• Nenhum resultado encontrado

Dos poemas ao romance em prosa: o desaparecimento do topos do encontro amoroso na fonte

ROMANDE TRISTAN EN PROSE

2.1. Dos poemas ao romance em prosa: o desaparecimento do topos do encontro amoroso na fonte

Nas versões mais antigas da narrativa tristaniana que chegaram até nós, a fonte no jardim, configurando o quadro tópico do locus amoenus,91 é um cenário recorrente

do encontro amoroso, integrando-se numa antiga e fecunda tradição. Como afirma Pierre Gallais,

Le locus amoenus, centré à et par la fontaine, est (...) le lieu «pan-

98

erotique» (...). C'est le lieu du rendez-vous amoureux.

É provável que no Tristan de Thomas a fonte no vergel fosse o local escolhido para os furtivos encontros dos amantes, pois o romance de Gottfried von Strassburg, que em geral segue fielmente aquela versão, utiliza esse cenário para uma importante passagem muito lacunar nos fragmentos da versão francesa que subsistem. Seguindo as

97 Segundo E. R. Curtius, o locus amoenus é uma «tranche» de nature belle et ombragée; son décor

minimum se compose d'un arbre (ou de plusieurs), d'une prairie et d'une source, ou d'un ruisseau. A cela peuvent s'ajouter le chant des oiseaux et des fleurs. Le comble sera atteint, si l'on fait intervenir la brise. (La Littérature Européenne et le Moyen-Age Latin, Paris, P.U.F., 1956, p. 317)

98 Cf. La Fée à la Fontaine et à l'arbre, p. 298.

99 No romance de Thomas, todas as referências ao local do encontro se perderam. Conserva-se apenas a

cena da descoberta dos amantes: Marc encontra Tristão e Iseu adormecidos e enlaçados (numa passagem que reproduz a cena do Morrois, mas no espaço do castelo) e vai buscar reforços; entretanto, os amantes despertam e separam-se. Cf. Thomas, «Le Roman de Tristan», w . 1-53, in Tristan et Iseut. Les

poèmes français. La saga norroise, Paris, Librairie Générale Française, 1989, pp. 336-339. Nesta

indicações da sábia Brangain, Tristão utiliza um curioso estratagema para entrar em contacto com Iseu: corta alguns ramos de oliveira onde grava as iniciais dos nomes de ambos, deita-os no ribeiro que corre até aos aposentos reservados às mulheres, e fica à espera junto da oliveira que, como se presume, se ergue junto da nascente. A atenta Iseu acorrerá a esse sinal por oito vezes - o número de encontros furtivos que os amantes conseguem manter antes de serem descobertos.101 O jardim, espaço de fronteira entre a

floresta onde Tristão se esconde e as câmaras do castelo onde Marc e os seus barões dominam, funciona como uma espécie de terreno neutro, um espaço onde a transgressão é possível, embora extremamente perigosa. O vergel, hortus conclusus, sugere a intimidade do amor, e a poderosa metáfora do riacho que penetra na câmara das damas antecipa a união sexual que se realizará sob a sombra protectora da oliveira - outro espaço circunscrito, encaixado no jardim fechado. Como afirmou Marie Françoise Notz referindo-se aos jardins da literatura medieval francesa,

Opondo-se à eventual violência de uma intrusão, a cerca manifesta a vitória da harmonia interior sobre um espaço que a sua destruição condenaria à confusão e ao caos.102

Na verdade, são momentos de felicidade absoluta, embora efémera e frágil, que os amantes vivem no espaço definido pela sombra da árvore; é a absoluta harmonia, o total entendimento entre ambos e também entre eles e a natureza que se representa através da mensagem - admirável de poder evocativo - dos ramos lançados na água para significar a presença de Tristão e a proximidade do encontro. Porém, a harmonia quebra-se quando um anão malevolente denuncia os amantes a Marc. O rei esconde-se com o seu cúmplice na copa frondosa da oliveira para se certificar de que a traição é real, mas Tristão e Iseu

No romance de Eilhart, que reproduz provavelmente o episódio desaparecido de Béroul, embora substituindo o pinheiro por uma tília, a cena é muito semelhante. Tristão (que fora expulso da corte por 1er sido apanhado em flagrante delito com a rainha pelo próprio Marc) avisa Brangain: «(...) je veux la

voir cette nuit même - si c'est possible - dans son verser. (...) Dès que sur le ruisseau qui, alimenté par la fontaine, traverse sa chambre, passeront des feuilles, qu 'elle aille vite attendre la venue d'un copeau sur lequel sera peinte une croix à cinq branches. (...) c 'est que je serai sous le tilleul se dressant auprès de la fontaine, dont l'eau traverse sa chambre.» (Eilhart von Oberg, Tristan et Iseut, ed./trad. D.

Buschinger e W. Spiewok, s.l., Labor, 1997, pp. 93-94; sublinhados nossos.) Na Folie de Oxford, Tristão afirma ter utilizado o mesmo estratagema para avisar Iseu (cf. «Folie Tristan d'Oxford», w . 777-794, in

Tristan et Iseut, p. 270)

101 Cf. Gottfried von Strassburg, Tristan with the «Tristan» of Thomas (trad. A.T. Hatto), London,

Penguin Books, 1967, pp. 231-232.

102 Cf. M. F. Notz, «Leitura do Jardim e Colheita das Palavras na Literatura Francesa da Idade Média»,

in A Simbólica do Espaço - cidades, ilhas, jardins (coord. Y. K. Centeno e Lima de Freitas), Lisboa,

apercebem-se das suas sombras projectadas no chão e encenam um diálogo que os desculpabiliza.

O manuscrito - único e acéfalo - que conservou até hoje o romance de Béroul abre com a mesma cena fundamental do rendez-vous épié:104 Marc esconde-se num

pinheiro e não numa oliveira;105 Iseu e Tristão apercebem-se da presença do rei porque

vêem a sua imagem reflectida na água da fonte;106 mas a cena é fundamentalmente a

mesma.107 Em ambos os romances, a presença do marido enganado funciona como uma

intrusão que rompe o frágil equilíbrio da relação a dois, dessacralizando o encontro e condenando tudo à confusão e ao caos que o discurso ambíguo e enganador dos amantes tão bem representa.

O Donnei des Amants, poema anglo-normando do fim do século XII, apresenta uma pequena narrativa encaixada que desenvolve o tema dos encontros secretos de Tristão e Iseu e parece operar uma hábil fusão das duas cenas acima analisadas. Mais uma vez, a fonte e uma árvore (o pinheiro, como no romance de Béroul) são os dois elementos que constituem o locus amoenus; mais uma vez, é o jardim que acolhe os amantes. É de noite. Iseu, deitada junto de Marc, ouve Tristão, que se encontra não muito longe (en un gardin / A la funîaine suz le pinws) e imita o canto do rouxinol.

Então, apesar dos braços do marido que a envolvem, apesar dos cavaleiros que a guardam, apesar do anão que a persegue, sai para o vergel onde se entrega ao amado. Tal como no romance de Gottfried (e no Lai de Chievrefoil, de Marie de France109), a

natureza aparece como uma aliada dos amantes, como se se quisesse sugerir que o seu amor está inscrito na ordem natural das coisas: Tristão imitando o rouxinol é

103 Trata-se do ms. BN fr. 2171, ff° 1-32.

104 Cf. Béroul, «Le Roman de Tristan», w . 1-232, in Tristan et Iseut, pp. 22-32. A Folie de Oxford

contém uma referência a esta mesma cena. Cf. «La Folie d'Oxford», w . 795-816, in Tristan et Iseut, pp. 270-272.

105 Cf. Béroul, «Le Roman de Tristan», w . 258; 286; 404, pp. 34 e 40. 106 Je vi son onbre en la fontaine {Ibidem, v. 351, p. 38).

107 Na versão de Eilhart, em geral muito próxima da de Béroul (cf. F. Whitehead, «The early Tristan

Poems», in A.L.M.A., pp. 136-141) é também na água da fonte que a imagem do rei se reflecte (cf. Eilhart von Oberg, Tristan et Iseut, pp. 97, 98).

108 «Tristan Rossignol - Le Donnei des Amants», w . 7-8, in Tristan et Iseut, p. 322.

109 Neste lai, Tristão deixa um ramo de aveleira na floresta, no caminho que Iseu vai percorrer. Atenta

ao mais pequeno sinal do amante, a rainha da Cornualha encontra-o e compreende a mensagem que Tristão gravara no ramo ou representava através dele: eles estavam tão unidos como a aveleira e a

reconhecido por Iseu; o marido ciumento é comparado ao gelo que imobiliza a água e a impede de seguir o seu curso11 - Iseu, que consegue libertar-se do seu domínio por um

momento, está a agir de forma tão natural como a água que corre. Embora presente no início da cena, Marc não interfere no encontro apesar de ver Iseu sair para o vergel depois de denunciada pelo anão: convencido de que a mulher não ousaria ir abertamente ao encontro do amante, o rei deduz que ela não pode ser culpada. Assim, o autor desta nova cena mantém a presença algo caricata de Marc e do seu aliado, o anão (a quem Iseu dá uma bofetada que lhe arranca quatro dentes!), conservando, no entanto, a integridade do hortus conclusus e a perfeição do encontro, tornada particularmente preciosa pela ameaça constante que a fragiliza sem chegar a atingi-la.

No Tristan en Prose, a fonte não constitui o cenário de nenhum dos encontros amorosos dos protagonistas. É nas câmaras do castelo de Marc que os amantes habitualmente se encontram em segredo,111 como aliás já acontecia em diversas cenas

dos romances em verso. Na passagem em que o encontro no jardim espiado por Marc é retomado, a árvore está presente (é aí que o rei se esconde), mas a fonte desapareceu.113 Decididamente, os redactores de TP não foram sensíveis à pregnância

simbólica do encontro amoroso no locus amoenus.

Ora, isso poderá explicar-se, em parte, pela extrema raridade desse quadro ou esquema narrativo em LP: ao longo dos oito volumes editados por Micha, há apenas duas referências a encontros de amor junto de fontes; trata-se, aliás, de duas situações que não envolvem os protagonistas do romance.114 Quanto a Lancelot e Genebra,

quando trocam o primeiro beijo, num prado, sob as árvores, nenhuma nascente é

madressilva que nela se enrolava; se os separassem, morreriam. Cf. «Lai de Chievrefoil», in Tristan et

Iseut, pp. 313-319.

110 Cf. «Tristan Rossignol...», w . 91-136, in Tristan et Iseut, pp. 326-328.

111 Cf. Curtis, T. II, § 514, p. 118; § 532, p. 134; § 535, p. 136 (Tristão espera no jardim que todos

adormeçam e sobe a uma árvore para entrar pela janela no quarto de Iseu); §§ 542-543, pp. 141-142 (Tristão e Iseu são encontrados adormecidos na torre onde Marc aprisionara a mulher).

1,2 Cf. Eilhart von Oberg, Tristan et Iseut, pp. 91, 105, 108-109, 143-147; Béroul, «Le Roman de

Tristan», w . 721-770, pp. 54-56; Gottfried, Tristan, p. 239, 241-242.

113 Cf. ms. 757, T. I, pp. 376-383.

Apanhando Persidés estendido junto de uma fonte com a amiga, um tio do cavaleiro acusa-o de

referida,115 e nos encontros seguintes, a fonte estará também sempre ausente. De

qualquer forma, o hortus conclusus como imagem associada à intimidade amorosa desaparece tanto em LP como em TP - talvez porque o jardim fechado da Joie de la

Cour levara à degradação definitiva desse espaço simbólico.117 Em LP, a fonte sofre um

processo de negativização semelhante ao que descrevemos para a Suite, provavelmente porque é associado à fada malévola, como no episódio do Val sans Retor, em TP, deixará definitivamente de fazer parte do espaço construído e humanizado,11 para

pontuar a errância cavalheiresca na floresta desconhecida.