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Apesar das continuidades, há distinções entre o modelo escolar dos CEE [PROCENTRO] e as EREM/ETE [PEI]. A principal reside no formato de gestão por concessão, inspirado na versão charter, que caracteriza os CEE. Neste a escola é abertamente entendida e organizada como uma empresa, como demonstra o trecho abaixo extraído de um dos manuais de operacionalização de gestão do Procentro:

A gestão de uma escola em pouco difere da gestão de uma empresa. Na realidade, em muitos aspectos, a gestão de uma escola apresenta nuances de complexidade que não se encontram em muitas empresas. Assim sendo, nada mais lógico do que partir da experiência gerencial empresarial acumulada para desenvolver ferramentas de gestão escolar (ICE, s/d, p. 3).

Em outro trecho é mantido esse paralelismo entre escola e empresa explicitando a existência de uma natureza mercadológica comum nas relações empresariais e educacionais:

A tecnologia empresarial considera o cliente e o investidor como fontes de vida. Ora, se não houver cliente – alguém que precise dos serviços – e se não houver alguém que invista, não há empresa. Logo, se não houver comunidade que necessite de uma escola de qualidade e se não houver investidor disposto a prover os recursos, não haverá um Centro de Ensino naquela localidade. Portanto, o objetivo do gestor (empresário individual) e da equipe (empresário coletivo) é agregar valor às duas fontes de vida, ou seja, riquezas morais e riquezas materiais, garantindo a satisfação da comunidade e do investidor social (poder público e iniciativa privada) (ICE, s/d, p. 9, grifos nossos).

Com base nos termos em destaque, que dão sentido ao trecho acima, percebemos uma concepção de educação inspirada nos fundamentos da teoria do capital humano. Ou seja, a educação é entendida como “bem”, uma forma de capital (instrução), a ser adquirida numa relação mercadológica e que possui a capacidade de satisfazer outros bens (morais e materiais). O ato educativo adquire as mediações abstratas do capital, próprias do universo da circulação de mercadorias, e passa a ser identificada com um “negócio”, expressão máxima do fetiche da mercadoria.

Esse postulado que trata a educação como um capital [mercadoria], define as relações sociais internas e externas à educação como uma rede de interesses particulares distintos que se harmonizam nas relações empresariais de mercado. Esse processo é denominando de Ciclo Virtuoso. A imagem abaixo ilustra a percepção empresarial que está implicada nesse conceito

IMAGEM 4 – Representação do ciclo virtuoso

Fonte: Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (s/d, p. 9).

Na ilustração acima, o “líder” em destaque representa a postura gerencial assumida por aqueles que ofertarão no mercado o capital [educação como serviço] a ser consumido pela comunidade, retorno de investimento da sociedade civil e esforço coletivo realizado por parceiros [internos e externos] envolvidos no negócio. Segundo a racionalidade empresarial, é

alterando a compreensão e dinâmica de organização da educação a partir destas ferramentas gerenciais

garantir que missão, objetivos, metas, estratégias, planos de ação e métricas estejam todos alinhados e claramente definidos, em todos os níveis da organização, de modo que todos possam, com clareza, compreender o seu papel e contribuir objetivamente para a consecução dos resultados esperados, para que sejam medidos, avaliados e recompensados (ICE, s/d, p. 3).

É para dar respostas a estas mudanças gerenciais na escola pública que os intelectuais orgânicos do Procentro [apresentados no capítulo anterior] se apropriaram da tecnologia de gestão empresarial desenvolvida pelo grupo Odebrecht, a “TEO”, e desenvolveram uma variante denominada como Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE). No site da Odebrecht120 a TEO é apresentada como sendo um “[...] conjunto de princípios, conceitos e critérios, com foco na educação e no trabalho, que provê os fundamentos éticos, morais e conceituais para a atuação dos integrantes do Grupo” (s/a, s/p.), sendo, por assim dizer, a base da cultura da Odebrecht. Ainda no site, a base dos fundamentos ético-morais e conceituais dizem respeito às “[...] potencialidades do ser humano, como a disposição para servir, a capacidade e o desejo de evoluir e a vontade de superar resultados” (s/a, s/p, destaques nossos).

Com podemos reparar nos destaques acima, as potencialidades valorizadas no ser humano que fundamentam a ética, a moral e os conceitos da TEO, “disposição para servir”,

“capacidade e desejo” e “vontade” são habilidades voltadas à experiência prática. No caso da TESE essa valorização da prática é algo que emerge com bastante força na construção de seus fundamentos. Encontramos o seguinte trecho nos documentos analisados: a TESE trata do

““óbvio”. A prática, porém, envolve conscientização e disposição para rever paradigmas, bem como assumir uma nova postura, transformando obstáculos em oportunidades de aprendizado e de sucesso” (ICE, s/d, p. 6). Mais uma vez são destacadas as habilidades de cunho prático como fundamento do modelo de gestão que, apesar de óbvia, como ressalta o trecho, exige

“conscientização”.

Em termos gramscianos, esse processo de conscientização é justamente a educação do consenso dos(as) trabalhadores(as), ou seja, sua adequação aos fundamentos éticos, morais e conceituais do modelo, portanto, à sua concepção de mundo. A preocupação com a conscientização sinaliza o caráter pedagógico para adquirir a unidade psicofísica necessária à adequação dos(as) trabalhadores(as) às exigências do trabalho. No caso da TESE encontramos

120 Disponível em: <https://www.odebrecht.com/pt-br/organizacao-odebrecht/tecnologia-empresarial-odebrecht>

Acesso em: 28 maio 2020.

várias evidências que nos permitem explorar esse entendimento acerca da formação (pedagógica) do consenso moral e intelectual do(a) trabalhador(a) a partir da concepção filosófica de mundo que sustenta o modelo de gestão da TESE:

[...] Essa tecnologia objetiva formar uma consciência empresarial humanística nos componentes da organização, alinhando-os à filosofia do PROCENTRO [...] Ela é definida como a arte de coordenar e integrar tecnologias específicas e educar pessoas por meio de procedimentos simples, que facilmente podem ser implantados na rotina escolar (ICE, s/d, p. 6, destaques nossos).

Em síntese, a TESE: É postura - mais consciência que método;

Adequa-se a cada realidade - mais ajuste que transplante ou cópia de modelo; Educar pelo trabalho - mais prática que teoria (ICE, s/d, p. 8, destaques nossos).

Com base nos trechos em destaque, identificamos que a concepção filosófica de mundo que sustenta o modelo de gestão da TESE e que busca se tornar senso-comum na rotina de trabalho é o pragmatismo norteamericano. Tal filosofia de mundo, que tem como seu maior expoente John Dewey121, emerge num cenário de profundas transformações ocorridas nas primeiras décadas do século XX. Seu fundamento está na decadência do capitalismo concorrencial e a emergência de sua fase monopolista-imperialista, acirrando cenários de disputas pelo centro dinâmico do capitalismo [1° e 2° guerra mundial] e aprofundamento da industrialização norte-americana de base fordista tornando-a potência na geopolítica global do capitalismo no século XX.

Essa ambiência de crise e transição se manifesta também na ciência, tal como nas diversas e heterogêneas críticas ao padrão de cientificidade moderna e, especialmente, no campo da filosofia com o movimento chamado: virada linguístico-pragmática.

O ponto de partida desse movimento, enquanto uma concepção filosófica de mundo, é a crítica à centralidade da consciência e da razão, pura ou sensível, que orientou a filosofia até então. No caso do pragmatismo, por exemplo, como uma das correntes que integra a virada, o real e a verdade não são mais definidos a partir de uma consciência-racional abstrata e descolada do mundo. Na concepção pragmatista, realidade e verdade são resultados da experiência. Logo, requer como condição um agente racional que atua, em termos práticos, sobre o mundo. Nesse sentido, conhecer só é possível quando pressupõe agir/intervir, já que não existe conhecimento ou pensamento em si, mas, apenas como ato/ação.

121 Filósofo e pedagogista norte-americano (1859-1952). Antes de Dewey, Charles Peirce (1839-1914) e William James (1842-1910) eram as referências mais notáveis da filosofia pragmatista. Dewey foi uma das principais referências filosóficas e pedagógicas da vertente escolanovista que ganhou força no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 com Anísio Teixeira e os Pioneiros da Educação Nova.

Considerando que o sujeito que age para conhecer, o faz sempre situado, isto é, num dado contexto, produz um conhecimento sempre “relativo” às condições da experiência vivida, isto é, aplicável a determinadas situações sempre em mudança que conectam indivíduo e ambiente [contexto] num contínuo e inesgotável processo de reformulação. Dewey era um profundo crítico das concepções de mundo metafísicas e dualistas, pois, segundo ele, estas alimentavam verdades universais e absolutistas que respaldavam privilégios sociais e certos autoritarismos nas práticas sociais.

Além disso, possuíam três claras desvantagens, conforme o norte-americano: “(1) sua tendência para falsas crenças, (2) sua incapacidade de lidar com o que é novo e (3) sua tendência para gerar inércia mental e dogmatismo” (DEWEY, 1959, p. 190, destaques nossos). Ainda conforme o autor, “[...] o conhecimento é uma percepção das conexões de um objeto, que o torna aplicável em uma dada situação (DEWEY, 1959, p. 373). Registre-se aqui as profundas conexões entre as ideias em destaque e os fundamentos do modelo da TESE, principalmente, num aspecto que podemos aqui retomar: “A TESE exige uma verdadeira desconstrução de conceitos e paradigmas para entender, aceitar e praticar seus postulados [...] É postura - mais consciência que método” (ICE, s/d, p. 8, destaques nossos).

Na concepção de mundo pragmatista, portanto, realidade e conhecimento [verdade]

são resultados da vida prática, individual e restrita aos limites da experiência. Consideramos que essa visão de mundo reflete a direção moral e intelectual do liberalismo industrial norteamericano, na fase de seu pleno desenvolvimento técnico-produtivo e do avanço da ciência utilitarista-experimental como motor das forças produtivas. Inclusive, Dewey advogava a indissociabilidade entre progresso material e progresso intelectual, ético e espiritual, aspectos que também foram aqui observados na análise dos fundamentos do modelo da TESE e de concepção de educação como um capital. Dessa maneira, conhecimento, experiência, utilidade e democracia possuem um encadeamento lógico quando a centralidade do processo passa a ser o indivíduo e suas escolhas práticas no mundo.

Do ponto de vista político-ideológico, a consequência prática da filosofia pragmatista é uma relação adaptativa com o ambiente, uma vez que a ênfase no conhecimento prático, diretamente extraído da experiência imediata, sem mediações abstratas que conduzam à totalidade histórico-concreta da real, leva o indivíduo a perceber apenas a aparência da experiência vivida, escamoteando o conjunto de conexões e contradições internas. E a aparência da sociabilidade capitalista leva sempre a uma percepção de liberdade e igualdade individual construídas pelo fetiche da circulação de mercadorias. Daí decorrem as teses de

que a educação pode ser mais valorizada e ganhar mais qualidade se tratada como um negócio.

O caráter de miséria dessa filosofia está na negação da apreensão objetiva da realidade, de sua estrutura, e a celebração da subordinação do contingente, da leitura caótica da realidade e do indeterminismo. Estes aspectos fomentam as duas marcas centrais da filosofia pragmatista: o relativismo e o utilitarismo vulgar.

Não por acaso a filosofia pragmatista é uma referência filosófica central nas pedagogias do aprender-a-aprender (DUARTE, 2001) que orientam as principais políticas educacionais dos organismos multilaterais [UNESCO, BID, Banco Mundial] e ocupam largo espaço na agenda governamental brasileira, desde os anos de 1990, quando os reformadores empresariais passaram a disputar o controle da escola pública e do trabalho docente. Em Pernambuco, constatamos que estas bases filosóficas que fundamentam o modelo da TESE vem sendo referência na organização do trabalho pedagógico e docente desde 2006. A filosofia pragmatista da TESE se estabeleceu como “[...] como módulo de estudo no processo de formação dos Gestores, considerando que os Centros de Ensino em Tempo Integral adotam padrões gerenciais à luz da experiência empresarial” (ICE, s/d, p. 5).

4.2 AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DO MÉTODO DE GESTÃO DA TESE: O CICLO