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Suite, Tristan en Prose, Demanda: o esquema do caçador perdido e os pecados de Artur

ROMANDE TRISTAN EN PROSE

3. AS FONTES DEMONÍACAS DA DEMANDA

3.1. Suite, Tristan en Prose, Demanda: o esquema do caçador perdido e os pecados de Artur

O esquema do caçador perdido surge por duas vezes na Demanda em cenas protagonizadas pelo rei Artur. Na sua primeira ocorrência, conserva todos os elementos que nos habituámos a encontrar em TP: I/O herói parte para a caça na floresta; 2/ perde os companheiros / perde-se; 3/ a aventura guia-o até uma fonte; 4/ dá-se um encontro perigoso. Artur parte portanto para a caça, afasta-se dos companheiros e erra na floresta até encontrar uma fonte, junto da qual está sentada uma belíssima donzela. Da violação da donzela resultará a concepção de Artur, o Pequeno.303 Como acontece na maior parte

dos casos, a presa perseguida é um cervo; tal como nas nove cenas da pré-história tristaniana, a expressão /'/ li avint que {aventure l 'aporta) está presente (avëeo que a

ventura o levou304)] do mesmo modo que em duas das cenas da pré-história (ambas

protagonizadas por Canor), o caçador perdido acaba por cometer um crime. Parece-nos evidente que é a pré-história tristaniana que funciona aqui como modelo, não apenas pelas razões atrás referidas, mas também porque estamos perante uma narrativa encaixada em que se relata um acontecimento de certo modo «pré-histórico», já que remonta a um tempo anterior ao da demanda do Graal); porque a concepção de Artur, o Pequeno é, como veremos,305 paralela à de Meraugis, que fora anunciada na pré-história

tristaniana;306 porque o filho de Artur será abandonado numa passagem que retoma uma

outra cena da pré-história de TP - o abandono de Apolo por Canor.

Cf. Demanda, § 361, pp. 270-271. Demanda, §361, p. 270.

Cf. infra, III, 1.2.

Cf. Curtis, T. I, § 178, p. 109.

O redactor da Demanda, porém, inova ao associar o esquema do caçador perdido ao crime de violação: em TP, os únicos crimes perpetrados junto da fonte são o homicídio e o abandono do recém-nascido Apolo, ainda que, como vimos, todos esses crimes decorram das paixões inspiradas pela sedutora Chelinde.308 Para proceder a esta

variação sobre o modelo, o redactor recorre a mais um motivo tradicional:

E aquela fonte era mui fremosa e achou ii ûa donzela soa, a mais fremosa rem que ele nunca viu. E era vistida e guisada tam ricamente que nom era se maravilha nom. Quando el-rei viu a donzela tam fremosa cuidou verdadeiramente que era fada porque siia soa.309

Afirma o narrador que o rei Artur pensou que a donzela era uma fada por ser muito bela e estar só. Acrescentemos ainda que o esquema do caçador perdido na floresta serve frequentemente de introdução ao encontro com a fada310 e que a riqueza das suas vestes

pode simbolizar a função fundamental da fada da fonte: o dom (que pode ser de amor, de riquezas ou de soberania).

Porém, o autor da Demanda elimina todas as dúvidas e todas as ambiguidades a propósito da natureza feérica da donzela, que não passa de uma simples suposição (eventualmente auto-desculpabilizadora) de Artur. Na verdade, a donzela é virgem, uma

minina que não sabia de tal cousa, que grita, tentando em vão libertar-se do violador, e

a cujo chamamento o pai acorre, embora tarde demais. Tal como na pré-história arturiana, o maravilhoso foi racionalizado e o encontro (perigoso) que se dá na fonte é entre o herói e as suas próprias paixões. Como veremos,311 a luxúria é o pecado mais

grave de Artur no ciclo do Pseudo-Boron, ou pelo menos aquele que melhor representa as suas fragilidades, já que une as primeiras páginas da Suite (em que se refere o incesto praticado com a irmã) às últimas da Mort Artu (com a sua morte às mãos de Mordret, o filho incestuoso).

A A *

O esquema do caçador perdido surge novamente associado a Artur num momento mais avançado da diegese, já depois da primeira invasão do reino de Logres.

Veremos também que a Suite associa o referido esquema à aparição da Beste Diverse, monstro que materializa o incesto, pecado maior de Artur Cf. infra, II, 1.1.

309 Demanda, § 361, p. 270. 310 Cf. supra, I, 1.1.

Samaliel, o cavaleiro das duas espadas que queria vingar a morte do pai, Froila, que havia sido morto por Artur, encontra, na floresta de Camalot, o rei de Logres adormecido. Ao saber, pelo escudeiro de Artur, de quem se trata, Samaliel pensa matá- lo, mas acaba por desistir do seu intento pois o rei Artur é o melhor rei do mundo, pelo que a sua morte seria uma catástrofe e o seu homicídio, um grande pecado. Samaliel deixa portanto a espada de seu pai no lugar da de Artur e parte.

Mais uma vez, tal como na pré-história de TP, a fonte é um lugar que atrai encontros perigosos e onde o crime pode acontecer a qualquer momento. Mais uma vez, como no episódio que analisámos acima, é Artur o caçador perdido:

e rei Artur aquele dia fora aa foresta por caçar e perderom-se dele todos seus homens fora uu escudeiro. El-rei era lasso e cansado de sa caça e deceu ante ua fonte e deitou-se a dormir e o escudeiro lhi guardou o cavalo (...).313

Se compararmos esta ocorrência do esquema em apreço com a anterior, veremos que falta a referência à aventura que conduz o caçador até à fonte (que surgia em todos os episódios da pré-história tristaniana). Por outro lado, o narrador refere que esto era a

entrada do inverno, o que distingue esta cena de todas as de TP, que ou não identificam

o momento do ano em que ocorre a partida de caça, ou a situam no Verão, em dia de grande calor. Apesar de tudo, parece-nos que, ao contrário do que acontecia nas cenas da segunda fase de redacção de TP, em que o redactor retomava o esquema narrativo com todos os seus elementos, mas depois fazia deles um uso superficial, aqui o sentido profundo da cena mantém-se: Artur, como a maior parte das personagens da primeira fase de redacção de TP, encontra-se num momento de grande vulnerabilidade. Na cena que acima analisámos, estava à mercê das suas próprias paixões, como Canor; na que agora nos interessa, está perante um perigo exterior, bem objectivo, como Sador e Pelias na pré-história de TP, mas também como o próprio Artur da Suite du Merlin, que é quase derrotado e morto na floresta de Camalot por Pelinor, o guardião da fonte.

À imagem do que se passa na cena da violação da donzela, o redactor deste nível da Demanda não se contenta com a utilização do esquema tópico que temos vindo a

311 d. Infra, m, 1.

312 Cf. Demanda, § 543, pp. 397-398. 313 Demanda, §543, p. 397

estudar, mas associa-lhe um outro esquema narrativo, oriundo, desta vez, dos poemas tristanianos. No romance de Béroul, Marc encontra Tristão e Iseu adormecidos na floresta do Morrois. Vendo que a espada de Tristão separa os seus corpos, decide não os matar e, em vez disso, substitui a arma do sobrinho pela sua e parte.314 Na cena da

Demanda, Artur está no lugar dos amantes e Samaliel no de Marc, e o que se pretende sublinhar, pelo menos à primeira vista, é a cortesia do cavaleiro estrangeiro, que põe o interesse da humanidade à frente da vindicta pessoal: o próprio Artur louvá-lo-á e decidirá homenageá-lo, passando a usar a espada que ele lhe deixou. À superficie do texto, é também notório o panegírico de Artur, breve mas hiperbólico, tanto na intervenção do escudeiro:

Ai, Senhor, mercee! Eu me calarei; outrossi fará todo o mundo, pois vós homem como este matardes, ca depois sa morte nom /raveram em que falar.315

como na do próprio Samaliel:

se eu rei Artur matar, que é o melhor rei do mundo e que sempre melhor e mais //onradamente manteve cavalaria ca outro rei, esto seerá a maior mala ventura e o maior pecado que nunca aveo em

Contudo, alguns indícios menos perceptíveis parecem-nos entrar em contradição com estas afirmações literais, como já acontecia, nomeadamente com o rei Artur, nos romances de Chrétien de Troyes. É que o discurso das personagens, tão fortemente encomiástico, contrasta com as falhas que o comportamento do rei sugere. Antes de mais, o sono profundo, do qual Artur não desperta nem quando o escudeiro tenta

314 Cf. «Le Roman de Tristan», w . 1979-2054, in Tristan et Iseut, pp. 114-116. Em TP, esta cena não é

retomada: o rei da Cornualha encontra Iseu só e aproveita a ausência de Tristão para levar a mulher de regresso a Tintagel (cf. Curtis, T. II, § 555, p. 152).

Numa cena tardiamente interpolada em TP, é o próprio rei Artur que, depois de se perder na floresta de Camalot durante uma partida de caça, encontra Tristão e Iseu profundamente adormecidos. O rei decide não cometer a descortesia de os acordar e deixa-os, mas quando Tristão desperta, apercebe-se de que alguém estivera junto deles, pois a sua espada avoit esté remuée du leu ou il l'avoit mise (ms. 757, T. II, p. 312). Esta cena é certamente posterior à segunda fase de redacção de TP, já que a passagem em que se integra (ms. 757, T. II, pp. 254-336) recorre frequentemente à Queste como reservatório de topoi (como o da barca maravilhosa que transporta os eleitos, modelo da nef de Joie que transporta os amantes), os quais são depois desenvolvidos num texto bastante particular, que deverá ter sido tardiamente interpolado, tanto mais que não deixa vestígios na versão longa de TP nem em episódios posteriores de

TP1. Com efeito, durante o torneio de Louveserp, Artur disfarça-se para ir visitar Tristão e Iseu pois

quer comprovar a tão falada beleza da rainha, que ele nunca pudera admirar (ms. 757, T. Ill, pp. 374ss).

315 Demanda, § 543, p. 399. 316 Ibidem.

acordá-lo para o salvar, faz lembrar os momentos de abatimento e alienação tão comuns no rei Artur.317 Por outro lado, a sua enorme vulnerabilidade parece dever-se a uma

conduta imprudente e indigna de um rei, já que Artur se deixou levar pela paixão da caça, perdendo-se na floresta e expondo-se gratuitamente ao perigo. Ora, a ideia de que um rei não deve arriscar a vida porque a sua morte poderia ter consequências desatrosas para todo o reino está presente na pré-história tristaniana, onde o rei Marc, que se prepara para iniciar um duelo, é censurado por um escudeiro nos seguintes termos:

Ha! sire (...), ce n'est mie sens que vos faites. Puis qu'il est en vostre terre, bien dévissiez autre envoier en ceste besoigne que vostre cors, car si vos mescheoit ici par aucune aventure, toz cest reaume en remandroit honiz et avilliez, et vos meesmes en remendriez abessiez et trop desonorez.318

Nas duas cenas onde Artur protagoniza o esquema do caçador perdido - esquema narrativo que, como vimos, é por várias vezes protagonizado por Marc em TP - tudo se conjuga, portanto, para aproximar o rei de Logres e o rei da Cornualha. Veremos que não se trata aqui de um caso isolado, mas de uma estratégia consistente que tem como objectivo denegrir imperceptivelmente Artur.