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Depois da definição das duas primeiras fases de redacção de TP - identificadas graças ao estudo do motivo das fontes no capítulo anterior - procederemos agora ao isolamento da terceira fase, essencial para compreendermos a evolução do motivo em análise. Para isso, foi necessário ultrapassar um pouco o âmbito deste capítulo e verificar quais eram, de entre os segmentos textuais onde a figura da Besta ocorria, aqueles em que o tema do ódio entre linhagens - identificado por Fanni Bogdanow como um dos temas do ciclo da Post Vulgata e que trataremos no capítulo IV - aflorava. Compreendemos assim que a terceira fase de redacção se pode detectar desde muito cedo no desenvolvimento da diegese (no T. III da edição de Curtis) e também que o terceiro redactor, mais próximo do primeiro redactor tristaniano e do redactor da Suite do que do seu antecessor imediato, é mais fiel do que ele à Besta original, cujas implicações simbólicas compreende sem dúvida melhor.

2.1. A herança da Suite du Merlin

Aquando da sua viagem à Cornualha, aonde Tristão decide regressar depois de receber uma carta de Iseu censurando-o pelo seu casamento com Iseu das Brancas Mãos, uma tempestade empurra o navio para a floresta de Damantes, na fronteira entre os reinos de Norgales e de Logres. Tristão vive nesse lugar inóspito diversas aventuras em companhia de Kahedin, mas acaba por se separar do seu amigo, ferido por Lamorat, para prosseguir a sua errância com este último. Um dia em que cavalgavam na floresta, chegam a um vale:

Et lor avint ensi qu'il troverent desoz une sicamor une fontene mout bêle et mout delitable. Il descendent por eus reposer, car li chauz

estoit levez granz et merveilleus. Et la ou il voloient oster les seles

et les froins por lor chevax lessier pestre, il regardent et voient venir tote la valee une beste la plus diverse et la plus merveilleuse dont il onques oïssent parler, car ceie beste avoit tot droitement piez ce (sic)

cerf, cuisses et queue de lion, cors de liepart [et teste de serpent]149; et

issoit de li uns glatissemenz si granz com s'ele eiist dedenz li dusqu'a vint brachez toz glatissanz. Que vos diroie je? De la beste issoient tant de voiz de brachez que de cez voiz et de celé noise retentissoit tote la valee. Et quant ele comença a aprochier de la fontene, Lamoraz dit a Tristan: «Mesire Tristanz, oïstes vos onques parler de

la beste glatissant?» «Ha! dit Tristanz, oïl, sanz faille. C'est ceste

beste qui ci vient. Je l'entent bien au glatissement que ele moine. Onques mes ne vi si merveilleus ne si diverse come ele est.» Por parole que li chevalier dient entr'ex ne lesse la beste a venir a la fontene, enz saut enz et boit tant com il li plest. Et quant ele a beii,

ele s'en revet si grant erre que a merveilles vos tornast de s'inelesce. «Mesire Lamoraz, dit Tristanz, or après! Sivons ceste

beste por savoir se nos porriens aprendre d'où cil glatissement

vienent qui de li issent.»150

Tendo iniciado a perseguição do estranho animal, os dois companheiros avistam um cavaleiro solitário, aproximando-se a grande velocidade, si grant erre com se la foudre

le chaçast151 Lamorat, que o conhece, diz que se trata do melhor cavaleiro depois de

Lancelot. Desafía-o, mas o cavaleiro estranho derruba-o e vence o próprio Tristão. Depois, vai-se si grant erre après la beste com s'il veïst devant li la mort qui le

chaçast.152

Esta aparição da Beste Glatissant tem muitos pontos em comum com a da Suite du Merlin. Como Artur nesse romance, Tristão e Lamorat param junto de uma fonte, perto da qual se ergue uma árvore, para repousar. É então que vêem chegar uma beste

diverse e merveilleuse: os adjectivos são os mesmos que os utilizados pelo narrador da

Suite. A velocidade extraordinária do animal e a sua sede, que ele acalma bebendo na fonte, unem também os dois episódios. Tristão e Lamorat decidem seguir a besta para tentar compreender aquela maravilha: não tiveram tempo para descer dos cavalos e passam imediatamente à execução do plano, enquanto Artur, que perdera o cavalo, não pode fazê-lo, ficando imóvel e pensativo. No entanto, nos dois episódios, depois do desaparecimento da Besta (que tinha suscitado nos presentes uma enorme surpresa), um novo cavaleiro surge: trata-se do cavaleiro que faz da perseguição do monstro a sua missão pessoal.

Esta variante ocorre na maior parte dos manuscritos (M, W, E, 334, Ch2, Fam. b,c,d). Cf. Curtis, T.

III, p. 256.

150 Curtis, T. III, § 790, p. 100 (Lõseth, 71a); sublinhados e destacados nossos. 151 Curtis, T. III, § 791, p. 100.

Evidentemente, já não é de Pelinor que se trata em TP, pois o arco cronológico coberto por este romance é posterior à morte do pai de Perceval. Lamorat afirma que o cavaleiro que persegue a Beste é o melhor do mundo depois de Lancelot, mas não o nomeia: ao contrário do que se passa aquando das outras aparições da besta em TP, Palamedes não é explicitamente identificado como o Chevalier a la Beste Glatissant. Ora, o que é interessante neste episódio, é que Lamorat acompanha Tristão no momento preciso em que este avista a Besta pela primeira vez, como se a sua presença servisse para fazer a ligação com o episódio da Suite em que era seu pai, o rei Pelinor, que desempenhava o papel que será dado a Palamedes. A presença de Artur na floresta de Damantes (Tristão e Kahedin andam em busca do rei desaparecido) confirma a pertinência desta aproximação, tanto mais que é nesta mesma floresta que, segundo TP, se encontra o túmulo de Merlim: o narrador do Tristan esclarece que o mago avoit esté

enfoiz toz vis par la Demoisele dou Lac,154 tal como relatara a Suite. É verdade que LP

já evocava a morte de Merlim às mãos da donzela do Lago e localizava o seu túmulo na floresta de Damantes, numa breve referência155 que poderia ter sido ampliada pela Suite

(que porém não refere Damantes) e retomada independentemente por TP, mas a associação de todos os elementos acima referidos não deixa dúvidas de que, nesta passagem de TP, o redactor pretende evocar a Suite du Merlin (harmonizando-a com LP através da referência a Damantes): não é certamente por acaso que o autor tristaniano de TP reúne numa mesma floresta a Besta e o túmulo do mago, duas

maravilhas da Suite. E também não será por acaso que Kahedin afirma que essa floresta

1 Segundo Lõseth (§ 71a, n. b), na Tavola Ritonda, o cavaleiro que persegue a Besta é, neste episódio,

Perceval, embora mais tarde a busca do monstro passe a ser a missão de Palamedes. O romance italiano expõe assim mais claramente a transição entre a tradição da Suite du Merlin (onde Perceval, o cavaleiro virgem, é anunciado como o sucessor de seu pai nesta missão) e a tradição de TP, que cria a personagem de Palamedes, transferindo para ele esta estranha demanda.

154 Curtis, T. III, §781,p. 91.

15 En la fin sot ele tant par Merlin qu 'ele l'engigna et le seela tout en une cave dedens la périlleuse

forest de Damantes qui marchist a la meir de Cornouaille et al roialme de Soreillois (LP, T. VII, Via,

10, p. 43). Note-se, porém, que esta referência de TP à morte de Merlim não é a única, pois já no T. I da edição de Curtis, o narrador afirma que Merlim onques ne se sot si bien garder que la dame dou Lac ne

le me'ist a mort par les enchantemenz qu 'il li avoit apris. Et se ne l'ocist pas par armes, enz le mist en terre tout vif, si enchanté qu 'il n 'avoit pooir de soi remuer, et l'enserra illec par force de paroles, si merveilleusement que puis ne s'en remua; d'où ce fu domaiges quant si granz sens et si granz soutillance fu tornee a néant par le sen d'une feme a qui il voloit plus de bien que a soi meïsmes.

(Curtis, T. I, § 414, p. 205; sublinhados nossos). Ainda que TP não infirme a lacónica passagem de LP e que esta observação surja num momento em que o narrador evoca um episódio deste romance (o escudo fendido oferecido pela Senhora do Lago a Lancelot), as expressões sublinhadas não poderiam ter- se inspirado no Lancelot, mas estão de acordo com a versão mais desenvolvida da Suite.

é aventureuse, atribuindo a este espaço -fronteira um traço fundamental do reino de Logres no ciclo do Pseudo-Robert de Boron.

Tendo sido derrubados pelo cavaleiro da Besta, Tristão e Lamorat partem em perseguição do estranho animal e separam-se. Depois de dois ou três breves encontros, Lamorat chega a um vale onde avista um cavaleiro qui venoit mout grant erre.1 O

leitor, que vira, alguns fólios atrás, o Cavaleiro da Besta aparecer num vale a grande velocidade, e que sabe, além disso, que Lamorat o procura, não poderá deixar, num primeiro momento, de o identificar com esta nova personagem que derruba Lamorat, tanto mais que o narrador utiliza, para traduzir a sua velocidade extraordinária, uma expressão que já fora utilizada para descrever a chegada do cavaleiro da Besta158: si

grant erre com se la foudre le chaçast.159 Saberemos, porém, algumas linhas à frente,

que se tratava de Artur. Ora, estas estranhas semelhanças que aproximam Artur e o cavaleiro que persegue a Beste Diverse respeitam o espírito da Suite e resultam certamente de um profundo conhecimento desse romance, onde o paralelismo entre Artur e Pelinor - entre o rei e o caçador da Besta - se constrói, como vimos, graças a indícios numerosos mas subtis.

Voltemos à aventura que atrai Tristão e Kahedin à «floresta aventurosa». É para ir em busca de Artur que eles deixam por alguns dias o navio que os levava para a Cornualha, e é a história do encantamento do rei, vítima de uma fada que o aprisionara depois de o seduzir, que este narra depois da sua libertação por Tristão, aventura que fecha a série de episódios de Damantes. Ora, mesmo se o tema do rei enfeitiçado remonta a LP e ao episódio da Falsa Genebra, as donzelas com poderes sobrenaturais são numerosas na Suite, quer se trate de Nivienne, de Morgana ou das fadas da Roche

as Puceles. Diga-se ainda que os seus mágicos poderes estão estreitamente ligados aos

seus dotes de sedução ou ao seu apetite sexual: vejam-se Nivienne aprendendo os segredos de Merlim por ela seduzido, Morgana e seus múltiplos amantes, as donzelas da

Roche tornando-se amantes de Galvão e do Morholt. Como na Suite, é uma imagem

sombria do amor que transparece aqui: o amor já não é simplesmente prisão, como em

156 Curtis, T. III, §781,p. 92.

157 Curtis, T. III, § 798, p. 107; a expressão é repetida por duas vezes no mesmo capítulo. 158 Cf. Curtis, T. III, § 791, p. 100.

alguns episódios de LP, mas esquecimento e alucinação. Eis um aspecto que vai beber ao filtro da matéria tristaniana, mas que só raramente será explorado em TP.

A história do encantamento de Artur parece inspirar-se num episódio bastante

remoto do Tristan en Prose, que prepara o nascimento do herói.161 Meliaduc, o pai de

Tristão, vai caçar na floresta e encontra uma donzela que o atrai prometendo mostrar-lhe uma aventura; é também dessa forma que a donzela feiticeira leva Artur para a floresta

de Damantes.162 Em ambos os episódios, uma donzela leva um rei para a torre onde vive

e onde o monarca cede aos seus encantos, esquecendo terras, súbditos e mulher. Artur e Meliaduc serão finalmente libertados e Merlim, no episódio do T. I, tal como Artur, no do T. III, insistem na necessidade de matar as donzelas para que elas não continuem a

praticar o Mal.164 Com efeito, se a aventura de Artur não terá consequências, o

desaparecimento de Meliaduc provoca o nascimento prematuro de Tristão e a morte de sua mãe, que partira para a floresta em busca do marido. O motivo do rei perdido na floresta, frequente na pré-história de TP mas raro, em geral, nos romances em prosa, expõe-no a grandes perigos e representa um momento de fragilidade da instituição monárquica. Na Suite du Merlin, Artur desaparece por uns dias na floresta, onde afronta a revelação do seu crime de incesto e combate contra um poderoso adversário, o rei Pelinor. Na pré-história tristaniana, Canor, Pelias e Apolo vêem-se por várias vezes expostos aos perigos deste espaço hostil, chegando a escapar por pouco à morte. A tradição justifica, portanto, a angústia do ermita que anuncia a Tristão o desaparecimento de Artur:

Et il lor dist que assez estoit sanz faille aventureuse la forest et merveilleuse, «mes d'aventure, fait li preudons, qui i avenist a mon tens ne me pesa autant com il me poise del roi Artus qui en ceste forest se mist ja a trois mois passez, si en est si avenu que onques puis ne s'en pot partir ne oissir, enz vet forvoiant sus et jus de jor en jor, et revient ci a chief de foiz. Et por la grant demeure que li rois fait en

159 Curtis, T. III, §798, p. 107.

160 Cf. A. S. Laranjinha, «Da decifração e do amor no Roman de Tristan en Prose», in Da Decifração

em textos medievais. IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa, Colibri, 2003, pp. 111-122.

161 Trata-se dos §§ 224ss, pp. 124ss do T. I da edição de Curtis. A crítica inglesa, aliás, assinalou a

semelhança entre os dois episódios na sua Introdução ao T. III (cf. p. XVIII).

152 Cf. Curtis, T. Ill, § 823, p. 129.

163 Cf. Curtis, T. I, § 225, p. 124-125 e Curtis, T. Ill, § 823, p. 129-130. 164 Cf. Curtis, T. I, § 233, p. 127 e Curtis, T. Ill, § 822, pp. 129-130.

ceste forest est toz li reaumes de Logres troblez trop malement, car tuit cuident auques vraiement qu'il soit morz.»165

Por todos os argumentos até agora apresentados, poderia parecer que, ao contrário da longa passagem que o antecede e onde são relatadas as aventuras de Brun le Noir, o Valet a la Cote Mautailliee,166 o episódio em que se integra a aparição da Beste

Glatissant se aproxima do que já identificámos como «a primeira fase de redacção de

TP». Com efeito, após uma longa série de aventuras puramente cavalheirescas em que Tristão e Iseu estão ausentes, a história dos amantes é retomada no momento em que o narrador a tinha abandonado: no § 582 do T. II da edição de Curtis, Iseu enviara Brangain à Pequena Bretanha com uma carta para Tristão; no § 777 do T. III, a aia de Iseu entrega a missiva a Tristão, que decide partir com Kahedin ao encontro da rainha da Cornualha. As aventuras na floresta de Damantes surgem quando, devido a uma tempestade, o navio se desvia do seu percurso normal e aporta no reino de Logres. Ora, longe de constituir um pretexto para uma sucessão de aventuras cavalheirescas com numerosas personagens arturianas, visando a construção da nomeada de Tristão - o que seria certamente a opção do segundo redactor de TP - esta passagem introduz motivos, personagens e mesmo estruturas narrativas oriundos da Suite ou do início de TP. É o caso da Besta (certamente uma criação da Suite); de Lamorat e Meleagant (filhos de Pelinor e Bandemaguz, duas importantes personagens deste romance);167 do esquema

narrativo do naufrágio com pouquíssimos sobreviventes (frequente na pré-história tristaniana e no relato da juventude de Tristão) ou do rei perdido na floresta, vítima de uma donzela feiticeira (que, como vimos atrás, já vem do início de TP).

Porém, o tratamento da personagem de Lamorat sugere que a relação que se estabelece, nesta passagem, entre TP e a Suite é já muito diferente da que vigorava na primeira fase de redacção do Tristan. Esta nova personagem menciona seu pai quando se apresenta («Je suis (...) Lamorat de Gales. Li rois Pellinorfu mes Peres») a Tristão168

Curtis, T. III, § 782, pp. 92-93. Mais tarde, a donzela que guiará Tristão até ao rei Artur ameaçado de morte expressará os seus receios nestes termos igualmente trágicos: se o rei morrer, toda a cavalaria

cherra en ténèbres et en dolor. (Curtis, T. Ill, § 817, p. 124)

166 Curtis, T. II, § 637, p. 216 a Curtis, T. III, § 776, p. 89.

167 Note-se que Lamorat refere sempre seu pai quando se apresenta; o mesmo se passa quando o narrador

revela a identidade de Meleagant: Et li chevaliers, qui Meleaganz estoit apelez, estoit filz le roi

Bademaguz de Gorre (...) (Curtis, T. III, § 797, p. 106).