CAPÍTULO V – BRASIL INSURGENTE
4. Brasil independente
O infante D. João assumiu o governo de Portugal, em virtude do enlouquecimento da mãe, em momento de extrema diculdade para Portugal, dadas as rivalidades políticas internas que então se vericavam. Já como príncipe-regente pôs em prática uma política externa que se caracterizou pelas tentativas de apaziguamento. Somente em 1818, mais de dez anos após chegar ao Brasil e três após a queda de Napoleão Bonaparte, D. João foi coroado rei, com o título de D. João VI. Com o m das guerras napoleônicas, a situação na Europa voltou à normalidade, se é possível assim designar o período de restauração que se seguiu à queda de Napoleão.
Não podemos esquecer que o general Junot, comandante das tropas que invadiram Portugal em 1807, praticamente não enfrentou resistência, como se fosse
um general de um país aliado. Para alguns, vinha mesmo como um libertador: era a Revolução que, com ele, chegava enm a Portugal. Esse é um aspecto que deve ser posto em relevo: as invasões francesas foram o primeiro episódio das lutas entre o absolutismo e o liberalismo no nosso país (SARAIVA, 1979, p. 262).
De acordo com Edward Burns, Napoleão Bonaparte cometeu dois erros graves que apressaram a sua queda: o primeiro foi o Bloqueio Continental e o segundo, a “sua ambição ilimitada e o altíssimo conceito que fazia de si mesmo”, a sua pretensão em construir um Império nos moldes da antiga Roma, uma “Roma imperial, dinástica”, o que levou até os seus admiradores “a questionar se o império de Napoleão não seria simplesmente um despotismo maior, mais eciente, e, por conseguinte, em última instância mais perigoso que as monarquias do século XVIII” (1995, p. 511). Portugal, por exemplo, foi vítima das ambições e dos projetos dinásticos de Napoleão. De 1807 a 1814 o território português foi palco de uma guerra feroz entre franceses e portugueses/ingleses.
A guerra, violenta como nenhuma anteriormente o tinha sido, durou sete anos e teve efeitos devastadores. Os campos caram ermos de homens válidos, arrebanhados à força para as leiras pelas autoridades inglesas. As regiões litorais, onde estavam as cidades mais ricas e que, de um modo geral, tinham sido poupadas nas guerras anteriores, que se limitavam aos distritos de fronteira, foram as que mais sofreram. Todos os valores foram conscados para satisfazer uma contribuição de guerra imposta por Napoleão; ao consco juntou-se o vandalismo e o saque: igrejas, conventos, palácios, foram despejados de tudo o que tinham de valioso. Muitos tesouros artísticos desapareceram por essa altura. O número de mortos nos combates e nas chacinas de represália foi calculado em superior a cem mil. A fome deve ter feito ainda mais vítimas porque a população desceu em números absolutos (SARAIVA, 1979, p. 267).
Com a ajuda da Inglaterra, os portugueses conseguiram expulsar o invasor francês. O domínio francês empobreceu ainda mais o reino português: o comércio colonial havia decrescido substancialmente com a abertura dos portos brasileiros; cresciam as diculdades econômicas que, somadas às idéias liberais, pavimentaram o caminho para a eclosão, em 1820, da Revolução Liberal do Porto, que, entre outras medidas, exigia o afastamento de Beresford, o retorno imediato de D. João VI para Portugal e a recolonização do Brasil. A burguesia comercial portuguesa, obrigada que fora a aceitar a abertura dos portos e os tratados de 1810 assinados com os ingleses, não estava mais “disposta a aceitar a nova afronta: seu rei ditando as ordens a partir da colônia ultramarina, ordens transmitidas via intermediários estrangeiros que administravam o país”, sem contar “a devastação praticada no país pelos longos anos de rapina das tropas napoleônicas” (LOPEZ,
1993, p. 29). Ademais, “o Governo estava conado a uma junta de governadores, dependente das instruções recebidas do Rio”, e “a ausência dos órgãos centrais do poder enfraquecia a autoridade do Governo metropolitano”. A única e verdadeira força em meio à desagregação política do Estado português era o exército, mas o seu comando “estava nas mãos dos ociais ingleses” e, nda a guerra, os portugueses permaneceram mobilizados, com quase cem mil homens nas leiras do exército. Também não eram boas as “relações entre o poder civil e o poder militar” (SARAIVA, 1979, p. 270).
A situação portuguesa era, em 1820, de crise em todos os planos da vida nacional: crise política, causada pela ausência do rei e dos órgãos do Governo no Brasil; crise ideológica, nascida da progressiva difusão, nas cidades, de idéias políticas que consideravam a monarquia absoluta um regime opressivo e obsoleto; crise econômica, resultante da emancipação econômica do Brasil; crise militar, originada pela presença dos ociais ingleses nos altos postos do exército e pela emulação dos ociais portugueses, que se viam preteridos nas promoções. O próprio Governo se dava conta da urgência de uma reforma séria, sem a qual se corria o risco de uma revolução (SARAIVA, 1979, p. 270-271).
E, como diz Basile (IN: LINHARES, 2000, p. 192-193), se no Brasil se desenvolvia, de forma difusa, um ideal de liberdade, a eclosão da revolução liberal do Porto, em 24 de agosto de 1820, potencializou a insatisfação brasileira com o estado de semi-dependência em que o país se encontrava. O movimento português pretendia implantar um governo liberal em Portugal e garantir o desenvolvimento econômico do Reino. Para isso, pensavam os líderes, era preciso fazer retornar a Corte para Portugal e restabelecer os antigos laços coloniais com o Brasil, o que gerou por aqui uma repercussão controversa, pois, enquanto
os brasileiros, em geral, e comerciantes estrangeiros, em particular, se prendiam à face liberal da revolução, nela vendo o m do Absolutismo, a preservação das prerrogativas do Reino Unido e a eliminação dos monopólios e privilégios ainda existentes, os comerciantes portugueses, por outro lado, viram na face colonialista e no traço antibritânico da mesma um meio para a restituição dos monopólios e privilégios comerciais de que antes gozavam (BASILE, IN: LINHARES, 2000, p. 194).
A partir de 1821 eclodiram, no Brasil, vários movimentos favoráveis às cortes portuguesas, depondo governadores e criando juntas provisórias de governo e exigindo o m do absolutismo monárquico. Contraditoriamente, porém, as cortes pretendiam reconduzir o Brasil à situação de colônia. Os seus agentes políticos eram ligados a comerciantes portugueses insatisfeitos com o regime de liberdade econômica e administrativa que o Brasil experimentava. Segundo Iglesias (1993, p. 106), a Revolução do Porto, “chamada liberal, por exigir uma Constituição, na verdade é menos liberal e constitucionalista que pela recondução do Brasil a seu antigo estado de colônia”.
A Junta Provisional que se apossou do poder político fez valer a sua força e convocou eleições para as cortes constituintes. Os deputados foram eleitos indiretamente: primeiro eram eleitos os eleitores de paróquia, estes escolhiam os eleitores de comarca, responsáveis pela escolha dos deputados. A vitória dos revolucionários portugueses e o fortalecimento das Cortes forçaram D. João VI a apressar o retorno para Portugal, deixando no Brasil seu lho, D. Pedro, como regente, “decisão que contrariou os absolutistas” portugueses, que passam a exigir o regresso imediato do jovem príncipe, que foi cando no Rio de Janeiro em franca desobediência, “atendendo ao pedido de milhares de brasileiros” (IGLESIAS, 1993, p. 107-108). A volta de D. Pedro para
Portugal enfraqueceria a autonomia administrativa do Brasil. Houve reações no Brasil às medidas recolonizadoras, resultando na formação de um bloco político (partido brasileiro), com o objetivo de comprometer D. Pedro com a independência brasileira. O movimento contra recolonização ganhou força, acelerando o processo “independentista”. “Tudo indica”, diz José Hermano Saraiva, “que, qualquer que tivesse sido a evolução política portuguesa, o Brasil teria proclamado a independência nos anos que se seguiram à saída da corte. Mas a causa próxima da separação foi o conito entre D. Pedro e as Constituintes” (1979, p. 277-278). A 09 de janeiro de 1822 (dia do Fico), depois de receber um documento com oito mil assinaturas, resolveu car no Brasil, rompendo com as Cortes portuguesas e se aliando ao partido brasileiro. Em abril, D. Pedro decretou que todas as determinações vindas de Portugal só entrariam em vigor no Brasil após a sua aprovação (o Cumpra- se); em junho convocou uma Assembléia Constituinte com a nalidade de elaborar uma Constituição para o Brasil. Ainda assim, as Cortes portuguesas exigiam a volta de D. Pedro para Portugal. “Os sucessivos atritos entre deputados brasileiros e portugueses, também foram fundamentais para apressar o processo de ruptura. Desde maio de 1822
as Cortes já haviam decidido, contrariamente ao voto dos representantes brasileiros, o envio de tropas para a Bahia, a m de evitar uma eventual revolta de negros e mulatos na província e de impedir a propagação pelo restante do Reino das idéias separatistas que germinavam no sul do país. Em ns de junho e início de julho, novo e mais sério conito se daria por conta dos artigos adicionais à Constituição, referentes ao Brasil, sugeridos pela deputação brasileira. Tais artigos, que em seu conjunto deniam a introdução de um sistema federalista no Reino Unido, consagrando a fórmula da Monarquia Dual, propunham o estabelecimento de uma regência com amplos poderes no Brasil, a existência de Cortes Especiais em cada reino, a manutenção das Cortes Gerais, composta paritariamente por membros dos dois congressos, na Capital do Império, e a instalação de um Tribunal Supremo de Justiça no Brasil. Apesar dos apelos dos deputados brasileiros de que apenas tais medidas evitariam a Independência, a proposta não foi aceita. (BASILE, IN: LINHARES, 2000, p. 201).
As Cortes aceitavam a permanência de D. Pedro no Brasil “até a publicação dos artigos adicionais à Constituição relativas ao Brasil, devendo, porém, sujeitar-se o príncipe às Cortes, que passariam a nomear seus ministros e secretários”. A convocação “de uma assembléia legislativa e constituinte no Brasil” foi interpretada “pelos deputados portugueses como uma clara manifestação de ruptura”. O mais grave, para os portugueses, era que D. Pedro estava “à frente do movimento separatista brasileiro”, o que trazia “a ameaça não apenas de Independência, mas também, em caso de morte de dom João VI e de reunicação dos dois Reinos, de restabelecimento da sede da monarquia no Rio de Janeiro” (BASILE, IN: LINHARES, 2000, p. 201-202). Foi enviado um ultimato ao regente, exigindo o seu retorno imediato e a anulação da convocação da Assembléia Constituinte. Caso contrário, seriam enviadas tropas para fazer cumprir as determinações. Orientado por José Bonifácio de Andrada e Silva (Patriarca da Independência), D. Pedro seguiu a única via existente naquele momento: a ruptura denitiva com Portugal que se deu em 07 de setembro de 1822.
Um dos temores da elite econômica e política brasileira era a disseminação das idéias republicanas que poderiam colocar em risco a manutenção da estrutura latifundiária e escravagista. Os dois grupos políticos, o partido brasileiro e partido português, temiam as conseqüências da agitação popular, que poderiam levar a ampliação da base de participação no governo do futuro Estado brasileiro. Foram eles que cercaram o príncipe-regente, que passou “a conduzir a causa, empunhando a sua bandeira” (IGLESIAS, 1993, p. 108). D. Pedro foi o instrumento de uma independência “negociada”, que garantiu o principal objetivo dos grupos dominantes: a manutenção da escravidão e do latifúndio.