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Quando os “críticos” se confundem: Pedagogia Crítica e Letramento Crítico O termo crítico é empregado não somente em Letramento Crítico, mas em outras

R EFERENCIAL T EÓRICO

2.5 O Letramento Crítico e seus arredores

2.5.4 Quando os “críticos” se confundem: Pedagogia Crítica e Letramento Crítico O termo crítico é empregado não somente em Letramento Crítico, mas em outras

teorias e abordagens educacionais, como a Pedagogia Crítica. Entretanto, para cada uma dessas teorias/abordagens educacionais, o termo assume significados diferentes, pois está relacionado a contextos e objetivos distintos. Nesta seção discutiremos Pedagogia Crítica (PC) e suas diferenças e possíveis pontos de encontro em relação ao Letramento Crítico (LC). A escolha desta comparação se dá devido às aproximações de algumas teorias utilizadas em cada uma dessas abordagens, o que pode gerar algumas dúvidas.

Menezes de Souza (2011) questiona algumas características da proposta original de Freire e afirma que a PC veio de uma “tradição marxista, porque sua preocupação principal é introduzir a justiça social, a igualdade, em contextos onde não havia igualdade ou justiça social. Nesse contexto, ser crítico consiste em perceber a verdade por trás da ilusão” (p. 290). Menezes de Souza explica que, nessa perspectiva, o aluno era levado a perceber os significados no texto apenas, responsabilizando o autor por tudo aquilo que era apresentado. Assim, o leitor não assumia a responsabilidade por sua própria interpretação. Menezes de Souza afirma que na PC havia uma única forma de ler e

isso preparou o aluno para um mundo de homogeneidade, o conceito de que o mundo de justiça social é um mundo onde todos são iguais, onde todo mundo é idêntico: então precisamos eliminar o diferente, acabamos com a injustiça eliminando pessoas diferentes de nós. Então isso estava baseado na ideia que ninguém pode ser diferente, mesmo eu nas diferenças que me constituem eu não aceito essa diferença. E

eu, ao não aceitar essas diferenças dentro de mim, eu não posso aceitar as diferenças no mundo (MENEZES DE SOUZA, 2011, p. 292).

Dessa maneira, o aluno não era formado para assumir uma responsabilidade social, o que poderia resultar em consequências para sua vida pessoal e para a sociedade em que vive.

Já no LC, segundo Menezes de Souza (2011), é necessário que assumamos a responsabilidade por nossas leituras e interpretações. Além disso, a partir do texto, o aluno é convidado a trazer aquilo que é natural para ele e a refletir se esse “natural” pode trazer outras interpretações e gerar preconceitos. Como ressalta o autor, “letramento crítico é ir além do senso comum (...), é levar o aluno a perceber que para alguém que vive em outro contexto a verdade pode ser diferente” (MENEZES DE SOUZA, 2011, p. 293).

Jordão (2013) também faz um estudo comparativo entre letramento crítico e pedagogia crítica. Em relação à compreensão de língua pela PC, Jordão defende que essa abordagem educacional busca

explorar a ‘materialidade’ dos textos a fim de levar os alunos/leitores a perceberem como a organização textual, as intenções do autor, as condições de produção, o funcionamento social do gênero (todos esses aspectos determinados previamente ao momento da leitura) contribuem para ‘dissimular’ a realidade; com isso, estaríamos libertos da ideologia e poderíamos ver a realidade ‘como ela realmente é’ (JORDÃO, 2013, p. 73).

Percebe-se, portanto, o caráter libertador da compreensão de língua que a Pedagogia Crítica oferece. Nesse caso, a língua, em seu funcionamento ideológico, pode conter outras intenções e informações muitas vezes ocultas para o leitor. Assim, é função da PC promover tal libertação para que, como consequência disso, o aluno possa assumir outras posturas na sociedade.

Já sobre o LC, Jordão (2013) afirma que, através da língua, pode-se atribuir sentidos juntamente com a cultura e a sociedade. Aqui, a linguagem não é entendida como “produto exclusivo da subjetividade individual, mas está também ancorada externamente ao indivíduo em seu contexto social, histórico, político, cultural” (JORDÃO, 2013, p. 74). Segundo a autora,

ideologia aqui é entendida no sentido foucaultiano de perspectiva cultural, social, moral, ou melhor, como sendo aquele elemento

mesmo do processo de construção de sentidos que permite que o processo aconteça. Ao invés de se apresentar como um “véu” que ocultaria a realidade, a ideologia funciona como sendo nossos “olhos”, aquilo mesmo que nos possibilita ver (p. 74).

Portanto, o letramento crítico entende que o leitor/aluno possui uma perspectiva cultural, social e moral, pois é capaz de se posicionar diante do texto com um “olhar socialmente construído” (JORDÃO, 2013, p. 74).

Além disso, enquanto na PC as condições de produção do texto assumem importância, no LC não são analisadas somente as condições em que o texto foi construído, mas “também o contexto geral, seu entorno social, político, cultural, ideológico, as comunidades interpretativas e seus procedimentos de leitura, as formas privilegiadas e as não privilegiadas de construir sentidos e hierarquizá-los” (p. 75).

Em relação ao sujeito, posicionalidade e função social, Jordão (2013) aponta que, na PC, o bom aluno é aquele que consegue entender e progredir nos ensinamentos do professor. Assim como seu mestre, o aluno se vê livre de toda ocultação causada pela ideologia. É necessário que haja consciência da opressão ideológica para que, em seguida, possa acontecer uma transformação social. Já no LC, as diversas ideologias existentes podem ser aproveitadas. Uma vez que existem muitas verdades, pode-se avaliá-las de diferentes maneiras de acordo com as visões de mundo de cada aluno.

Ao discorrer sobre conhecimento, criticidade e aprendizagem, Jordão (2013) defende que, na PC, o conhecimento é dividido em duas ordens: aquele produzido por classes populares sem prestígio social e o conhecimento de camadas sociais mais elitizadas e, por isso, mais elaborado e complexo. Nessa visão, cada conhecimento se restringe apenas às classes que o produzem. Assim, pressupõe-se que as classes menos favorecidas precisam ter acesso ao conhecimento das classes dominantes. Para isso, o desenvolvimento do pensamento crítico é estimulado, baseado, principalmente, na escolha de assuntos polêmicos para debate com os alunos.

Sob a perspectiva do LC, Jordão (2013) esclarece que não há um conhecimento que seja mais elaborado e complexo. Ao contrário, todos os conhecimentos possuem sua importância e o que pode caracterizar alguns como menos prestigiados que outros são os processos sociais de atribuições de sentidos e valores e não o fato de por si só já se configurarem menos elaborados, complexos ou sofisticados. Nessa perspectiva, cabe a todas as classes “negociarem seus sentidos e procedimentos interpretativos, construírem bases comuns para diálogo e estruturas sociais menos discriminatórias e

preconceituosas” (JORDÃO, 2013, p. 80). E, para que isso possa acontecer em sala de aula, não são somente temas polêmicos que “permitam destacar as maquinações sociais da opressão, destacando o suposto embrutecimento da sociedade, como sugere a PC” (JORDÃO, p. 82). Dessa maneira, no LC é importante percebermos que nossas “próprias crenças e valores são sócio-historicamente construídos, que nossos próprios textos estão ancorados nos contextos discursivos em que são produzidos” (JORDÃO, p. 83).

Menezes de Souza (2011), tentando trazer uma releitura sobre a PC, organiza as concepções de consciência crítica de acordo com a Pedagogia Crítica e de acordo com o Letramento Crítico, conforme mostra o Quadro 3 abaixo:

Quadro 3 – PC e LC, semelhanças e diferenças Consciência crítica tradicional

- Pedagogia Crítica -

Consciência crítica redefinida - Letramento Crítico -

Enfoque na escritura do texto: como o Outro produziu a significação?

Enfoque na leitura do texto: como o Eu produz a significação.

Todas as leituras são homogêneas, iguais.

As leituras/escrituras só serão iguais se forem produzidas por leitores/escritores de

coletividade sociais iguais. Senão serão desiguais.

Poder dividido entre dominante e oprimido.

Poder distribuído entre todos, porém de formas desiguais (Focault)

Leitura como consenso. Leitura como dissenso, conflitante.

Por que o outro escreveu assim? Por que o outro diz X e quer dizer Y?

Por que eu entendi/ele entendeu assim? Por que eu acho/ele acha isso

natural/óbvio/inaceitável? Fonte: MENEZES DE SOUZA, 2011, p. 296.

Apesar de haver outros fatores que também diferenciam as duas concepções educacionais, esta seção visa a esclarecer que a noção de crítico não é idêntica todas as vezes que essa palavra aparece em diferentes teorias e abordagens. Nota-se que aqui,

por exemplo, quando comparamos PC com LC, há uma distinção das relações com a língua, o sujeito e o conhecimento, por exemplo. A Pedagogia Crítica, difundida por Paulo Freire, apesar de ter inspirado o letramento crítico (MONTE MÓR, 2013), assume características diferentes. Se por um lado, o crítico na PC assume um papel libertador (condizente, principalmente, com o contexto em que a teoria foi concebida), por outro lado, o crítico no LC incita a um papel problematizador (MATTOS; VALÉRIO, 2010).

Feitas essas considerações sobre questões que ajudam a compreender a proposta do letramento crítico, conforme foi usada para embasar a pesquisa relatada neste trabalho, a partir da próxima seção, passo a abordar outras questões que também foram relevantes para orientar as análises e reflexões aqui realizadas.