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SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA”

2 CLARICE E A CRÍTICA

2.2. SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA”

Outro crítico literário a tecer comentários sobre a obra de Lispector foi Sérgio Milliet. Seus textos foram todos publicados em Jornais e depois compilados em uma coleção chamada Diário crítico, que alcançou vários volumes.

No volume 2 (MILLIET,1944, p.27), Milliet se mostra muito contente por ter encontrado um livro “cheio de qualidades” depois de vários anos de repetição literária no Brasil de então. Diante do texto de CL, que para o autor é um “nome estranho e desagradável pseudônimo sem dúvida” (MILLIET, 1944, p.27), o crítico, com Perto do coração selvagem, diz serem interrompidos “dez anos de sossego sem novos livros, sem editores sem rodapés” (MILLIET, 1944, p. 27). Enfim, o novo livro

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surgiu mostrando para o crítico que um novo estilo precisava acontecer. Vale a pena revivermos a euforia com a qual o ele inicia o texto de opinião sobre o romance inaugural da autora:

raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá- los. Quando, porém, o autor é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita fiz uma que me enche de satisfação (MILLIET, 1944, p.27).

Mas por que tamanha satisfação de Milliet? Quais argumentos utiliza para justificar o ineditismo do romance que possui em mãos? Às respostas.

Ao folhear o livro por acaso ele se depara com a página 160 e por motivo qualquer se dá ao trabalho de lê-la, talvez para quebrar o aborrecimento da mesmice literária que o acompanhava há dez anos. É aí que, de cara, é tomado pela força da escrita de Clarice. Sérgio acompanha a discussão de Joana, a protagonista do romance, sobre o amor. Essa peronagem ainda não havia sido tomada pela força avassaladora desse sentimento. Ainda não era capaz de enxergar a vida sob a ótica do amor. Milliet acha o trecho que leu na já referida página, um misto de “estilo nu” e “riqueza psicológica” (MILLIET, 1944, p. 28).

O crítico, então, enquadra CL numa nova categoria de escritores: os que produzem o romance introspectivo, uma nova categoria de romance que propõe um diálogo interior, ou melhor, o novo romance que surgira, “é todo ele um diálogo interior” (MILLIET, 1945, p. 29). Sobre isso Milliet deixa claro que ela foi, pela primeira vez na literatura brasileira, a responsável por introduzir esse estilo de romance no Brasil.

A obra de Clarisse (sic) Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira o avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques (MILLIET, 1945, p. 32)

Entretanto, não é apenas na introspecção que se concentra a força do novo romance. No plano linguístico também é visível a potencialidade desse fenômeno de

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escritora, aliás, é o estilo de linguagem adotado por ela que cria o tom introspectivo da obra.

Clarice surge no cenário literário da época trazendo questões dos modernistas no que diz respeito à utilização da linguagem. No entanto, ao contrário daqueles que problematizaram a utilização da língua no fazer literário, a romancista colocou à prova a máxima potencialização da expressão verbal. Isso resultou em uma linguagem “única, fácil, poética, que não hesita em tomar pelos mais inesperados atalhos, em usar as mais inéditas soluções, sem jamais cair, entretanto, no hermetismo nem nos modismos modernistas” (MILLIET, 1944, p. 30)

A força da personagem Joana, no romance Perto do coração Selvagem, está justamente na apresentação que ela faz, por meio da introspecção, da condição humana. O que a personagem quer é alcançar o selvagem coração da vida, repleto da “trágica e rica aventura da solidão humana” (MILLIET, 1945, p.30). Nessa aventura incomum, Joana é capaz de dar vida e significados às suas próprias experiências e isso é conseguido porque a autora atribui uma nova performance à linguagem literária. A personagem transforma-se em coisa ao apresentar a coisa. Por meio de um estilo que mescla forma e conteúdo, Clarice atribui à língua uma “harmonia preciosa e precisa” (MILLIET, 1944, p.30), ela

tem o dom de dar às palavras uma vida própria. Ela as cria, nesse sentido de emprestar-lhes um conteúdo novo, inesperado, que acaba espantando a criadora e lhe enche o espírito de fantasmas. Não as domina mais, então, elas é que tomam conta dela (MILLIET, 1944, p.87).

Já no volume VII de seu Diário crítico (1981), Sérgio, apesar de reconhecer a “originalidade de uma química sintática”, não vê com bons olhos o terceiro romance publicado por CL, A cidade sitiada. O autor enxerga nesse livro defeitos de estilo concentrados justamente no campo que apresentou Clarice como uma autora de estilo inédito quando da publicação de Perto do coração selvagem, o campo linguístico.

O rococó, imagens sem soluções de continuidade, um requinte que é um fim em si mesmo, língua descosida e relaxada, verbiagem, exibicionismo insistente, são alguns defeitos que estão presentes no terceiro livro da autora, conforme afirma Milliet. O autor reconhece que CL possui um potencial e “grande talento”, no entanto,

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a preocupação da joia rara que ameaçava adelgaçar a visão da romancista acabou por subverter por completo a escrita, o rococó mascarou com sua interminável seriedade de ornatos a estrutura da obra, impedindo-nos de perceber e penetrar-lhe o espírito. E, o que me parece mais grave, a forma virou fórmula (MILLIET, 1981, p. 33).

O que nos parece é que – e aí não apenas Sérgio Milliet, mas a crítica em geral daquela época –, os críticos literários não assumiram, de fato, seus posicionamentos críticos apresentados na estreia da escritora. No caso de Milliet, o interessante é o vermos afirmar, ao criticar Perto do coração selvagem, que a autora empresta um conteúdo novo às palavras a ponto de não mais as dominar, mas ser dominada por elas, e agora, nesse outro romance, apresentar a linguagem utilizada pela autora como sendo rococó, imagens sem soluções etc.

Como pode uma autora desconfigurar sua escrita tão rapidamente e levar seu estilo a níveis tão antagônicos entre um livro e outro? O que acontece é que, como vimos, faltou aos críticos de Clarice um pouco de coerência em seus pensamentos. Ao apresentarem-na como uma inovação nas letras do Brasil de então, o mínimo a se esperar é que se recebesse sua nova forma de produzir literatura de maneira integral e sem imposições de condições de forma e estilo. Se sua linguagem era inovadora seria necessário que o público crítico da época abandonasse as lentes tradicionais utilizadas nas análises dos romances da escritora brasileira e, assim, organizasse uma crítica comprometida com o rompimento de barreiras do tradicionalismo literário como propunha a literatura brasileira do final da primeira metade do século XX.

Sobre a questão de forma e conteúdo utilizaremos a crônica de CL, intitulada Forma e conteúdo, para respondermos a crítica de Milliet.

Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não

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saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única (LISPECTOR, 1999b, p. 254-5).

Nessa crônica, como fez em várias outras produções, Clarice, chateada, parece responder à crítica da época que insistia, por meio de alguns críticos literários, impor condições e limites para aceitar sua obra. Nesse texto, ela deixa claro que para se debruçar em sua obra é necessário quebrar os paradigmas tradicionalistas e impor novas condições para as leituras dos textos que escrevia.

Para melhor ilustrar esse “estilo novo” e a forma inaugural composta por Lispector, pode-se utilizar a personagem Lucrécia, em A cidade sitiada (1998). Essa personagem é totalmente transformada pela autora ao longo da narrativa. Ela é moldada e se transforma em coisa por meio da palavra. O estilo de Clarice apresentado nesse romance é o de descaracterização e coisificação da palavra. A língua aqui já não diz mais, ela concretiza o objeto artístico no mundo real. E a protagonista, nesse movimento, torna-se, pois, objeto, coisa. O segundo parágrafo do quinto capítulo do romance (1998d, p. 82) pode ilustrar o que se está afirmando:

pela varanda soprava o vento da chuva. As coisas estavam exorcizadas, divididas, extremamente pálidas...a cortina voava quase levada e o quarto hesitava como se alguém acabasse de desaparecer pela janela. Havia um momento na imobilidade dos objetos que assombrava numa visão... Na sonolência, Lucrécia Neves se eriçou diante das coisas físicas. A luz estava apagada. O aposento porém se aclarava pela exalação mortiça de cada objeto e a própria cara da moça tornou-se tocante. Fitar as coisas imóveis por um momento a solevou num suspiro de sono, a própria imobilidade a transportou em desvairamento: bocejando cuidadosa, errante entre os objetos do espaço – os brinquedos da infância espalhados sobre os móveis. Um camelinho. A girafa. O elefante de tromba erguida. Ah, touro, touro! atravessando o ar entre os vegetais carnudos de sono.

Os objetos – agora exorcizados, ou seja, sem a presença do mal – exalam aromas e assim conseguem tocar a protagonista que, arrepiada, sai do controle da cena e passa a ser observada pelos objetos. Lucrécia transporta-se, por meio de um processo sinestésico, ao mundo da imobilidade dos objetos, torna-se objeto – humano com “alma” de objeto. Esse processo é sinestésico, pois a metamorfose de humano em coisa perpassa os sentidos (visão, tato, olfato). O verbo “eriçar”, segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2010, p.309) significa “tornar- se arrepiado”. No período seguinte temos a informação de que os objetos exalam

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algum odor. Lucrécia foi então tocada pelos objetos por meio do cheiro. O toque, o arrepio sentido, tornaram-na um objeto.

A Cidade sitiada eleva ao máximo o que Clarice tentou fazer desde seu romance inaugural: aproximar o mundo real à coisa, coisificando o ser para que ele se torne coisa também. A crítica de Milliet, portanto, parece não ter entendido esse propósito da autora, que deixou claro “se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa” (LISPECTOR, 1999d, p. 221).

Sérgio Milliet chega a sugerir que a autora passe a se dedicar a um outro tipo de composição: o poema em prosa, afirmando que nesse novo gênero literário ela teria maior liberdade de expressão, o que estava sendo impossibilitado de acontecer devido às limitações da prosa. Como se CL se prendesse a enredos; como se na prosa mesma ela não já alcançasse o limite máximo da liberdade: a concretização do pensamento. Como vemos, sempre houve uma preocupação, em se tratando da escrita de Clarice, em relação à forma literária, quando ela mesma dispensava esses assuntos estruturais e os punha à margem de sua produção literária.

Pelo que vemos, Milliet não aceitava muito bem a escrita romanesca de Clarice, apesar de apresentá-la como inovadora, promissora e de bom estilo literário. A crítica tradicionalista da época impediu a aceitação de qualquer quebra de paradigmas na forma literária já estabelecida.

O crítico finaliza afirmando que “enquanto seu romance permaneceu nos domínios mais ou menos velados da autobiografia, tais qualidades e defeitos não o prejudicaram” (MILLIET, 1981a, p. 34). Restou uma explicação por parte do autor do que ele entende por autobiografia em se tratando de Clarice. Como já dissemos anteriormente, a escrita de Clarice é uma extensão da sua vida, uma forma de tentar traduzir e compreender o grande mistério que é a existência. Por isso, na romancista e contista a obra é a vida e a vida é a matéria com a qual é feita a sua obra, e isso não é defeito, ao contrário, é a alta performance de um estilo que acabara de ser estreado em nosso meio artístico-literário.

Já se viu, na introdução deste trabalho, que a autobiografia presente na obra de Lispector é diferente do que conhecemos convencionalmente pelo termo “romance autobiográfico”. O romance de CL é existencial porque é construído a partir do fluxo de consciência, da introspecção, do tempo psicológico, artifícios capazes de traduzir o mundo e o sentido da existência dentro do projeto literário

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construído por CL. Não se configura, pois, como relato de vida, mas como narrativa norteada pelo fluxo de consciência, o que faz de seus romances uma verdadeira experiência intimista. Isso não é defeito, ao contrário, é a marca da qualidade literária de Clarice Lispector. A literatura aqui não é catarse, não é exteriorização de recalques: “eu nunca desabafei num livro. Aí servem os amigos! Eu quero a coisa em si!” (GOTLIB, 2013, p.80).

Em 1951, por ocasião da publicação de uma coletânea de contos organizada e publicada pelo Ministério da Educação, Sérgio Milliet tece uma crítica aos escritos de Clarice em artigo publicado no Diário Crítico (volume VIII). Novamente o autor chama a atenção para alguns problemas de estilo apresentados pela autora. Esses problemas são, nas palavras do crítico, ocasionados por “uma constante deformação sintática e vocabular” (MILLIET, 1981b, p. 235), o que acaba mergulhando a linguagem em preciosismo.

Esses problemas de linguagem são tão fortes e aparentes, na visão do crítico, que chegam a impedir a plenitude da compreensão do leitor, que se vê diante de um texto paradoxal. Segundo Milliet, sob uma “técnica malandra”, a autora busca soluções mágicas para a construção de imagens poéticas, o que leva a criação de uma falsa poesia. Esses argumentos são suficientes para, definitivamente, o estudioso construir sua opinião de preferência a Clarice romancista em detrimento aos contos, o que já vinha ensaiando em críticas anteriores:

é mesmo curiosa e paradoxal essa contradição em Clarice Lispector, capaz de adensar sua expressão em metáforas contundentes e de todo incapaz de estruturar, solidamente, em poucas palavras, o que tem a dizer (MILLIET, 1981b, p. 237).

A dificuldade levantada por Milliet está justamente na falta de capacidade em sintetizar seu pensamento em imagens inventivas que cabem dentro do conto. Novamente Milliet sugere a adoção, pela autora, do gênero poema em prosa: “parece-me que nesse gênero teria sua melhor realização, se exprimiria mais completamente, sem peias. Porque, na realidade, Clarice Lispector é principalmente um poeta” (MILLIET, 1981b, p. 237).

Apesar de não apresentarem crítica diretamente ao romance A paixão segundo G.H., acreditamos serem as palavras desses especialistas de fundamental importância dentro do estudo crítico da obra clariceana. Esses autores nos mostram

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como o Brasil recebeu os romances e contos produzidos em um estilo totalmente diferente do que até então se tinha visto na literatura brasileira.

A partir desses e de outros textos críticos, podemos perceber como CL foi, por vezes, mal compreendida em seu propósito literário. Os críticos se viram diante de uma literatura destoante do que estavam acostumados e insistiram em analisá-la pelo olhar preconceituoso e resistente à mudança da crítica literária tradicional.

Os vários críticos de CL apresentaram a escrita dela como inovação, no entanto, por falha da teoria crítica utilizada na época, não conseguiram apresentar com consistência o novo estilo praticado por ela. Hoje, pode-se perceber a Falta de argumentos convincentes que justificassem as “falhas” apontadas por eles e sobraram tradicionalismo e rigidez nas abordagens feitas sobre a produção literária desse fenômeno de autora.

Agora será vista a crítica de Massaud Moisés feita nas décadas de 1960 e 1970. Ele foi um dos primeiros críticos, juntamente com Benedito Nunes, a relacionarem a obra de CL com questões existenciais.

2.3. MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS