tanto econômica quanto política do setor primário, ao passo que a indústria ganhava projeção.
No final de 1964, a CNA, há pouco reconhecida pelo Governo Federal – por meio do Decreto Nº 53.516, de 31 de janeiro de 1964 – como entidade sindical representante dos interesses econômicos da agropecuária, anunciou a novidade da noção em sua edição “Seleções Agrícolas”. Segundo a entidade, um novo termo havia sido criado nos Estado Unidos para nomear as modificações relacionadas à agricultura. Agribusiness exprimiria “não só o ato de arar e semear, mas, também, o de adquirir materiais e equipamentos, bem como o de transformar e distribuir os produtos do campo” (CORREIO DA MANHÃ, 14/11/1964: 12;; DIÁRIO CARIOCA, 15/11/1964: 6;; OG, 05/12/1964: 9). Nesse sentido, informava a CNA, o neologismo trataria da crescente interdependência entre a agropecuária e segmentos a montante e a jusante dela, em processo que estaria alterando drasticamente o meio rural norte- americano, com a diminuição dos trabalhadores rurais e o aumento da produtividade82.
2.1 Disputas políticas e industrialização da agricultura
A partir dos anos 1950, houve um intenso debate no Brasil que, relacionado mais diretamente às questões agrária e agrícola, tratava do caráter do desenvolvimento e da necessidade (ou não) de mudanças estruturais no país. Essa controvérsia foi, no entanto, interrompida pelo Golpe Militar de 1964.
Entre o final da década de 1950 e o começo da seguinte, tinha ocorrido uma ascensão das lutas por reforma agrária no Brasil. Correspondendo à essa movimentação no campo, uma série de analistas passaram a tratar mais detidamente desse tema, e também de assuntos de política agrícola. Esse debate envolveu diversos atores, seja de partidos, das universidades ou da
82 A percepção dessas modificações entre os pensadores brasileiros, vale registrar, teve em
Ignácio Rangel um de seus pioneiros. Em 1955, mesmo ano em que Davis e Goldberg criavam a noção de agribusiness, Rangel chamava atenção para o processo de especialização que transferira gradualmente funções que antes estavam concentradas na fazenda para fora dela (RANGEL, 2004).
Igreja, tendo exercido influência importante sobre os planos econômicos lançados nas décadas de 1960 e nos rumos dos distintos governos.
A disputa central entre esses analistas esteve em torno de qual política pública deveria ser priorizada, a agrária ou a agrícola, com desdobramentos sobre o público a ser focalizado83. Isso porque aqueles que advogavam pela
precedência da primeira enxergavam as populações rurais subalternas como o foco da ação nesse sentido;; os que defendiam a segunda tomavam a posição dos grandes e médios empresários.
Destacam-se, do lado da defesa de uma política agrária, Caio Prado Júnior e Alberto Passos Guimarães, ambos ligados ao Partido Comunista Brasileiro84;; do lado da priorização da política agrícola, chama-se atenção para
os textos de Antônio Delfim Netto, pesquisador da USP85.
Caio Prado Júnior criticava a concentração da propriedade fundiária no Brasil, argumentando que, além de essa situação condenar milhões de habitantes da área rural a viverem de forma miserável, ela criaria uma super- oferta de trabalho no campo, dificultando a melhoria na situação dos trabalhadores e melhores salários. Por desdobramento, essa concentração seria um empecilho para o desenvolvimento econômico e social do país. Para lidar com a questão, que denominava de agrária, Prado Júnior propunha a combinação da redistribuição fundiária com a extensão de direitos sociais e trabalhistas aos empregados rurais (PRADO JÚNIOR, 1960, 1962).
Esses seriam os objetivos caros ao trabalhador rural, não devendo ser confundidos com a perspectiva favorável ao patronato rural, que consistiria em tratar os problemas advindos da concentração de terras como elemento de segunda ordem, derivados, apenas, dos desafios de política agrícola, que seriam mais importantes para o país (PRADO JÚNIOR, 1960, 1962).
83 Baseando-se em José Graziano da Silva (1980), entende-se que, enquanto a questão
agrícola diz respeito aos aspectos atrelados às mudanças na produção agrícola em si (o que, onde e quanto se produz), a questão agrária está relacionada às transformações nas relações de produção (os modos como se produz).
84 PCB.
85 Houve vários outros atores relevantes nesse debate, a exemplo de Ignácio Rangel. Para
Muitos anos depois, como se analisará adiante nesta tese, um dos argumentos da FAAB durante os debates da Assembleia Constituinte em relação à reforma agrária foi justamente esse, qual seja, inseri-la como elemento menor, condicionada à política agrícola, pensada na linha estratégica de apoio aos grandes empreendimentos no campo (GOMES DA SILVA, 1989).
Alberto Passos Guimarães argumentava, desde pelo menos o começo da década de 1960, que os latifúndios eram elemento central na manutenção das péssimas condições de trabalho e de salários extremamente baixos no Brasil, além de implicarem barreira ao aumento da produção e da produtividade (à exceção de algumas culturas), com derivações negativas para o desenvolvimento do mercado interno. Diante desse diagnóstico, a reforma agrária era a solução central advogada por ele para fazer avançar a agricultura e melhorar o nível de vida da população (PASSOS GUIMARÃES, 1968)86.
Essas análises guardavam alguns aspectos em comum com o Plano Trienal, tornado público em dezembro de 1962 sob liderança de Celso Furtado, ministro do Planejamento de João Goulart (Partido Trabalhista Brasileiro, 1961- 1964)87. O referido plano apontava que a concentração fundiária consistiria em
obstáculo à racionalidade na exploração agrícola, tornando a agropecuária menos apta a responder aos estímulos do desenvolvimento nacional. Embora chamasse atenção para a recente instalação de fábricas de máquinas agrícolas no país (a partir de 1961, fundamentalmente) e para a importância do apoio à criação de infraestrutura de armazenagem, o plano denotava certa reticência em relação aos grandes empreendimentos. Ao mesmo tempo, defendia uma ação robusta de reforma agrária e uma política agrícola direcionada aos produtos consumidos no mercado interno (GOVERNO FEDERAL, 1962).
Desafiando o diagnóstico do Plano Trienal, Delfim Netto afirmava não ser possível demonstrar que, por conta de suposta rigidez das respostas da agricultura à demanda por seus produtos, os preços dos alimentos teriam crescido mais rapidamente que os demais preços da economia (DELFIM NETTO, 1962, 1963).
86 Acerca das diferenças entre os pensadores do PCB sobre a questão agrária, ver Santos
(2008).
Segundo o pesquisador da USP, seria contraproducente promover uma grande distribuição em áreas onde a produtividade estivesse satisfatória, sendo mais importante, nesses casos, como o de São Paulo, um maior apoio aos produtores em termos de política agrícola. A reforma agrária somente deveria ser considerada prioritária, segundo ele, em alguns lugares onde houvesse indícios claros de baixa produtividade. Mesmo nesses locais, como na Zona da Mata nordestina, ele enfatizava que a reforma deveria ser feita de forma paulatina e comedida, envolvendo avanços tanto na área agrícola quanto na industrial (DELFIM NETTO, 1962, 1963).
Cabe ressaltar, ainda, que Delfim Netto colocava maior ênfase, durante esses debates, nas relações de interdependência entre a agricultura e a indústria para um projeto de desenvolvimento, e na relevância de um planejamento que envolvesse políticas relacionadas a (1) máquinas e insumos para a agropecuária, (2) renda para o produtor (fundamentalmente patronal), (3) armazenagem e (4) transporte, além de atribuir centralidade ao papel da (5) pesquisa (DELFIM NETTO, 1962, 1963).
O debate sobre a primazia da reforma agrária ou do aprofundamento da modernização da agricultura foi interrompido em março de 1964 pelo golpe militar que derrubou o presidente Goulart. Os esforços da sociedade civil e do governo pela reforma agrária foram uma das razões desse episódio (AGÊNCIA SENADO, 25/03/2014). Nesse contexto, as proposições de Delfim Netto encontraram ambiente propício para tornarem-se políticas públicas.
Após o governo de transição de Castello Branco (ditadura militar, 1964- 1966), pode-se notar no Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), lançado em junho de 1967, uma primeira formulação mais bem lapidada de política agrícola levando em consideração as relações da agricultura com as funções a montante e a jusante dela e orientada para os grandes empresários (rurais e urbanos) (GOVERNO FEDERAL, 1967).
No PED, planejou-se, além do fortalecimento do crédito rural, o apoio decidido à intensificação do uso de insumos e máquinas, a montante, e à modernização das etapas de armazenamento, transporte, agroindustrialização e comercialização, a jusante. Como ministro da Fazenda do governo de Artur da Costa e Silva (ditadura militar, 1967-1969), Delfim Netto teve centralidade no
desenho e na operacionalização dessa estratégia (GOVERNO FEDERAL, 1967).
Foi, portanto, durante a ditadura militar (1964-1985) que uma noção mais sistêmica para a agricultura e as funções a ela relacionadas entrou para o planejamento governamental no Brasil. Com efeito, durante esse regime, e, especialmente, a partir do PED, o processo de modernização da agropecuária – ou seja, a transformação de sua base técnica – atingiria sua fase de industrialização. Adota-se, nesta tese, a proposição de Kageyama et al. (1990) de que a industrialização da agricultura é momento no qual a indústria passa a assumir o comando das mudanças da base técnica agrícola.
Esse processo de industrialização, por sua vez, havia tido como fator condicionante a internalização, no país, dos setores de máquinas, equipamentos e insumos para a agropecuária, o que permitia que essa fase do processo de modernização da agricultura deixasse de depender da capacidade de importar. A agricultura tornou-se cada vez mais, nesse sentido, um ramo da produção, como compradora de insumos e máquinas e vendedora de produtos agropecuários para a indústria de transformação.
É importante ter em consideração que o PED tinha vários aspectos de seu planejamento agrícola que estavam em consonância com os anseios do governo norte-americano. A despeito de a política exterior de Costa e Silva ser nacionalista (BANDEIRA, 1989), havia afinidades entre os anseios dos governos dos Estados Unidos e do Brasil que permitiam elevadas concordâncias quanto a esse tema. Em abril de 1967, poucos meses antes do lançamento do PED, os Chefes de Estado dos países das Américas haviam se encontrado em Punta del Este, Uruguai, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Sob liderança de Lyndon Johnson, a declaração final conjunta dos presidentes falava do empenho a ser adotado para melhorar os sistemas de crédito e apoiar a criação de indústrias de fertilizantes, pesticidas e máquinas, a montante, e de beneficiamento, comercialização, armazenamento, transporte e distribuição de produtos agrícolas, a jusante (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1967).
Em função de incentivos fiscais do governo brasileiro, corporações norte- americanas, dentre empresas de outros países, em especial as relacionadas
com funções a montante da agropecuária, planejavam transferir plantas, a maioria delas obsoletas, para o Brasil (GRAZIANO DA SILVA, 1996). Por outro lado, havia maior abertura a capitais estrangeiros que investiam em áreas a jusante da agropecuária. Esses capitais atuariam no país frequentemente associados aos nacionais (SORJ, 2008). Por meio de uma amostra realizada em 1977 (SAMPAIO apud SORJ, 2008), constatou-se que 67% das empresas estrangeiras consideradas agroindustriais haviam sido instaladas no país a partir dos anos 1960.
Não por acaso, foi durante essa fase da industrialização da agricultura que a noção de agribusiness começou a ser mais mobilizada no Brasil. Os grandes promovedores do termo foram, além do governo dos Estados Unidos, entidades privadas e universidades daquele país. De forma similar à nova vulgata planetária, como “globalização” e “flexibilidade”, que Bourdieu e Wacquant (2000) analisaram na virada nos anos 1990 para os 2000, os EUA estavam universalizando, por meio da ideia de agribusiness, uma particularidade atrelada à experiência histórica de seu país.
É fundamental registrar que o processo de industrialização da agricultura, embora tenha aumentado a produtividade e a produção agrícolas, inclusive para o mercado interno (GRAZIANO DA SILVA, 2014), teve uma série de efeitos muito prejudiciais às minorias rurais, como desterritorializações de grupos étnicos, expropriação de terras de agricultores e aumento da taxa de exploração dos trabalhadores agrícolas (GRAZIANO DA SILVA, 1982;; PALMEIRA, 1989;; CARNEIRO DA CUNHA, 2012). Por essa razão, o período ficou conhecido pelos analistas sociais como “modernização conservadora”88.