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O esquema do caçador perdido ao longo do Tristan en Prose

ROMANDE TRISTAN EN PROSE

1/ O herói parte para a caça na floresta; 2/ perde os companheiros / perde-se;

2.2.2. O esquema do caçador perdido ao longo do Tristan en Prose

Ao contrário do que acontece na pré-história tristaniana, as fontes que têm como única função balizar a errância cavalheiresca, constituindo um espaço não conotado com o Mal, são relativamente numerosas ao longo dos restantes volumes de TP. Por vezes, são apenas o local (não descrito) onde o cavaleiro encontra outros cavaleiros ou donzelas.163 Noutras ocasiões, trata-se de nascentes belas e inofensivas, verdadeiros loci

amoeni onde o cavaleiro cansado se refresca e repousa.

Porém, mesmo para lá da pré-história, a fonte continua a ser, frequentemente, cenário do crime, da morte não cavalheiresca e do homicídio traiçoeiro, contribuindo para sublinhar o paralelismo entre diferentes momentos da intriga e personagens igualmente vis. Não é certamente por acaso que Canor, a figura mais carregada de vícios da pré-história tristaniana, é o culpado de duas mortes pouco heróicas junto da fonte, matando Nichoraut de surpresa e atacando Sador apesar de ele estar desarmado. Recordemos ainda que fora ele, também, quem abandonara o recém-nascido Apolo junto dessa mesma fonte para que as feras o devorassem. O rei Marc, seu longínquo descendente que herda toda a sua vileza, matará o próprio irmão, Perneham, na Fontaine

au Lion para que ele não possa usurpar-lhe o trono da Cornualha.166

O paralelismo entre o homicídio de Nichoraut e o de Perneham é evidente. Canor, assim como Marc, projectavam o crime havia algum tempo, e ambos queriam matar homens da sua confiança, que tinham provado ser melhores do que eles: o primeiro esperava uma ocasião propícia para se vingar de Nichoraut que havia salvo Apolo; o segundo precisava de evitar que o irmão, mais corajoso e mais amado pelo seu

162 Cf. Curtis, T. I, § 224, p. 124.

163 Cf. Curtis, T. II, § 554, p. 151; § 593, p. 181; § 625, p. 207; Curtis, T. III, § 938, p. 233; Ménard, T.

II, § 78, p. 189; § 82, p. 196; Ménard, T. III, § 159, p. 198; ms. 757, T. IV, pp. 37-38.

164 Cf. Curtis, T. II, § 526, pp. 128-129; § 667, p. 238; Curtis, T. Ill, § 693, p. 22; § 816, p. 123;

Ménard, T. I, § 169, p. 249; Ménard, T. II, § 67, p. 172; § 116, p. 244; Ménard, T. Ill, § 37, p. 85; § 212, p. 245; Ménard; T. IV, § 53, p. 120; § 68, p. 137; § 71, p. 140; § 107, pp. 186-187; ms. 757, T. II, p. 117, 128, 336; ins. 757, T. Ill, p. 102; Ménard, T. V, § 136, p. 215 / ms. 757, T. Ill, p. 224; Ménard, T. V, § 164, p. 245.

165 Canor ataca Sador e deixa-o gravemente ferido. Este, pouco depois, desafia Apolo pensando que se

tratava de Canor e Apolo acaba por matá-lo. Cf. Curtis, T. I, §§ 146-150, pp. 96-97.

povo, o destituísse do trono. Durante uma partida de caça, Canor perde todos os seus homens com excepção de Nichoraut, e os dois chegam par aventure à fonte onde o rei havia abandonado a criança; é o que acontece a Marc que, no regresso de uma caçada, chega só com o irmão à Fontaine au Lion. Canor sente a cólera invadi-lo ao reconhecer o lugar (il est touz esbahiz; si fremist d'ire et de maltalent161)., quanto a Marc, é depois

de ter bebido da água da fonte que, olhando para o irmão, se deixa dominar pela ira, matando-o. Tudo se passa como se o cenário inspirasse os homicidas, alimentando os seus maus pensamentos e incitando-os ao crime.

Para além do assassínio de Perneham, a Fontaine au Lion é ainda associada a dois outros crimes:

... a ceie fontaine ocist puis Tristans, li bons chevaliers, Archeman, le frère Audret, qui toz jorz l'avoit esloignié a son pooir d'avoir ses solaz de la roïne Yselt.168 Et devant celé fontaine meïsmes perdié puis

li rois Mars Maraugis, son fil, qu'il avoit eu de sa niece, si petite creature qu'il n'avoit pas encores set jorz entiers.169

A referência ao abandono, pelo rei Marc, de um filho incestuoso junto de uma fonte vem mais uma vez confirmar o paralelismo entre Marc e Canor, culpados do mesmo crime. Como se sabe, a concepção incestuosa de Meraugis e o seu abandono pelo rei Marc serão relatados na Demanda.17t>

***

O esquema narrativo, muito frequente na pré-história tristaniana, da perseguição do cervo que leva ao isolamento do caçador na floresta e acaba com a sua chegada a uma fonte onde se dá um crime ou um encontro perigoso surgirá em todo o Tristan en Prose (nas versões longa e breve) por mais sete vezes.171 Não é certamente por acaso

que as três primeiras ocorrências «históricas» do esquema têm como protagonista o rei Marc: seguindo o modelo dos episódios protagonizados por Canor, pretende-se, tal como no episódio da morte de Perneham, aproximar os dois reis; fazendo de Marc o rei- caçador por excelência (Mars, qui plus se delitoit assiduelment en chace que nul gentil

167 Curtis, T. I, § 127, p. 88.

68 O anunciado crime de Tristão não virá a realizar-se em nenhuma das versões de TP que chegaram

até nós.

169 Curtis, T. I, § 178, p. 109.

home qui fust a celi tens ou monde..}11), o redactor tristaniano liga-o aos pecadores

pagãos da pré-história e coloca-o na periferia do mundo cavalheiresco. Com efeito, a caça parece ser incompatível com a errância em busca de aventuras: ao contrário do que acontece com o cavaleiro errante, o caçador não parte só ou com um ou dois dos seus pares, mas é acompanhado por um séquito anónimo do qual se separa, não por opção conscientemente assumida, para melhor buscar a aventura, mas devido à paixão que dele se apodera ao perseguir uma presa particularmente apetecível - a febre da caça leva-o a concentrar-se num objectivo bem definido (ao contrário da errância cavalheiresca, em que todas as possibilidades estão em aberto) e a esquecer tudo o resto, e só no fim de uma corrida desenfreada, quando finalmente alcança o cervo ou a fonte, o caçador se apercebe de que está só.

Vejamos agora as três passagens protagonizadas por Marc:

TP Herói parte para a perde companheiros/ a aventura guia-o até dá-se encontro caça na floresta; perde-se; uma fonte; perigoso.

Marc tote jor avoit ... et estoit venuz de Et por ce qu 'il avoit Vê Kahedin chacié un cerf forest en forest, et avoit illec trové celé meson et chegar e,

(Curtis, toz ses homes perduz si celé fontaine i estoit il temendo que

T. III, § entérinement qu 'il ne descenduz. seja Tristão, 901) l'en estoit un reniés, ne

ne savoit qu 'il estoient devenu. Et il meïsmes avoit tant forvoié celi soer par la forest qu 'il ne savoit mes quel part il deust aler ne cornent il poïst venir a aucun recet.

esconde-se.

171 Apesar da presença da fonte, excluímos deste elenco uma passagem em que Marc segue um cervo até

uma fonte, mas sem perder os seus companheiros. Cf. Ménard, T. III, § 49, p. 97.

172 Curtis, T. III, §893, p. 191.

173 Sobre a caça como «la plus dévorante des passions», cf. B. Hell, Le Sang Noir - Chasse et Mythe du

Marc (Men.. T. I, §§ 183-6 )

...ala un jor cachier en la forest du Morois a grant compaingnie de barons et de cevaliers. Si accuelli cele matinee un cherf mout isnel et mout legier...

... et pour ce k'il estoit miex montés que nus de ses compaingnons, les passa il tous et emprist du tout la cache sour lui

(...). Li rois March les a

si eslongiés em petit d'eure que il n'en set vent ne voie, ne il n 'en ot nul (...). Et la u il aloit cevauchant en tel ma-niere, pensant toutes voies a sa cache k'il avoit perdue et a ses compaingnons autresi...

... il //' avint adonc que

aventure l 'aporta droit sour la fontainne...

...il a grant talent d'aler vers la fontainne, car il se vaurra illuec reposer aucun poi, pour ce que caus estoit et tressués et traveilliés durement et avoit mout talent de boire.

A chief de piece prent li rois son cor et le sonne au plus fort k'il puet, pour ce que, s'il avenist par aucune aventure que si houme fuissent près de lui, k'il l'oissent et k 'il venissent a lui.

u mesire Tristans soloit repairier avoec les pastours (...). Mesire Tristrans dormoit... Marc, anónimo, pergunta por T aos pastores, que dizem mui- to mal de Marc Marc (ms. 757, T. I. PP 387ss)

vai caçar ao Morois; T fica no castelo.

Celui jor li avint qu 'il trova un cerf grani et parcreù, fort et legier a grant merveille. Li rois fist ces chiens descou- pléz après le cerf. Li cers s'en fuit plus tosl que vent et li chien s'en revont après si grant oirre con il poent.

Li rois Marc, qui a merveilles estoit bien montez, se met après le cerf devant toz ces compaignons et tant maintient icele chace que il les esloigne si durement que il n 'en puet mes oïr ne voiz ne son ne asens nul (...).

Au soir (...) avint que li cerfs ce mist en une fontaine... Li rois sefiert après le cerf et tret s'espee et l'ocit en la fontaine meïsmes, et li cers chiet tout mainte- nant. Li rois descent et tret le cerf sor la fontaine, et puis prent son cor et corne de prise por fere ces homes venir

a soi. Mes c'est noiant de son apel, car il les avoit ja trop eslongniéz

C). (Marc volta para Tintagel, onde encontra Tristão e Iseu adormecidos no quarto da rainha.)

Surpreendentemente, apesar de bastante afastadas umas das outras no que diz respeito ao desenvolvimento da diegese, as passagens acima apresentadas parecem ainda mais regulares do que os seus modelos: trata-se sempre do mesmo protagonista; é sempre um cervo a presa escolhida; a floresta onde tudo se passa é sempre o Morrois.174 Porém, se

as integrarmos no seu contexto e tentarmos perceber qual é a sua função no desenvolvimento da narrativa e na caracterização das personagens, facilmente nos aperceberemos de que apenas o segundo e o terceiro episódios estabelecem relações realmente significativas com a pré-história tristaniana.

Com efeito, a segunda passagem reproduz, não apenas no que diz respeito ao esquema já referido, mas também naquilo que lhe dá o seu sentido próprio, duas cenas protagonizadas por Canor e por Pelias. Nas suas linhas gerais, as passagens em causa narram o seguinte:

Pelias Canor Marc

Pelias parte para a caça a grant

compaignie de ces de mon ostel...

Marc parte para a caça a grant

compaignie de barons et de cevaliers...

... e persegue um cervo tant viste et tant inel.

(Curtis, I, § 34)

... e persegue um cervo mout isnel et mout legier.

(Ménard, I, § 183) Sedento e cansado, bebe para

matar a sede e adormece. (Curtis, I, § 35).

Aproxima-se da fonte, desejoso de beber e repousar, pois está muito cansado e cheio de calor.

(Ménard, I, § 184) ! Canor encontra Pelias

adormecido na fonte. (Curtis, I, § 35)

Marc encontra Tristão (louco) adormecido na fonte.

(Ménard, I, § 184) Canor leva Pelias para o seu

castelo e cuida dele. (Curtis, I, § 35)

Marc leva Tristão para o seu castelo e cuida dele, mas depois obriga-o a jurar que não voltará à Cornualha.

(Ménard, I, §§ 187-189)

O processo de reescrita do redactor tristaniano é muito curioso: Marc começa por reproduzir os gestos de Pelias, passando, a partir do momento em que as duas personagens se confrontam, a representar o papel de Canor, o que vem apenas confirmar algo que era já muito visível na pré-história - o rei da Cornualha e o rei do Léonois são duplos e, apesar das diferenças de carácter, os seus actos na disputa de Chelinde são, até certo ponto, intercambiáveis. Outra função importante desta cena é a confirmação da estreita relação entre a pré-história e a história de Tristão: Canor, o marido abandonado (e rei da Cornualha), anuncia Marc (e, como vimos, de uma forma muito completa, pois apresenta os mesmos traços de carácter); Pelias, o futuro amante da rainha, anuncia, embora de forma menos evidente, Tristão.

Embora muito mais tardia no desenrolar da intriga, a terceira passagem acima apresentada estabelece o mesmo tipo de relação com a pré-história tristaniana. Desta vez (quebrando o paralelismo habitual), Marc representa o papel outrora desempenhado por

Sador. Entre as numerosas cenas de caça até agora analisadas, há apenas duas em que a presa é apanhada e morta: a que aqui nos interessa - Marc mata um cervo junto de uma fonte - e a primeira, em que Sador mata um javali no mesmo cenário.175

Na cena da pré-história, a relação especular entre Sador e o javali é mais evidente, já que também Sador é ferido e quase morre no confronto com o animal. A identificação entre este antepassado de Tristão e o javali, animal conotado com o excesso sexual,176 não surpreende - Gottfried von Strassburg já identificara o suídeo com

o amante de Iseu através do sonho de Marjodoc, em que um javali suja e rasga os lençóis do leito régio, e também graças ao escudo do sobrinho de Marc, que exibia um porco selvagem. No ms. 103 de TP, quando Iseu sonha com um javali ensanguentado, não hesita em interpretá-lo como um anúncio da morte do amante.178 Por outro lado, como

refere A. Saly:

Ce qui ressort de ces rapprochements, c'est qu'il existe une secrète affinité entre Tristan et le sanglier. On sait que l'homologue irlandais de Tristan, Diarmaid, amant de Grainne, a pour geis de ne pas tuer de sanglier sous peine de mort. En aurait-il été de même pour quelque Tristan primitif?179

Mas regressemos à cena de caça protagonizada por Sador. Como vimos, a transgressão sexual atinge-o no momento em que ele jaz ferido junto da fonte pois, aproveitando a sua ausência, Naburzadan, que ficara no castelo, viola a cunhada incorrendo no crime de incesto. Ora, na cena protagonizada por Marc, a morte do cervo coincide, igualmente, com a traição: Tristão, que ficara no castelo enquanto Marc partia para a caça, aproveita a ausência do rei, que se prolonga também noite fora, para se deitar com a amante.180

175 Cf. Curtis, T. I, §§ 8-9, p. 42.

176 Cf. B. Hell, Le Sang Noir, pp. 68-69 e Allen J. Grieco, «Le thème du coeur mangé: l'ordre, le

sauvage et la sauvagerie», in La sociabilité à table: commensalité et convivialité à travers les âges, Rouen, Publications de l'Université de Rouen, 1992, pp. 23ss.

177 Cf. Gottfried, Tristan, pp. 219-220 e p. 109.

Cf. A. Saly, «Tristan chasseur», in La Chasse au Moyen-Age. Actes du Colloque de Nice des 22-

24 juin 1979, Nice, Les Belles Lettres, 1980, p. 439.

179 Ibidem.

Como se sabe, a identificação de Marc com o cavalo é a mais difundida e tem a seu favor dois importantes dados: a etimologia do nome do rei da Cornualha (em todas as línguas célticas, o seu nome significa «cavalo»)181 e a tradição segundo a qual ele teria

orelhas de equídeo.182 Contudo, Philippe Walter assinala também o parentesco entre esta

figura do marido enganado e o cervo:

S'il est difficile a priori d'assimiler les oreilles de cheval à des cornes de cerf, il faut avouer que pour Marc (ou son ancêtre mythique) les deux réalités doivent se confondre. D'abord, Marc est cocu comme Merlin.183 De plus, le roi règne sur un pays en forme de corne qui

porte le nom de la corne: la Cornouailles. En outre (...) dans la Vie

de Saint Paul Aurélien, Marcus Conomorus habite à Caer Banhed,

ce qui signifie en vieux breton «château de la corne de cerf». (...) Faut-il voir derrière Marc un avatar du dieu cornu des anciens Celtes, Cernunnos? L'assimilation est tentante, d'autant que pour les Celtes et d'autres peuples la souveraineté est fondée sur l'union avec la Grande Déesse dont Iseut pourrait être l'écho.184

Sem outros elementos que possam confirmar a sua hipótese, Walter desiste da assimilação Marc - cervo. A leitura do Tristan en Prose, porém, ter-lhe-ia trazido mais argumentos. Antes de mais, a apetência de Marc (e do seu antepassado Canor) pela caça - que é sempre caça ao cervo - aproxima-o deste animal mítico. Por outro lado, não deixa de ser muito curioso o facto de Marc ser associado ao cervo numa cena paralela àquela em que um antepassado de Tristão associado ao javali.

Com efeito, a caça ao veado e a caça ao javali são, segundo B. Hell, reservadas ao caçador maduro pois estes dois animais - quando machos e adultos - podem ser considerados seus rivais: o furor sexual que se apodera dos cervos no período do cio é equivalente ao dos javalis solitários que, como os cervídeos, empreendem combates brutais pela posse das fêmeas.185 São estas as duas presas mais marcadas pelo sangue

negro, cuja influência se exerce sobre o caçador que se entrega à paixão da caça:

181 Cf. E. Newstead, «The origin and growth of the Tristan legend», in A.L.M.A., p. 128 e Ph. Walter,

Le Gant de Verre - le mythe de Tristan et Yseut, La Gacilly, Ed. Artus, 1990, pp. 97-100.

182 Cf. Béroul, «Le Roman de Tristan», v. 1334, in Tristan et Iseut, , p. 84. Segundo E. Newstead, in

Wales an Brittany the story of king March, who murdered his barbers in order to conceal his embarrassing secret, circulated as an independent folk-tale for more than 700 years. («The origin and

growth of the Tristan legend», p. 128)

183 Na Vita Merlini de Geoffrey of Monmouth, Merlim atinge o amante da mulher com as hastes do

cervo que ele próprio cavalgava. Cf. «Vita Merlini», in Le devin maudit. Merlin, Lailoken, Suibhne.

Textes et étude, dir. Ph. Walter, Grenoble, ELLUG, 1999, pp. 86-88.

184 Ph. Walter, Le Gant de Verre, pp. 99-100. 185 Cf. B. Hell, Le Sang Noir, pp. 65-69.

Le sang noir est inscrit dans une vision archaïque et duale du monde. (...) Sur la terre, le sang noir assure la circulation des forces génésiques premières dans l'espace qui leur est propre, le monde sauvage. Il est fortement présent dans le sang des animaux de la forêt. Chez les hommes, son bouillonnement déclenche des fureurs noires qui ne sont que les expressions d'une même possession «sauvage» placée sous le signe de l'animalité primitive.186

Estes furores assimiláveis à raiva e à loucura agitam Tristão (exímio caçador segundo os poemas ) desde as versões mais antigas do mito, mas o que torna a aproximação entre o cervo e o javali particularmente interessante para nós, é que estes dois animais surgem, no calendário cinegético, numa situação de alternância comparável à que vivem Tristão e Marc com a partilha de Isolda: na Idade Média, a presa por excelência da caça estival, que se desenrola sob o sol ardente e selvagem da canícula, é o cervo, proie (...)

prestigieuse dont le symbolisme de la ramure éclatante trahit lisiblement une essence solaire et mâle.189 No inverno, sous l'influence cosmique de la planète noire des forces

génésiques originelles190 (isto é, de Saturno), é o javali a presa mais apetecida.

Para concluir as nossas observações sobre as três passagens acima apresentadas, sublinhemos mais uma vez a motivação profunda que subjaz à utilização do esquema do caçador perdido no segundo e no terceiro episódios: o responsável por estas unidades narrativas não se limitou a retomar superficialmente um esquema tópico, mas relacionou- o com o contexto em que ele surge e com as personagens em questão, levando até o leitor a uma melhor compreensão dos episódios diegeticamente anteriores. Quanto à primeira das cenas «históricas», apesar de muito mais próxima, do ponto de vista da cronologia da diegese, da história de Sador e Chelinde, parece implicar apenas a reprodução do esquema narrativo, sem que isso tenha quaisquer repercussões na construção do sentido do texto.

™ Ibidem, p. 168.

Segundo A. Saly, Dans aucun roman médiéval la chasse ne joue de plus grand rôle que dans les

romans français de Tristan au XIJe siècle («Tristan chasseur», in La Chasse au Moyen-Age, p. 435).

No romance de Béroul, durante o exílio na floresta do Morrois, Tristão entrega-se de corpo e alma à caça, que é o seu único meio de subsistência; abandona as técnicas cinegéticas habitualmente adoptadas pelos cavaleiros e adopta práticas próprias de caçadores furtivos: coloca armadilhas (w. 1752-1764, pp. 103-105), caça só e em silêncio, treinando o fiel Husdent para não ladrar (w. 1426-1645, pp. 88-98). Segundo B. Hell, os caçadores furtivos, cuja paixão pela caça os leva a isolar-se e a quebrar importantes códigos de conduta que integram o homem na vida de sociedade, possuem a febre da caça em alto grau, o que os aproxima dos «homens selvagens» (cf. Le Sang Noir, pp. 54-56).

188 Cf. «Folie Tristan d'Oxford» e «Folie Tristan de Berne», in Tristan et Iseut, pp. 233-312.

189 Ibidem, p. 272. O autor acrescenta que, ainda hoje, na Alsácia e na Alemanha, a abertura oficial da

A A *

O esquema do caçador perdido na perseguição de um cervo que acaba por chegar a uma fonte surgirá ainda por três vezes em TP, sempre em episódios protagonizados por Tristão, todos eles posteriores, na cronologia diegética, aos já analisados. A caça é a ocupação favorita do amante de Iseu durante os seus exílios na

Roche Noire e depois na Joiosa Guarda, mas não nos parece que, nas passagens que