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Brasília: Superquadras e Habitações Individuais Geminadas.

No documento A cidade e o idoso (páginas 71-79)

4 OBSERVAÇÕES SISTEMÁTICAS

4.2.2 Brasília: Superquadras e Habitações Individuais Geminadas.

A opção por Brasília para um estudo de caso (uma observação sistemática) deveu-se às suas características de cidade planejada e pela singularidade de sua proposta urbanística e arquitetônica no setor habitacional: As “super-quadras”, por ser um exemplo único, em grande escala, da adoção do conceito de Unidade de Vizinhança, analisando-se ainda o seu funcionamento depois de 50 anos da inauguração da capital federal.

As Habitações Individuais Geminadas (HIG), por constituir-se, na sua proposta original, num padrão de habitação popular de alto nível, seja na sua concepção urbanística ou arquitetônica. A proposta de Lúcio Costa, seja no conceito (residências em renque, com a entrada principal abrindo para uma grande área gramada, pública, e o acesso de veículos pelo lado posterior, deixando bem definidos os acessos para pedestres e veículos), nas dimensões (lotes de 7 X 21, com moradia de dois pavimentos), como nos objetivos (o abrigo com proteção, em todos os sentidos, para o morador), nos remete à solução dos hofjes de Amsterdam, adotada por Hendrik Staets no século XVII. A diferença está na utilização do

18 Em geral, os apartamentos de Copacabana são pequenos (é grande o número dos chamados “cabeças-de- porco” ou “quitinetes”, formados por sala, cozinha e banheiro e onde moram muitas pessoas. A média de 84,3m²

é decorrência dos grandes apartamentos existentes na Avenida Atlântica, com mais de 200m². O maior edifício de Copacabana é o Richard (antigo 200) com 507 apartamentos e 45 andares, localizado na Av. Barata Ribeiro. Copacabana é o local onde a maioria dos cariocas gostaria de morar.

extenso gramado adjacente às habitações: em Amsterdam, totalmente cercadas pelas residências, a área é, na realidade, um pátio fechado, embora para uso comum, mas fundamentalmente um abrigo; enquanto para Brasília, Costa propõe uma área aberta, nos dois lados adjacentes às avenidas W3 e L4 Sul (Figura 27), solução condizente com um urbanismo moderno, aberto, com espaços públicos e privados integrados, diferentemente de Amsterdam, onde os hofjes tinham como objetivo a proteção, principalmente de idosos, mulheres e crianças, contra possíveis invasores. Respostas semelhantes, na essência, para épocas e condições de vidas diferentes.

Figura 27 – Planta: Habitações Individuais Geminadas (Brasília)19.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2012).

Definindo sua proposta no Relatório do Plano Piloto, Costa (1995, p. 291) afirma:

[...] Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma sequência contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizadas com árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem.

19 Muito semelhante (em dimensões e conceito de moradia) aos Hofjes de Amsterdam, Lúcio Costa procurou

sempre adotar um conceito universal a alguns pontos de Brasília, como a Torre de TV (Torre Eiffel), os terraplenos chineses etc. Como Hendrick Staets influenciou Le Corbusier, é factível imaginar que Costa sofreu, indiretamente, esta influência na concepção das HIG.

[...] Dentro destas “superquadras” os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém, a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente no acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra.

Ainda, segundo Maria Elisa Costa, arquiteta filha de Lúcio Costa:

[...] estruturalmente, uma superquadra é um conjunto de edifícios residenciais sobre pilotis (que tem em Brasília, pela primeira vez, presença urbana contínua, introduzindo uma alternativa às quadras convencionais) ligados entre si pelo fato de terem acesso comum e de ocuparem uma área delimitada, no caso um quadrado de 280 X 280m, cercados dos quatros lados por renques de árvores de copa densa e com uma população de 2.500 a 3.000 pessoas. O chão é público – os moradores pertencem à quadra mas a quadra não lhes pertence e esta é a grande diferença entre superquadra e condomínio. Não há cerca, nem guardas, e no entanto a liberdade de ir e vir não constrange nem inibe o morador de usufruir seu território, e a visibilidade contínua, assegurada pelos pilotis, contribui para a segurança (COSTA, Maria Elisa apud COSTA, Lúcio, 1995, p. 326).

Esta proposta, coletiva, no entanto, vem sendo alterada não só pela apropriação privada dos espaços imediatos aos blocos, mas também pelo desprezo à ideia do edifício, de cada um dos blocos, como parte integrante de um espaço único, público, histórico (Figura 28 e 29)20.

Figura 28 – HIG: Habitações Individuais Geminadas 21.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

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Direcionadas para habitantes de baixo poder aquisitivo, as HIG, pela qualidade das habitações e sua localização privilegiada, foi ocupada por setores da classe média e média-alta. Hoje, bastante modificada, caracteriza-se pelo espaço urbano degradado e modificações na arquitetura das casas, onde foi abandonada a unidade arquitetônica e imposto um modelo individualista de construção.

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Planejadas inicialmente como conjunto uniforme, arquitetonicamente falando, padrão do lote (7x21), de um pavimento, as HIG apresentavam como área principal um extenso gramado para uso do pedestre, e o acesso de veículos na parte posterior. A importância dada ao automóvel inverteu estes usos.

Figura 29 – HIG: Habitações Individuais Geminadas22.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Processo semelhante de descaracterização da proposta inicial de Lúcio Costa ocorre numa área (inicialmente projetada para a população de trabalhadores de baixa renda, que edificaram a capital federal, mas ao longo do tempo foi apropriada por setores da classe média), extremamente bem localizada do Plano Piloto: o Setor de Habitações Individuais Geminadas (na realidade em renque pois são fileiras de casas interligadas entre si) ao longo da avenida W3, entre o Eixo Monumental e a Via de Ligação L4 Sul e adjacente ao Parque da Cidade. Um dos melhores lugares para se morar em Brasília (Figuras 30 e 31).

Figura 30 – SHIG: Setor de Habitações Individuais Geminadas23.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

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O automóvel como referencial urbano provocou a inversão dos acessos principais das HIG.

23 Mesmo sendo mantida a área verde, observa-se constantes avanços e “puxados”, por meio de grades e muros,

Figura 31 – SHIG: Setor de Habitações Individuais Geminadas.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Sua característica principal é possuir uma área verde central, com cerca de 50m de largura, destinada a pedestres e ao convívio social, alpendres isolados ou não por cobogós e profundidade equivalente a 12 residências com testada de 7.00m e profundidade de 21.00m (o lote ideal segundo Lúcio Costa). Esta área liga a W3 com a via secundária W4 por onde é feito, pelos fundos das residências, o acesso de veículos. O que chama logo a atenção é a postura dos proprietários em personalizar sua habitação partindo de um conceito onde o principal (a área verde) é transformado em secundário e a via para acesso de veículos transformada em principal, talvez por influência de uma cultura urbana onde o automóvel, e não o pedestre, determina a hierarquização do espaço urbano. Modificaram-se tipologias arquitetônicas, esquadrias e volumetria das edificações. Jardins e passagens de pedestres foram apropriados por moradores. Grades foram introduzidas no meio do espaço público onde hoje, apesar da preservação das árvores originais, a aparência do local assemelha-se mais a um quintal mal cuidado. O espaço arborizado entre a W3 e as casas foi invadido por quiosques de todos os tipos e gostos. Garagens transformaram-se em salões de beleza. Casas foram subdivididas e transformadas em pensões. O estilo singelo, de inspiração modernista,

próprias do período em que foram construídas, cedeu lugar a outros que vão do “colonial”, a castelinhos, chalés de conteúdo “pós-moderno” a outros de caráter inclassificável.

Comparando o conceito e as dimensões entre os Hofjes e o SHIG salta aos olhos que Lúcio Costa inspirou-se nos primeiros para a sua proposta habitacional de Brasília. Em outros setores da capital, como já vimos, Lúcio Costa, adotou postura semelhante.

Mas, no caso brasileiro, esta situação mutiladora (Figuras 32 e 33) é decorrente da falta de planejamento e de um plano de preservação, malgrado a condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido à Brasília pela UNESCO (27 de dezembro de 1987).

Mais antigo, o Plano dos Três Canais de Staets permanece, na essência, intocado, mas de três séculos depois. Aliás, uma característica dos planos implantados na Holanda, onde a necessidade de um controle sobre o território, grande parte conquistados ao mar, estabelece critérios mais rígidos de gestão urbana.

Figura 32 – Mutilações do Plano de Lúcio Costa (HIG) para Brasília24.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Figura 33 – Mutilações ao projeto proposto às HIG25.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Os críticos de Brasília, ou correntes pós-modernas da arquitetura e do urbanismo, ressaltam a importância das pessoas usufruírem das suas habitações conforme as necessidades e os desafios que a vida e sua dinâmica impõem. Outras obras de arte como pintura, escultura, literatura, música, dança e cinema, são passíveis de censura. Com arquitetura existe a

mutilação. É o que se observa no Setor de Habitações Individuais Geminadas de Brasília

Figuras 34 e 35).

24 O plano dos 3 canais de Amsterdam mantém-se inalterado após mais de 4 séculos. O de Brasília, Patrimônio

da Humanidade, com apenas 50 anos, encontra-se mutilado

25 Questões de segurança, falta de respeito ao patrimônio da humanidade e a indiferença do poder público

Figura 34 – Outras formas de mutilações ao projeto proposto às HIG26.

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Figura 35 – Outro tipo de mutilação ao projeto proposto às HIG (gabarito da edificação).

Fonte: Ronald Lima de Góis (2010).

Diante do que foi visto acima, é extremamente importante, ao se criar espaços destinados à pessoa idosa, a implantação de um conceito de desenho e gestão urbana que não só possibilite e manutenção como a operação desses espaços, evitando situações como as relatadas por Costa (1995, p.323):

O que ocorre em Brasília e fere nossa sensibilidade é essa coisa sem remédio, porque é o próprio Brasil. A coexistência, lado a lado, da arquitetura e da antiarquitetura, que se alastra; da inteligência e da anti-inteligência, que não pára; é o apuro parede meia com a vulgaridade, o desenvolvimento atolado no sub- desenvolvimento; são as facilidades e o relativo bem-estar de uma parte, e as dificuldades e o crônico mal-estar da parte maior.

O que se constata, por motivos históricos e culturais, pela falta de uma cultura urbanística, é a grande dificuldade de se implantar no país, padrões aceitáveis de urbanização. O próprio poder público degrada os espaços públicos e o que se verifica atualmente é a intensificação desse processo. Os interesses imobiliários, a busca por um local para morar, o descaso na gestão dos espaços urbanos, geram problemas como os verificados recentemente nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo.

No documento A cidade e o idoso (páginas 71-79)