e a jusante em financiadores da agricultura;; pelo lado político, os debates que questionavam, no âmbito da questão agrária, o direito à propriedade como absoluto tinham contribuído para aproximar alguns representantes dos outros setores em relação aos líderes do patronato rural, por temerem desdobramentos negativos a seus interesses (GOMES DA SILVA, 1989). Esse último aspecto mostra, consequentemente, que a luta contra a reforma agrária tinha desempenhado um papel relevante na aproximação intersetorial, embora, é claro, os setores industriais e de serviços fossem, em geral, menos refratários à ideia da reforma quando comparados aos ruralistas.
Ademais, a hegemonia na condução das pautas estava, sem dúvidas, no setor agropecuário. De fato, a atuação das entidades representantes de funções a montante e a jusante da agropecuária não tinha nada perto de protagonismo na FAAB, muito pelo contrário, elas raramente apareciam na esfera pública nessa condição de atuantes ao lado de entidades como a OCB e a SRB. Tampouco havia, na FAAB, propostas de maior coordenação no âmbito das cadeias produtivas, de enxergar o setor como um todo, e pouco se usavam noções que poderiam ajudar nesse sentido, como a de agribusiness ou a de CAI. Existia, ainda, a vocalização pública, por integrantes da Frente Ampla, de conflitos distributivos nas cadeias produtivas (em direta oposição ao que a Abag faria futuramente). Pedia-se controle sobre os preços dos insumos agropecuários e criticavam-se empresas processadoras por derrubarem preços de itens agrícolas, por exemplo (FAAB, 1987b).
Nas raras ocasiões em que entidades representantes de funções a montante ou a jusante atuavam na esfera pública com a FAAB, como no caso da articulação dessa frente com a Abiove, os pleitos davam-se por interesses específicos ao ramo de atuação da referida associação, e não por demandas que tivessem maior aceitabilidade entre todas a cadeias (OESP, 03/02/1988). Não havia, portanto, uma orquestração intersetorial que avançasse interesses transversais caros a todos os segmentos nela envolvidos, papel que somente a Abag começaria a desempenhar a partir de sua criação, em 1993.
A FAAB não era, por conseguinte, uma entidade informal do agribusiness, mas da agropecuária. O ambiente de diálogo que ela havia criado, contudo, mostrar-se-ia fundamental para gerar as condições políticas para a criação da Abag. Conforme se analisará no próximo capítulo, foi do encontro da FAAB – enfraquecida e sem direção estratégica clara após a Constituinte – com o projeto político-econômico de agribusiness da Agroceres que foram dadas as condições para a criação da Abag, entidade formal que surgiu com o desafio de coordenar e administrar os interesses dos três grandes subconjuntos abarcados na noção de agribusiness: agropecuária e segmentos de outros setores relacionados a ela.