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R EFERENCIAL T EÓRICO

2.6 Biletramento e Educação de Surdos

Conforme Hornberger (2004), biletramento visa a entender situações de letramento em que a “comunicação ocorra em duas (ou mais) línguas em torno da escrita” (HORNBERGER, 2004, p. 155), o que se relaciona muito à sala de aula de alunos surdos que estão aprendendo língua inglesa. Esse conceito surgiu a partir dos Novos Estudos do Letramento e traz implicações sobre o “uso da leitura e escrita em diferentes cenários multilíngues” (STREET, 2003, p. 82).

Já abordamos neste capítulo os modelos tradicionais e as novas perspectivas de letramento. Não se pretende, no entanto, fazer o mesmo em relação ao bilinguismo para entender o biletramento. O objetivo aqui é debater o que Hornberger chama de continua of biliteracy, e suas contribuições para a análise dos dados desta pesquisa.

Segundo Hornberger (2004), através do modelo dos níveis contínuos de biletramento13 (continua model of biliteracy), pode haver possibilidades para situar análises de pesquisas, ensino e planejamento de línguas em contextos multilíngues. O modelo dos níveis contínuos de biletramento visa a demonstrar as “múltiplas e complexas inter-relações entre bilinguismo e letramento e a importância dos contextos,

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Apesar de Hornberger utilizar sempre o termo continua do latim (The Continua of Biliteracy), a alteração aqui foi feita por questão de padronização e estética. A palavra apresenta uma forma no plural, continua, e, no singular, continuum. Portanto, “The Continua of Biliteracy” foi traduzido para “Os níveis contínuos de biletramento”. Quando a autora fala em “each continuum”, no singular, traduzo por “cada

meios, conteúdos e desenvolvimento do biletramento” (p. 156). Os pontos extremos de cada nível podem se relacionar entre si como mostra o quadro 4 abaixo.

Quadro 4 – Níveis contínuos de biletramento Tradicionalmente menos poderosos Tradicionalmente mais poderosos Contextos de biletramento 1 micro macro 2 oral escrita 3 bi(multi)língue monolíngue Desenvolvimento de biletramento 4 recepção produção

5 língua oral língua escrita

6 L1 L2 Conteúdo de biletramento 7 minoria maioria 8 vernáculo literário 9 contextualizado descontextualizado Meios de biletramento

10 exposição simultânea exposição sucessiva

11 estruturas não similares estruturas similares

12 escrita divergentes escrita convergentes

Fonte: HORNBERGER, 2004, p. 158.

Os pontos extremos do quadro acima denominam-se níveis contínuos de biletramento, pois estão interligados, podendo se relacionar sem uma ordem específica, continuamente (HORNBERBER, 2004). Hornberger (2004) define quatro agrupamentos dos níveis contínuos: contextos, desenvolvimento, conteúdo e meios de biletramento. Cada agrupamento possui três níveis com pontos de interseção entre si. As extremidades ou os pontos apresentados em cada nível podem ser opostos em alguns casos. Quanto mais os contextos de aprendizagem dos indivíduos permitem que eles usufruam de todos os aspectos dos níveis contínuos, maiores são as chances de realização de um completo biletramento (HORNBERBER, 2004).

De acordo com Hornberger (2004), uma das vantagens do modelo é que ele nos permite focar em alguns dos pontos apresentados para propósitos específicos, não que ignoremos os outros, mas para podermos dar as ênfases que pretendemos. Assim, os níveis de biletramento serão discutidos sob a perspectiva adotada para este trabalho, em que foi investigada uma sala de aula de surdos brasileiros que possuem a Libras (Língua

Brasileira de Sinais) como primeira língua (L1), a Língua Portuguesa como segunda língua (L2) e estão aprendendo uma língua estrangeira (LE), ou seja, um contexto multilíngue, conforme Hornberger aponta.

Como vemos no modelo, no que diz respeito aos contextos de biletramento, devem ser considerados aspectos globais e locais (micro-e-macro) no ensino de inglês, por exemplo. Hornberger (2004) exemplifica esse nível discutindo a visão dominante do inglês (macro), em alguns casos, apresentada através das diversas mídias, do livro didático ou do próprio professor. São consideradas também as políticas públicas e educacionais que infligem direta ou indiretamente na sala de aula, o currículo e outras demandas externas. Entretanto, a autora considera também relações locais (micro) que podem ser feitas a partir de uma visão global, mas ressaltando as particularidades do grupo em questão. Dessa maneira, aspectos sociais, culturais e políticos são considerados nos contextos de biletramento, o que envolve o indivíduo ou um grupo multilíngue ou monolíngue, que podem ser uma sala de aula com alunos que possuem diferentes L1 ou aquela onde alunos de uma mesma L1 estão aprendendo uma LE. Os contextos orais e escritos são os focos que uma pesquisa pode ter em uma sala de aula em relação à aprendizagem de uma LE, no caso desta, a escrita. Assim, pode-se pensar em um contexto local (micro), fazendo referências ao global (macro), de interação multilíngue (Português, Inglês e Libras), sendo a aprendizagem de língua inglesa – leitura e escrita –, o foco das aulas. É importante lembrar também da modalidade visual que a Libras proporciona, em contraposição com a modalidade oral.

O desenvolvimento de biletramento, de acordo com o modelo, leva em consideração um professor que investiga intencionalmente e continuadamente a sua própria sala de aula e/ou sua escola e, a partir do conhecimento e da teoria produzida, proporciona outros questionamentos e interpretações (HORNBERGER, 2004; HORNBERGER; SKILTON-SYLVESTER, 2000). Os níveis de biletramento aqui focam em como acontecem as interseções entre L1, L2 ou mais línguas; como é desenvolvida a recepção e produção de textos orais e escritos; as discussões e aprendizagem de marcas da linguagem oral ou não, bem como as influências de informações e recursos visuais na escrita. Portanto, são consideradas as habilidades de escuta e leitura (recepção) e/ou fala e escrita (produção), ou ainda a organização escuta e fala (língua oral) e/ou leitura e escrita (língua escrita). Por fim, podem ser consideradas as interações da(s) L1 e L2 dos alunos e como uma língua pode exercer influência sobre a outra.

O conteúdo de biletramento implica em saber duas (ou mais) línguas e, ao mesmo tempo, saber duas (ou mais) culturas (HORNBERGER, SKILTON- SYLVESTER, 2000). Nesse nível são consideradas, de maneira geral, identidades e crenças de alunos e professores, gênero, nacionalidade, etnia, métodos de ensino e como tudo isso pode se relacionar em sala de aula. No nível de biletramento vernáculo e/ou literário, são consideradas as variações linguísticas de grupos e regiões, bem como a escrita formal ou língua culta. Além disso, juntamente com tais características vernáculas, são incluídas, no nível seguinte, minorias linguísticas e culturais, sem a predominância do grupo majoritário já tão presente no ensino de inglês, por exemplo. Há ainda o nível contextualizado e/ou- descontextualizado, que se refere às estruturas linguísticas ensinadas a partir de um contexto e ao ensino de formas e regras linguísticas fora de um contexto, a fim de serem memorizadas através de atividades, de fato, descontextualizadas. Para esta pesquisa foram consideradas, com mais enfoque, as extremidades dos níveis de biletramento vernácula, contextualizado e minoria, três pontos relacionados às características que os aprendizes já trazem e à LE que é apresentada a eles.

Os meios de biletramento se referem aos aspectos linguísticos que devem ser utilizados e aprendidos. Por exemplo, a possibilidade de discussão dos termos e usos do inglês padrão e não-padrão, Global Englishes, a possível utilização de codeswitching e seus benefícios ou não na sala de aula, dentre outros. Para tais aspectos, Hornberger (2004) fala dos multiletramentos que envolvem diversos modos de leitura e escrita, como visual, auditivo, espacial e comportamental. Tais modos poderiam ser considerados no nível exposição simultânea, onde, no caso desta pesquisa, os alunos são expostos simultaneamente à aprendizagem de uma L2 (português) e uma LE (inglês), tendo a Libras como L1 já adquirida. Não acontece, nesse caso, uma exposição consecutiva, onde o aluno começaria a aprender uma LE somente depois que sua L2 fosse de fato consolidada. No nível estruturas não similares e/ou estruturas similares, são consideradas as semelhanças e diferenças linguísticas, em nível estrutural, da L1 e da L2 (ou LE) do aprendiz, bem como suas possíveis relações. Há alunos que estão aprendendo uma LE com aspectos estruturais da língua próximos à sua L1. Em escritas divergentes e/ou escritas convergentes, são observadas as normas, práticas comunicativas e outras características da escrita de acordo com os contextos específicos de alguns dos alunos. No entanto, o que pode ser algo comum para um aluno, pode divergir do restante da classe. No caso dos participantes desta pesquisa, sua L1 não

possui registros escritos14 difundidos suficientemente para se compararem diretamente à LE que está sendo aprendida. Nesta pesquisa foram consideradas, principalmente, a exposição simultânea, não-similar e a escrita divergente.

Hornberger (2004) discute os locais onde as “línguas e letramentos são usados e aprendidos (contexto), que aspectos são usados e aprendidos (meios), como são usados e aprendidos (desenvolvimento) e os tipos de significados expressos em contextos de biletramentos específicos (conteúdo)” (p. 168). A autora afirma que os educadores bilíngues são simultaneamente pesquisadores, professores e planejadores de língua. E que, como pesquisadores, “precisam ter oportunidades de refletir criticamente sobre os contextos e conteúdos de seu ensino; e descobrir os repertórios comunicativos (meios) que os alunos trazem para a escola e que podem servir como recursos para o desenvolvimento de língua e letramento” (p. 168).

O modelo dos níveis contínuos de biletramento não é uma metodologia, mas um quadro teórico que pode contribuir para discussões e reflexões em diversas situações de pesquisa, ensino e planejamentos linguísticos em contextos multilíngues. O contexto desta pesquisa, que envolve alunos surdos, é muito peculiar e, por isso, tal contexto e suas peculiaridades serão abordados na seção a seguir.

2.7 Resistências e conquistas na educação e no ensino de leitura e escrita de línguas