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A FONTE: DA CONSTRUÇÃO DE UM CENÁRIO À DEFINIÇÃO DA ESCRITA

65 Cf Les Fées au Moyen Age pp 203-204.

1.2. A Beste Diverse

Pouco depois da concepção incestuosa de Mordret, o jovem rei Artur sonha com um duro combate contra um dragão em que tanto o adversário como ele próprio são feridos de morte. No dia seguinte, angustiado, parte para a caça com um numeroso séquito. Entusiasmado com a perseguição de um grande cervo, cavalga durante tanto tempo que acaba por esgotar a montada e senta-se para descansar junto de uma fonte, sob uma árvore.69 Como vimos acima, a perseguição do cervo e o consequente

isolamento do caçador são muitas vezes, e em textos muito diversos, o prelúdio da entrada no Outro Mundo ou do encontro com um ser sobrenatural. Mas se restringirmos o campo de observação ao romance arturiano em prosa, cedo nos aperceberemos de que a sequência de acontecimentos que constituem a primeira parte do episódio em análise ( I / O herói parte para a caça na floresta; 2/ perde os companheiros / perde-se; 3/ a aventura guia-o até uma fonte; 4/ dá-se um encontro perigoso) é comum a vários episódios da pré-história tristaniana.70 Na verdade, ainda que o cenário «fonte +

árvore(s)» seja típico de LP,71 surgindo apenas uma vez na pré-história tristaniana, a

reunião dos quatro momentos narrativos referidos é frequente na primeira parte do Tristan,73 mas inexistente no Lancelot. Para além deste esquema narrativo, dois motivos

presentes na cena da Suite encontram-se também em algumas daquelas passagens de TP: o cavalo que morre de cansaço, deixando o cavaleiro numa situação de enorme vulnerabilidade;74 o calor e a fadiga que o incomodam, levando-o a instalar-se junto da

fonte para repousar.

Ainda assim, este esquema narrativo é bastante frequente no romance arturiano e a sua utilização por parte dos redactores de TP e da Suite não chega para provar uma

69 Cf. Suite, §§ 2-5, pp. 1-3. O ms B é o único que menciona a árvore (cf. Suite, nota p. 638).

70 Como referimos na Introdução, a pré-história tristaniana corresponde à primeira parte de TP (§§ 1-18

de Lõsefh), onde é narrada a história dos antepassados de Marc e Tristão.

71 Cf. LP, T. VIII, LVa. p. 147; LXa, pp. 231-232; T. IV, LXXI, p. 24; LXXVL p. 133; LXXVII, p.

169; LXXIX, p. 215; LXXX. p. 254 e pp. 261-262; T. V, XCI, p. 98; XCIII, p. 142; XCVI, p. 213; XCVI, p. 233; T VI, CVTI, p. 221.

72 Cf. Curtis, T. I, § 64, p. 63. 73 Cf. infra. I, 2.2.1.

74 Cf. Curtis. T. I. § 35. p. 52.

75 Cf. Curtis, T. I. § 35, p. 52 e § 64. p. 63.

76 QV apresenta um esquema narrativo quase idêntico, com uma variante: a personagem perdida não

relação directa entre as duas obras. O mesmo já não se poderá dizer das correspondências verdadeiramente surpreendentes que se podem detectar entre a cena da aparição da Besta na Suite e duas outras passagens (paralelas entre si) da pré-história de TP. Na primeira destas cenas, Canor, rei da Cornualha, sonha que luta junto de uma fonte contra um leopardo; este parte ferido, e um leão que aparece depois mata o leopardo e devora o próprio Canor.77 Em relação à cena da Suite, há evidentemente uma

condensação e uma inversão dos momentos narrativos, já que o pesadelo seguido do esquema «caça + errância solitária na floresta + repouso na fonte» é substituído por um pesadelo que ocorre na floresta, perto de uma fonte. Mas trata-se, em ambos os romances, do sonho profético de um rei que anuncia a sua morte através de um combate alegórico de feras: na Suite, Artur antevê o seu fim às mãos do filho Mordret; em TP, o leopardo representa Sador, o primeiro marido de Chelinde (cujo segundo marido é o próprio Canor), e o leão, Apolo, isto é, o filho de Sador e Chelinde, que matará Canor e Sador (ou seja, o padrasto e o pai). A estreita relação entre as duas obras é confirmada pelo facto de os dois sonhos anunciarem parricídios em estreita relação com crimes de incesto (entre Artur e a irmã; entre Apolo e a mãe) e também pelo facto de os dois reis, assustados com as tenebrosas profecias, tentarem em vão contrariar o destino abandonando as crianças à sua sorte.78 Note-se ainda que o paralelismo entre Artur e

Canor (o vil antepassado de Marc), que a comparação entre as duas cenas torna evidente, sublinha a negativização do rei de Logres levada a cabo pelo redactor da Suite com o desenvolvimento do tema do incesto e a introdução do episódio herodiano do abandono dos recém-nascidos. Veremos que o redactor da Demanda foi sensível a este paralelismo.79

Mas voltemos à cena em que Artur, junto da fonte, mergulha na angustiante recordação do pesadelo. Nesse momento, surge a. Beste Diverse, animal estranho de cujo ventre saem os ladridos de dezenas de cães e que se aproxima a grande velocidade da água pois avo/7 grant talent de hoivre. A sua sede é tão intensa que o ruído

77 Cf. Curtis, T. I, § 20, p. 46.

78 Canor abandona o enteado junto de uma fonte (cf. Curtis, T. I, §§ 23-25, pp. 47-48); Artur, que não

sabe que o responsável pela sua morte será o seu filho incestuoso, mas que conhece apenas o dia do seu nascimento, manda colocar todos os meninos suspeitos num barco, que entrega à sorte no mar (cf. Suite, §§81-84, pp. 60-61).

19 Ct infra, 1.3.3.

ensurdecedor que emana do seu ventre se acalma enquanto bebe, recomeçando assim que a Besta deixa a fonte:

E si tost comme elle ot commenchiet a boire, les biestes qui dedens li estoient et glatissoient s'acoisent e se tinrent coiement. Quant elle ot beu e fu issue de la fonlainne, si recommencierent a glatir autressi comme il faisoient devant e fisent autretel noise comme fesissent

XX. brake! apriés une beste sauvage.81

É logo após a partida da rainha de Orcanie da corte, depois da concepção de Mordret, que Artur sonha com o combate alegórico; é no momento em que ele pensa no terrível pesadelo anunciador da sua morte às mãos do filho incestuoso, que a Besta faz a sua aparição; é logo após a aparição do monstro que Merlim explica ao rei o significado do seu sonho, por um lado, e a sua filiação (que revela o incesto, já que só agora ele fica a saber que a mulher de Lot é sua irmã), por outro. Não há dúvida, portanto, de que a

Beste Diverse está intimamente ligada ao incesto,82 o crime de Artur. O ruído

ensurdecedor que dela emana e a sua natureza monstruosa associam-na sem margem para dúvidas ao Mal. Finalmente, o seu aparecimento junto de uma fonte e a sua sede intensa associam o monstro a este espaço, o que confirma a nossa conclusão de que a fonte é, na Suite, um lugar nefasto.

Vejamos agora o outro episódio da pré-história de TP que parece estabelecer uma relação muito estreita com a cena da Suite du Merlin que temos vindo a analisar. Depois da sequência habitual da caça e da errância na floresta, Cicoriade (o filho de Canor, que sucedeu a seu pai no trono da Cornualha) encontra uma bela fonte, instala-se e comensa a penser movi durement%* Tal como Artur na Suite, há algo que o perturba e

que se traduz no tradicional penser. Na verdade, a consciência pesa-lhe pois, tal como o rei de Logres, também o rei da Cornualha cometeu uma falta grave: condenou à morte um velho sábio que se recusava a adorar os deuses pagãos. Do mesmo modo que na cena da Suite, esta introspecção angustiada precede a aparição de um animal maravilhoso que pode ser entendido seja como um aviso dos céus, seja como a materialização das inquietações do pecador. Cicoriade vê um leão que (como a Beste Diverse) se precipita

'' Suite, § 7, p. 4.

2 Para uma abordagem mais desenvolvida deste aspecto, cf. infra, II, 1.1. 13 Curtis, T. I, § 176. p. 108.

ruidosamente para dentro da fonte.84 Porém, depois de desaparecer durante um longo

período de tempo debaixo de água, o leão reaparece, tão seco como antes. Tal como Artur, o rei da Cornualha assusta-se e surpreende-se com a visão fantástica. Depois das aparições, surge em cada um dos romances um velho sábio cujo discurso está estreitamente relacionado com os recentes acontecimentos. Em TP, é Santo Agostinho que comenta a senefiance da figura alegórica, que uma voz misteriosa acaba de revelar a Cicoriade: o leão que mergulha na fonte representa Cristo entrando no mundo dos homens sem se deixar contaminar pelas imperfeições terrenas {qu 'il n 'i fu reconeûs ni

entochiés des ordures terrienes).6 O santo homem explica a Cicoriade que ele acaba de

presenciar um milagre, uma prova do imenso poder do Deus dos Cristãos, e converte-o. A Suite é mais subtil: Merlim não explica objectivamente o significado da Besta, que conserva o seu mistério, mas o seu discurso confirma as suspeições dos leitores sobre a relação entre o pecado de Artur e a aparição do monstro e aproxima-o definitivamente do pecado do rei. Claro que a santidade do leão / Cristo se opõe à natureza demoníaca da Besta, do mesmo modo que a próxima conversão de Cicoriade contrasta com a culpa que pesará até à morte sobre Artur. Mas as semelhanças formais apontadas, a culpa que tolhe as duas personagens no início de cada cena. as intervenções paralelas de sábios que lançam sobre os dois reis o seu juízo moral - a associação de todos estes elementos torna inevitável a conclusão de que uma relação directa existe entre os dois textos.

Ora, o que é notável e teremos oportunidade de confirmar nas próximas páginas é que as afinidades que detectámos entre a pré-história tristaniana e a Suite du Merlin, quer sejam o resultado de uma influência unidireccional, quer revelem uma relação mais complexa, não se limitam ao nível superficial da intriga (como acontece com a simples incorporação de uma narrativa ou com a referência a determinado acontecimento ou personagem), mas vão mais fundo: implicam a utilização de esquemas narrativos idênticos e uma singular comunhão que se traduz na utilização do mesmo tipo de processos simbólicos. Na verdade, apesar da total oposição entre os dois animais, apesar

// saut ens, e fait si grant noise que H rois, qui bien le veoit, en laisse son penser. (Curtis, T. I, § 176,

p. 108).

Na Suite: Li rois la regarde toutes voies, si esbahis de la mierveille que il vit que il ne savoit se il

dormoit ou se il veilloit. Et ele en alo grant oirre, si que li rois en ot tost pierdue l'oie et la veue. Et quant il l'ot pierdue, il recommencha a penser plus qu 'il n 'avait fait devant. (§ 7, p. 4) Em TP: E se est une chose dont il est trop durement esbahis. E lors se rasiet, e ne set qu 'il doie dire de ce qu 'il a veti.

da diferença fundamental entre o carácter alegórico de um e a complexidade simbólica do outro, o cenário permanece o mesmo: negativizado pela aparição de um ser demoníaco na Suite, mantém o carácter negativo em TP, já que, de forma algo surpreendente, a água da fonte não tem a função purificadora que lhe é habitualmente atribuída,87 mas representa o pecado que domina a vida terrena.

Pouco depois do episódio da Beste Diverse, um escudeiro surge na corte transportando o seu senhor, morto por um cavaleiro que, junto de uma fonte, desafiava os passantes:

dedens la foriesi. a I 'entree en une praerie qui est enclose de brokes, (...) a un paveillon tendu d'encoste une fontainne. Et est li paveillons li plus riches e li plus cointes que je onques veisse.(...) Et a fait a un arbre qui est devant son paveillon drechier glaives et escus, e couvient a chascun chevalier qui par illuec trespasse jouster a lui.

Se bem que haja vários guardiães de passagens na Suite,89 este é o único que guarda

uma fonte. Ora, a sua outra missão é procurar a Reste Diverse, o monstro que aparecera, alguns fólios atrás, junto da fonte onde Artur repousava e onde o mesmo cavaleiro chegara momentos depois. Mantendo o anonimato, o orgulhoso cavaleiro dissera a Artur que a caça da Besta lhe pertencia pois a sua captura estava reservada ao melhor cavaleiro da sua linhagem e, antes de partir no cavalo do rei, acrescentara que, se quisesse lutar com ele, bastar-lhe-ia procurá-lo na fonte, aonde ele voltava todos os dias. As primeiras aparições do Cavaleiro da Besta, assim como a única manifestação do monstro na Suite partilham um cenário que, como veremos, se repetirá nas aparições da Besta nos outros textos do Pseudo-Boron: tanto aqui, como em TP e na Demanda, a Besta parece uma emanação da fonte.

86 Curtis, T. I, § 177. p. 108.

87 Sobre a natureza purificadora da água límpida, cf. G. Bachelard. L'Eau et les Rêves, - essai sur

l'imagination de la matière, Paris. José Corti. 1942, pp. 181-182 e 193-195, e G. Durand, As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Lisboa. Presença. 1989, pp. 119-120.

88 Suite, § 38, p. 28.

89 Cf., por exemplo. Suite. § 225. pp. 181-2; ss 282. pp. 238-9; § 449, p. 400. 90 Cf. Suite, §§ 7-9. pp. 4-6.

91 Acrescente-se ainda a profecia de Merlim (que não se realizará em nenhum dos textos por nós

recenseados) segundo a qual. no dia da morte do mago. o rei Artur falhará por pouco «a besta» perto de uma fonte: Et a ceie eure meismes averra que vous chacerés et serés descendus dales une fontainne

pour la beste ochirre, et lors vous sousvendra l'oscurlés si que vous ne sarés que vo beste sera devenue.

O rei Pelinor (o cavaleiro da Besta, cuja identidade é revelada entretanto) será ainda o protagonista de uma aventura macabra que tem como cenário, mais uma vez, a fonte. Uma donzela que chora o seu amigo ferido junto de uma nascente pede-lhe ajuda, mas o rei passa sem lhe prestar atenção, demasiado preocupado com a missão que

assumira de libertar uma outra donzela.92 Vendo-se só, desesperada ao aperceber-se de

que o amigo acaba de expirar, a donzela empunha a espada dele e suicida-se. Cumprida a missão, Pelinor regressa pelo mesmo caminho e encontra o cavaleiro morto e a cabeça da donzela, pois o seu corpo fora devorado pelos animais da floresta. Chorando a sua infelicidade, o rei manda sepultar o corpo do cavaleiro na capela de um eremitério próximo e, seguindo o conselho de Nivienne - a donzela que ele acaba de resgatar -, leva a cabeça da donzela morta à corte de Artur pour moustrer apertement ceste mierveille. A morte má da donzela é evidentemente um sinal do castigo divino pelo seu suicídio, tanto mais que apenas o seu corpo foi devorado, enquanto o do seu amigo se manteve intacto. Quanto à fonte, continua a ser um espaço marcado pelo Mal, um local de crime que funciona, simultaneamente, como um microcosmo onde se condensam os perigos da floresta, já que a anulação que a devoração representa é comparável ao desaparecimento

nesse mundo vasto e desconhecido que é a floresta medieval.95 Quanto a Pelinor, o seu

destino parece estar definitivamente ligado a este cenário romanesco: Merlim revelará mais tarde que a donzela que lhe pedira ajuda era na verdade filha dele.96

92 Cf. Suite, § 295. p. 253. 93 Cf. Suite, § 295, pp. 253-254. 94 Suite, §§ 302-303. pp. 262-263

5 Sobre a floresta medieval (a real e a imaginada), cf. P. Zumthor, La Mesure du Monde.

Représentation de l'Espace au Moyen-Âge. Paris. Seuil. 199.3, pp. 64-68.