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DA BESTE DIVERSE À BESTA LABRADOR

1. A BESTE DIVERSE NA SUITE DU ROMAN DE MERLIN

1.3. O cervo e o sacrifício

É possível que o autor da Suite du Merlin tenha tido a intenção de fazer do filho de Pelinor o descobridor do sentido simbólico da Besîe Diverse, embora seja temerário afirmar, como Gilles Roussineau, que la vérité de l'aventure est que la beste sera

dévorée par ses petits, tout comme Arthur périra sous les coups de Mordret, qu 'il a engendré.50 Com efeito, ainda que a relação da Besta com o incesto seja evidente (e será

aliás explorada na Demanda), a sua morte não seria provavelmente idêntica à que encontrámos no romance de Gerbert e no Perlesvaus. Tudo leva a crer que a introdução do motivo da demanda da Besta teria como consequência o adiamento da sua morte para um futuro relativamente longínquo, no termo de uma longa perseguição.

No entanto, a cena do homicídio do animal pelos seus filhotes parece estar na origem de uma outra aventura de carácter maravilhoso (designada pelo narrador como uma «aventura do Graal», do mesmo modo que a aparição da Besta) - a Aventura do Padrão do Cervo.51 Paradoxalmente, é uma cena à primeira vista independente do

motivo da Besta que parece sugerir que o autor da Suite teria conhecido não apenas o Perlesvaus, mas também a versão reproduzida pela Continuation de Gerbert de Montreuil. Já referimos que, na Suite, a Besta está estreitamente ligada à fonte: não apenas é nesse cenário que se dá a sua única aparição, mas Pelinor, o cavaleiro que a persegue, guarda uma fonte (porventura a mesma), perto da qual luta com Girflet e depois com Artur. É também perto de uma fonte que Pelinor deixa morrer a filha. Ora, é na Fontaine Aventureuse que uma donzela de traços feéricos revela a Ivain o significado do Padrão do Cervo. Num romance onde este cenário tópico é relativamente raro, esta circunstância contribui, desde já, para aproximar as duas

maravilhas.

Mas observemos de perto a aventura do Padrão. Um dia o Morholt, acompanhado por uma donzela e um escudeiro, chega a uma encruzilhada onde se

50 Suite, p. 640 (n. 17, 22).

51 F. Bogdanow já o havia notado no seu estudo The Romance of the Grail (cf. p. 189). Note-se ainda

que a designação «aventura» ou «maravilha do Graal» distingue apenas, na Suite, três fenómenos: a aventura do Perron du Cerf (cf. § 480, p. 438; § 506, p. 472; § 509, p. 476), a aparição da Besta e a busca do cervo levada a cabo por Galvão (cf. § 277, pp. 233-234).

erguem uma cruz e um padrão de mármore belo como um altar. Uma mensagem talhada na pedra anuncia que nesse local puet l'en veoir avenir des merveilles du Saint Graal

grant partie^ e que todos aqueles que decidirem ficar para assistir a essas maravilhas

serão feridos ou morrerão até que o Bom Cavaleiro ponha termo à aventura. Aparentemente inconscientes do perigo que correm, o Morholt e seus companheiros decidem passar a noite nesse mesmo local e assistem a um combate entre dois cavaleiros, junto da cruz. Depois de um duelo longo e violento, os guerreiros beijam-se e partem

sem uma palavra. É então que surge

une beste aussi grant comme ung cerf. Le cerf vint grant aleure vers la croix et sault dessus le perron, si se couche maintenant. Et ne demeure gaires que celle part vindrent .1111. lévriers plus blans que noif. Et la ou ilz voient le cerf, ilz ly corrent erranment et le prenent de toutez pars, si l'estranglent et boivent tant de sang de luv qu'il/

sont si gros qu'ilz ne peuent en avant aler, ains se couchent

dejouste luy, si enflés et si saoulx qu'a pou qu'ilz ne partoient. Si n'y orent pas granment demoré quant celle part vint ung dragon volant gitant feu et flambe. La ou il voit les lévriers, il prent le premier et le devore, et puis le segont, et puis le tiers, et puis le quart. Et quant il lez a tous dévorés, il se coche dessus le cerf et le cueuvre de soy mesmes ainsi comme s'il voulsist le cerf eschauffer. Si le commence a lechier toutes les plaies que les lévriers li avoient faictes et Palainne d'une part et d'autre en tous les lieux ou il avoit esté navrés. Et quant il a grant piece esté sur luy, il se commence a estendre desus le perron et a voltrer et a tourner soy ce dessus dessoubz et a faire si maie fin comme se la mort le tenist. Tant se tourne amont et aval qu'il chiet du perron a la terre. Et lors commence a ouvrir la bouche et ne demeura gaires qu'il met hors l'un des levriés qu'il avoit dévorés, et puis le secont, et puis le tiers, et puis le quart, et les mist hors en tel manière qu'ilz estoient tous vifz. Et maintenant qu'il s'en fu délivrés, ilz s'en revont sur le perron. Et quant le cerf, qui par l'eschaufement du serpent avoit vie recouvrée, voit les lévriers dejouste luy, il sault du perron a terre et s'en tourne fuyant grant erre et se fiert en la forest. Et les lévriers revont après glatissant et refaisant greigneur noise que ne feissent autres .X.. Et le serpent raqueil son vol et s'en rêvait d'autre part en la forest, si que en peu d'eure se fut moult esloignés de la croix.54

Tal como o Graal, esta maravilha é perigosa para aqueles que não são os eleitos. Assim, segundo uma gradação que associa o mérito espiritual e a hierarquia social, a donzela e o escudeiro morrem feridos por uma lança invisível, enquanto o Morholt é simplesmente

féru parmy les cuisses.^ Mais tarde, também Ivain chega ao Padrão do Cervo,

igualmente acompanhado por uma donzela e um escudeiro e, tal como o seu antecessor,

Cf. supra, I, 1.2.

Suite, § 480, p. 438.

Suite, § 481, pp. 440-441; sublinhados e destacados nossos. Suite, § 483, p. 442.

decide passar a noite junto do padrão. Keu e Girflet aproximam-se com a intenção de ficarem junto deles, esperando alguma manifestação sobrenatural, mas são afastados do local por duas donzelas (uma delas monta um palafrém branco e a outra um palafrém negro), que lhes pedem para as acompanharem. Os cavaleiros de Artur não podem recusar o pedido e partem com elas, enquanto as outras três personagens ficam junto do padrão. Ouvem o combate entre os dois misteriosos cavaleiros embora nada vejam, já que a noite está muito escura, mas sofrem as mesmas consequências que os seus predecessores pela ousadia demonstrada. A donzela expira, lançando um grito lancinante tal como a que acompanhava o Morholt; o escudeiro também morre; Ivain é ferido no ombro por uma arma misteriosa.

A aventura do Padrão, típica da Suite du Merlin pelo tom trágico e por uma certa crítica implícita à demanda do Graal, responsável por tanto sofrimento, é uma representação bastante evidente da morte de Cristo e da sua ressurreição, tal como a cena do Perlesvaus. O autor da Suite, combinando diversos elementos que se encontram no romance francês e na crónica de Malmesbury, preferiu associar a figura da Besta ao rei Artur, retendo também a ideia de sacrifício, que optou por relacionar, de uma forma menos original mas mais ortodoxa, com o cervo.58 Erguendo junto da cruz um padrão

com uma mensagem que anuncia uma aventura perigosa, integra o episódio numa tradição que já vem pelo menos de LP, onde este motivo assinalava por vezes a entrada em território hostil;59 plantando a cruz numa encruzilhada de quatro caminhos, reforça o

seu simbolismo microcósmico e sacraliza o lugar. O padrão assemelha-se aliás a um altar e desempenha essa função, já que a morte e a ressurreição do cervo-Cristo aí têm lugar.

56 Cf. Suite, §§ 504-505, pp. 469-471.

'7 Um cavaleiro que surge mais tarde comenta: «Onques mais de tel mescheance n 'oy parler a nul

homme du monde (...) mes nul ne s'en doit esmerveiller, car ce sont des aventures du Saint Graal.»

(Suite, § 484, p. 444). Keu e Girflet dirão a propósito da mesma aventura: ainsi espant Nostre Seigneur

ses vengences sur les justes et sur les pécheurs tout a sa volenté (Suite, § 506, p. 472). Enquanto LP

(cf. T. V, XCVI, 9, p. 211; XCVIII, 40, pp. 266-267; T. VI, C, 42, p. 26; CI, 3, p. 52), e a Queste (cf.

Demanda, § 16, p. 30) repetem que as maravilhas ou aventuras do reino de Logres se destinam a ser

acabadas pelo cavaleiro do Graal, na Suite, as maravilhas e aventuras felonneuses são muitas vezes atribuídas ao Graal, como se esse objecto e a sua busca fossem os primeiros responsáveis por todas as desventuras dos heróis desse romance.

58 Nos bestiários, o cervo que espezinha a serpente representa Cristo vencendo o Diabo (cf., por exemplo,

Le Bestiaire de Pierre de Béarnais, p. 83 e «Il Bestiaire di Philippe de Thaûn», in Bestiari Medievali, éd. Luigina Morini, Torino, Giulio Einaudi, 1996, p. 150). Na Queste, o cervo no centro do

tetramorfo representa Cristo rodeado dos quatro Evangelistas (cf. QV, p. 236 e Demanda, § 436, pp. 323-324).

Finalmente, o estranho duelo junto da cruz entre os dois cavaleiros amigos (no episódio do Morholt) e as duas donzelas que aparecem, uma delas montada sobre um palafrém branco e a outra sobre um palafrém negro (na aventura de Ivain) retomam a oposição entre dois elementos semelhantes presente tanto no Perlesvaus como na Continuation, na cena em que dois religiosos se dedicavam, um a adorar e o outro a fustigar o instrumento da Paixão.

Recordemos que, apesar da presença da cruz, a ideia de sacrifício não é evidente no romance de Gerbert de Montreuil. Porém, por alguns outros pormenores, o episódio da Suite parece singularmente próximo da Continuation de Perceval. Assim, no que diz respeito à mensagem sobre a cruz, na encruzilhada: uma centena de versos antes da aparição da Besta, Perceval chegava a um chemin for chie onde se encontrava uma cruz em que estava pregado um pedaço de pergaminho com a seguinte mensagem:

«Vous qui chevalchiez,

Tornes le grant chemin a destre: C'est la voie de Durecestre Qui la gent maine asseùrté; L'autre voie est par vérité Par non la Voie Aventureuse: Molt est a errer périlleuse.»60

Como era de prever, Perceval escolhe a Via Aventurosa, que o há-de conduzir a um país devastado onde ele encontra várias donzelas chorando os seus amigos carbonizados e, finalmente, à visão da Besta. Recordemos ainda que, na Suite, os galgos, cheios com o sangue do cervo, incham tanto qu'a pou qu'ilz ne partoient62

Ora, a Besta da Continuation, atacada pela sua ninhada, en deus est partie et sevrée.^ Finalmente, no romance de Gerbert os cachorros devoram a mãe, enquanto no Perlesvaus eles se limitam a despedaçá-la, abandonando-a em seguida; a aventura da

La Continuation de Perceval, w. 8258-8264, p. 64. Como vimos na nota anterior, este tipo de

mensagens é frequente na literatura arturiana (cf. ainda Demanda, § 63, p. 63): a semelhança entre os dois textos não seria significativa se não estivesse associada a outros elementos comuns.

As referências repetidas a um fogo destruidor, na Continuation, poderão estar relacionadas com um contexto canicular, que também marca as aparições da Besta na Suite (cf. infra, II, 1.4.).

62 Suite, § 481, p. 440; sublinhado nosso.

63 La Continuation de Perceval, v. 8400, p. 47; sublinhado nosso. Note-se ainda uma outra semelhança

literal, relativa, desta vez, ao episódio da Besta: a fórmula la beste qui prainz estoit (ms. de Cambridge, f. 230d - citado por F. Bogdanow no artigo «L'amour illicite...», p. 26, n. 53-54) à quase idêntica à utilizada na Continuation: Car la Beste, qui tote est prains (v. 8382).

Suite está assim, também graças a este aspecto, mais próxima da Continuation de Perceval, visto que também contém o motivo da devoração.

Por outro lado, para além da interpretação sacrificial das duas maravilhas e do facto (que sugere o sacrifício) de os animais serem despedaçados junto de uma cruz, outras semelhanças (bem menos importantes) unem a Suite e o Perlesvaus. Na Suite, os galgos são plus blans que noif,64 tal como a Besta do Perlesvaus, blanche comme

nois negiee,65 mas os animais brancos que guiam os cavaleiros para a aventura são

frequentes na literatura arturiana.66 Finalmente, o animal do Perlesvaus, doce e

inocente, está sem dúvida mais próximo do cervo da Suite do que do grande animal da Continuation.

Sintetizemos agora os aspectos mais importantes que ligam os quatro textos que temos vindo a confrontar:

64 Suite, § 481, p. 440.

65 Perlesvaus, 1. 5495, p. 239.

66 Os animais cuja brancura é comparada à alvura da neve são aliás muito numerosos na literatura

arturiana em prosa. Na Deuxième Continuation, por exemplo (cf. The Continuations of the Old

French Perceval of Chrétien de Troyes (ed. W. Roach), Philadelphia, The American Philosophical

Society, T. IV - The Second Continuation, 1971) há um brachez blans come nois (v. 20701) e uma mula

qui plus est blanche / Que n 'est nois negiee sus branche (w. 25457-89). Em LP, Lancelot vê passar um cerf plus blanc que noifnegie rodeado de seis leões (T. V, XCIII, 26, p. 133).

Gesta Perlesvaus Cont. de Gerbert Suite

0 Rei Edgar parte para a caça, afasta-se e repousa junto da água / árvore.

0 Rei Artur parte para a caça, afasta-se e repousa junto da água / árvore.

0 Rei vê uma cadela que traz no ventre cachorros que ladram.

A cadela traz no ventre cachorros que ladram.

A cadela traz no ventre cachorros que ladram.

0 Rei vê uma cadela que traz no ventre cachorros que ladram. 0 monstro anuncia o

futuro do seu reino.

0 monstro está relacionado com o futuro do seu reino. A cadela é dilacerada

pela ninhada ao dar à luz.

A cadela é devorada pela ninhada ao dar à luz (depois de se abrir em dois); os cachorros entre-devoram-se.

0 cervo é estrangulado por cães que bebem o seu sangue (a pou

qu'ilz ne partoient) e

são devorados por um dragão, que se agita com os animais no ventre e os vomita. Encruzilhada com cruz

e pergaminho com mensagem: a Voie

Aventureuse é muito

perigosa.

Encruzilhada com cruz e padrão com mensagem talhada, o local é muito perigoso.

A cruz adorada e fusti- gada remete para a ambivalência da Paixão.

A cruz adorada e fusti- gada remete para a ambivalência da Paixão. Cruz e padrão; a aventura do padrão remete para o sacrifício.

Dois religiosos junto da cruz: um adora-a, o outro fustiga-a.

Dois religiosos junto da cruz: um adora-a, o outro fustiga-a.

Dois cavaleiros junto da cruz: travam duelo e depois beijam-se. A morte da Besta

representa o sacrifício de Cristo.

A morte do cervo remete para o sacrifício de Cristo.

As duas cenas da Suite que acabamos de analisar - a aparição da Beste Diverse e a aventura do Padrão do Cervo - comportam, portanto, elementos que se encontram, independentemente, nos Gesta Regum Anglorum, no Perlesvaus e na Continuation de Gerbert de Montreuil. Ora, é pouco provável que, para a constituição destas duas cenas, o autor da Suite tenha utilizado três textos diferentes que exploravam o mesmo motivo. Por outro lado, os elementos comuns que encontramos na Suite e em Gerbert (o único texto que podemos considerar eventualmente posterior à Suite) não podem explicar-se pela influência do nosso romance sobre a Continuation, dada a sua associação à aventura do Padrão do Cervo e não ao motivo da Besta. Restam portanto,

grosso modo, duas hipóteses: a Suite ter-se-ia inspirado na fonte da Continuation e do

Perlesvaus, versão que teria combinado com os Gesta, ou então teria conhecido uma versão contendo todos os traços que detectámos na cena da aparição da Besta e na do Padrão do Cervo.

•kick

Tal como o episódio em que Artur avista a Besta, também a passagem do Padrão do Cervo é destituída de qualquer explicitação alegórica, mas a sua aparente riqueza simbólica encobre na verdade um processo de racionalização do motivo da Besta que anuncia os seus desenvolvimentos ulteriores: a Beste Diverse, pela sua condição de animal perseguido, transforma-se logicamente em cervo, tanto mais que este animal é frequentemente, na literatura bretã, um guia para a aventura e o sobrenatural (é essa, aliás, a função do grande cervo que Artur persegue antes da sua visão do monstro); os cachorros que ladravam no ventre materno tornam-se galgos perseguindo a presa; os cães são agora apenas quatro, mas produzem um ruído igualmente ensurdecedor: [ils]

/TO

revont après glatissant et refaisant greigneur noise que ne feissent autres .X.

Finalmente, a perseguição sempre recomeçada do cervo parece reproduzir a busca sem fim da Diverse Beste.

Como vimos, há poucas certezas quanto à relação das Continuations com o ciclo da Vulgata, e menos ainda quanto à sua relação com o ciclo do Pseudo Boron. A nosso ver, trata-se de um texto compósito, cujo lugar nos textos do Graal é um problema complexo. É possível que algumas partes deste romance remontem a uma data mais recuada e que outras sejam mais recentes, mas não podemos ainda pronunciar-nos sobre o assunto.

68 Suite, § 481, p. 441. Note-se que não é apenas a referência aos ladridos, mas também a estrutura

comparativa que une os dois episódios. Aquando da aparição da Besta, o narrador dissera que se ouvia

Quanto ao dragão, o terceiro actante a surgir em cena, também é maltratado pelos cães, do mesmo modo que a Besta (e o cervo); tal como a Besta, encerra-os no seu ventre para depois os expelir. A sua presença é justificada do seguinte modo por Fanni Bogdanow:

dans la Post-Vulgate [1'aventure du Perron du Cerf] se présente comme une des merveilles du Saint Graal que seul le Bon Chevalier

saura terminer. Par conséquent il fallait que cette aventure puisse constamment se répéter. Voilà pourquoi il importait que le cerf et les lévriers revinssent à la vie. D'où l'introduction du dragon qui réanime le cerf et écarte les lévriers jusqu'au moment où la chasse du cerf doit recommencer.69

Também a repetição da aventura do Padrão do Cervo (que é primeiro vivida pelo Morholt, e depois por Ivain) sublinha essa ciclicidade que marca os tempos anteriores ao surgimento do Bom Cavaleiro. Porém, a interpretação de Bogdanow, que não vai além da superfície do texto, não explica porque é que o autor introduziu o dragão e não outro animal suficientemente grande e feroz para poder devorar os galgos.

A verdade é que a associação do dragão e do cervo remete para a ambiguidade da Besta (que se caracteriza por uma grande vulnerabilidade sugerida pelo sofrimento e a fuga, por um lado, e uma monstruosidade aterradora, por outro), já que conjuga princípios opostos: o dragão/serpente,70 que representa o inferno ou o diabo nas

Escrituras e nos bestiários, opõe-se naturalmente ao cervo, que simboliza o homem virtuoso ou Cristo; o monstro nocturno opõe-se ao cervo solar como a matéria ao espírito. Aliás, segundo o Fisiólogo72 e os bestiários,73 o cervo é o inimigo da serpente,

que atrai cuspindo água e soprando nos buracos onde ela se esconde, para em seguida a espezinhar até à morte. Mas quando envelhece, necessita da sua velha inimiga para se regenerar: depois de a ter devorado, bebe grandes quantidades de água pura ou banha- se na nascente para neutralizar o veneno, e assim renova a pelagem e as hastes. Esta

«L'amour illicite...», pp. 22-23.

Dragon e serpent são, em francês antigo, termos intercambiáveis, como o prova o próprio texto da

Suite: na última frase da passagem acima citada, o termo dragon é substituído por serpent (cf. Suite, § 481, p. 442). Segundo Isidoro de Sevilha, Draco maior cunctorum serpentium (Etym., XII 4,4).

71 Cf. Ap. 12, 9; 20, 2.

'2 Cf. «II Fisiólogo latino: versio bis», in Bestiari Medievali, p. 70 (XXX - Cervus, et quomodo de

foramine extrahit serpentem).

última «natureza» do cervo não foi transmitida nem por Pierre de Beauvais nem por Philippe de Thaún, mas está presente em Brunetto Latini74 e Gervaise75 e remonta à

Antiguidade pagã,76 tendo sido retomada pelos autores cristãos da Alta Idade Média.

É uma manifestação do poder de regeneração universalmente atribuído ao cervo, cujas hastes se renovam periodicamente,78 tal como à serpente, que se liberta ciclicamente da

sua velha pele.79

Ora, o que é surpreendente na cena da Suite é que o dragão apareça como um aliado do cervo: já não é este último que incorpora violentamente o poder de regeneração do réptil devorando-o, mas o próprio dragão que acorre e, quase amorosamente, o cobre com o seu próprio corpo para lhe transmitir um calor vivificador, lambendo-lhe as chagas para as curar. Assim, as oposições de ordem moral apagam-se face às harmonias simbólicas: o processo cíclico vivido pelo cervo, o dragão e os cães remete para o sacrifício e para o seu potencial regenerador graças a uma hábil utilização das imagens, que funcionam para além de uma simples identificação alegórica da paixão de Cristo. Também neste aspecto, a escolha do dragão revela a sua