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2 MECANISMOS CONSENSUAIS JUDICIAIS COMO RESPOSTA À

2.2 M ECANISMOS CONSENSUAIS NO PROCESSO E NO J UDICIÁRIO

2.2.1 Brasil

As origens das políticas de promoção de mecanismos consensuais pelo Judiciário brasileiro remontam à Constituição do Império do Brasil, de 1824, que instituiu a figura do juiz de paz (artigo 162133) e tornou a conciliação obrigatória, condicionando o ingresso em juízo à tentativa prévia de conciliação, referida por “reconciliação” no texto do artigo 161134. Em 1827, foi promulgada a Lei Orgânica das Justiças de Paz, aumentando significantemente a autoridade dos juízes de paz, que, além de exercerem a função conciliatória, detinham atribuições judiciárias e policiais. Ao se contrapor aos juízes togados, ainda fortemente vinculados com o governo real, a justiça de paz tornou-se um ponto nodal dos planos de reforma liberal e um símbolo de resistência local à autoridade central e ao controle social do Império135.

Em 1850 foi criado o Regulamento nº 737, que, além de regular o processo de julgamento de causas comerciais, passou a ser aplicado também para outras disputas cíveis (em virtude do Decreto nº 763/1890). Seu artigo 23136 também estabelecia a obrigatoriedade da conciliação prévia, prevendo, ainda, a possibilidade do comparecimento voluntário das partes também no âmbito pré-processual137.

Após a Proclamação da República, essa autoridade dos juízes de paz e os demais incentivos às vias consensuais foram revistos, a partir da promulgação do Decreto nº 359, de 26 de abril de 1890, que afastou a obrigatoriedade da tentativa de conciliação prévia, sob os argumentos de que a conciliação obrigatória representava tutela do Estado sobre direitos e interesses particulares que podem ser transacionados independentemente da interferência do juízo e de que a experiência mostrava que a conciliação é bem-sucedida quando as partes

133 “Art. 162. Para este fim [conciliação prévia] haverá Juízes de Paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os vereadores das Câmaras. Suas atribuições e distritos serão promulgados por lei.”

134 “Art. 161. Sem se fazer constar que se tem intentado o meio de reconciliação, não se começará processo algum, e, sem se demonstrar que se tentou uma solução amigável, ninguém será admitido em juízo.” 135 GABBAY, Daniela Monteiro, 2013, p. 103-113.

136 “Art. 23. Nenhuma causa commercial será proposta em Juizo contencioso, sem que préviamente se tenha tentado o meio da conciliação, ou por acto judicial, ou por comparecimento voluntario das partes.”

137 “Art. 36. Independente de citação poderão as partes interessadas em negocio commercial apresentar-se voluntariamente na audiencia de qualquer Juiz de Paz, para tratarem da conciliação, sendo o seu processo e effeitos os mesmos determinados nos arts. 33, 34 e 35.”

optam livremente pelo procedimento138. Também se argumentava que a obrigatoriedade era onerosa às partes e ao procedimento, além de acometer “coação moral em que são postos os cidadãos pela autoridade publica encarregada de induzi-los a transigir sobre os seus direitos para evitar que sofram mais com a demora e incerteza da justiça constituída”139. Nesses termos, embora não se opusesse à conciliação de disputas, o Estado não mais se propunha a disponibilizar estrutura própria para sua promoção140.

O reacendimento recente do interesse do Estado e do Judiciário pelos meios consensuais, principalmente no âmbito cível, deu-se com mais ênfase na década de 1980, no contexto da redemocratização e dos movimentos pela expansão de direitos e pela democratização do acesso à justiça141, quando então a conciliação ganhou considerável destaque enquanto política judiciária. A criação dos juizados de pequenas causas (Lei nº 7.244/1984 e, posteriormente, no bojo da Lei dos Juizados Especiais Cíveis) foi orientada, dentre outros critérios, pela solução conciliada de conflitos142, fazendo obrigatória a presença

138 “[...] considerando: que a instituição do juizo obrigatorio de conciliação importa uma tutela do Estado sobre direitos e interesses privados de pessoas que se acham na livre administração de seus bens e na posse da faculdade legal de fazer particularmente qualquer composição nos mesmos casos em que é permittido a conciliação, naquelle juizo, e de tornal-a effectiva por meio de escriptura publica, ou por termo nos autos e ainda em juizo arbitral de sua escolha; Que a experiencia ha demonstrado que as tentativas de conciliação no juizo de paz sómente são bem succedidas quando as partes voluntariamente comparecem perante elle nas mesmas disposições, em que podem produzir identico effeito os conselhos de amigo commum, o prudente arbitrio de bom cidadão á escolha dos interess dos e ainda as advertencias que o juiz da causa, em seu inicio, é autorizado a fazer na conformidade da ord. liv. 3º, tit. 20, § 1º; Que, entretanto, as despezas resultantes dessa tentativa forçada, as difficuldades e pro rastinação que della emergem para a propositura da acção, e mais ainda as nullidades procedentes da falta, defeito ou irregularidade de um acto essencialmente voluntario e amigavel, acarretadas até ao gráo de revista dos processos contenciosos, além da coacção moral em que são postos os cidadãos pela autoridade publica encarregada de induzil-os a transigir sobre os seus direitos para evitar que soffram mais com a demora e incerteza da justiça constituida, que tem obrigação legal de dar promptamente a cada um o que é seu; são outros tantos objectos de clamor publico e confirmam a impugnação de muitos jurisconsultos, quaes Meyer, Benthan, Bellot, Boncene, Boitard, Corrêa Telles, a essa obrigatoriedade, nunca admittida ou ja abolida em muitos paizes e notavelmente reduzida, modificada em seus effeitos, para não dizer annullada, pela carta de lei de 16 de junho de 1855 e novo Codigo de Processo Civil promulgado em 8 de novembro de 1876, no proprio reino de Portugal, donde o Imperio a adoptou com supplementos da legislação franceza; [...]” (Decreto nº 359, de 26 de abril de 1890).

139 “Artigo 1º É abolida a conciliação como formalidade preliminar ou essencial para serem intentadas ou proseguirem as acções, civeis e commerciaes, salva ás partes que estiverem na livre administração dos seus bens, e aos seus procuradores legalmente autorizados, a faculdade de porem termo á causa, em qualquer estado e instancia, por desistencia, confissão ou transacção, nos casos em que for admissivel e mediante escriptura publica, ternos nos autos, ou compromisso que sujeite os pontos controvertidos a juizo arbitral.” 140 LUCHIARI, Valéria Ferioli Lagrasta. Comentários da Resolução nº 125, do Conselho Nacional de Justiça,

de 29 de novembro de 2010. In: GROSMAN, Claudia Frankel; MANDELBAUM, Helena Gurfinkel (Orgs.).

Mediação no Judiciário: teoria e prática. São Paulo: Primavera, 2011. p. 281-318. p. 281-284.

141 Sobre esse contexto, ver item 2.1.

142 Artigo 2º da Lei nº 9.099/1995: “O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”.

das partes na audiência preliminar de conciliação, sob pena de desídia do autor (e consequente extinção do processo)143 e revelia do réu144.

Nos anos que se seguiram, outras importantes alterações legislativas aumentaram os incentivos processuais à transação no curso do processo. A Lei nº 8.952/1994 incluiu no Código de Processo Civil o artigo 125, IV145, instituindo como dever do juiz a tentativa de conciliação a qualquer tempo, enquanto a Lei nº 8.953/1994 alterou a redação do artigo 584, incluindo o acordo homologado no rol de títulos executivos judiciais, o que foi mantido pela Lei nº 11.232/2005 no texto do artigo 475-N, III.

Também foi nessa época que apareceu a primeira referência legislativa à mediação no Brasil, no Decreto nº 1.572/1995, que regulamenta a mediação e as negociações coletivas de natureza trabalhista, estabelecendo que, caso seja frustrada a negociação direta ou caso uma das partes considere não possuir condições adequadas para participar da negociação em situação de equilíbrio, é possível solicitar ao Ministério do Trabalho a designação de um mediador. Em 1998, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto nº 4.827 (que tramitou no Senado como Projeto de Lei nº 94/2002), que tinha como objetivo institucionalizar e disciplinar a mediação como método de prevenção e solução consensual de conflitos. A referida proposta sugeria, em seu artigo 4º, que o juiz poderia, a qualquer tempo, buscar “convencer as partes da conveniência de se submeterem à mediação extrajudicial, ou, com a concordância delas, designar mediador, suspendendo o processo pelo prazo de até três meses, prorrogável por igual período” 146.

143 “Artigo 51. Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei: I - quando o autor deixar de comparecer a qualquer das audiências do processo;”

144 “Artigo 20. Não comparecendo o demandado à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção do Juiz.”

145 “Artigo 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: […] IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.”

146 Sobre referido projeto de lei, Kazuo Watanabe comenta: “Vários são os objetivos nela colimados. Um deles é a melhor explicitação da preocupação de tornar o juiz brasileiro mais ativo na condução do processo, fazendo com que, desde o início da ação, identifique as questões relevantes da causa, promovendo contatos mais frequentes dele com as partes, e destas entre si, privilegiando a oralidade e a imediatidade que possibilitem a solução amigável da controvérsia e, quando inatingível a transação, ao menos a condução mais adequada e menos custosa do processo até o final do julgamento. Procura-se, ainda, criar uma mentalidade que prestigie os meios alternativos de solução de conflitos, fazendo com que o próprio magistrado estimule as partes à utilização de vários meios, ditos alternativos, de solução de conflitos, como a mediação, a conciliação, a arbitragem e a opinião neutra de terceiro. E procura o novo texto transmitir a ideia de que é prioritária a busca da ‘pacificação das partes ao invés da solução adjudicada do conflito’, reputando como ‘de relevante valor social’, considerada inclusive para efeito de promoção por merecimento a dedicada atuação do juiz, nesse sentido. E, para tornar mais eficaz a conciliação e a mediação, a proposta autoriza a lei local a ‘instituir juiz conciliador ou recrutar conciliadores para auxiliarem o juiz da causa na tentativa de solução amigavel dos conflitos’.” WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Estudos em homenagem à professora Ada

Ainda em busca de incentivar o uso de técnicas consensuais pelos juízes no curso do processo, em meio às reformas processuais de 2002 a redação do artigo 331 foi alterada para instituir a audiência preliminar de conciliação como uma fase do processo de conhecimento anterior à audiência de instrução e ao julgamento147.

Nos anos que se seguiram, juízes e tribunais passaram a investir cada vez mais em mutirões e centros de conciliação, bem como na institucionalização de programas de mediação, especialmente no âmbito familiar. Com a criação do Conselho Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45/2004, foram organizadas comissões e grupos de trabalho para discutir a Reforma do Judiciário e o Pacto de Estado em Favor de um Judiciário Mais Rápido e Republicano, quando então o incentivo à conciliação e à mediação judiciais passou a integrar a agenda de reformas judiciárias.

Em 2006, a partir da proposta apresentada pela Comissão de Juizados Especiais, foi criado o Movimento pela Conciliação, aprovado pelo CNJ na sessão de 8 de agosto, e editada a Recomendação nº 6, de 24 de outubro de 2006, recomendando que os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais de Justiça adotassem providências no sentido de que os acordos homologados judicialmente fossem valorados como sentenças para todos os efeitos. A proposta era apoiada pela Associação de Magistrados Brasileiros, a Associação de Juízes Federais do Brasil e a Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho (AMB, Ajufe e Anamatra) e pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais Cíveis e pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (Fonaje, Fonajef)148. Uma das primeiras ações do movimento foi a realização do Dia Nacional da Conciliação, que em 8 de dezembro de 2006 contou com 84 mil audiências, das quais 55% resultaram em acordos homologados pelo Judiciário149.

O movimento em prol dos mecanismos consensuais dentro do Judiciário culminou com a edição da Resolução nº 125/2010 pelo CNJ e a instituição da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, que objetiva proporcionar a todos o “direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade” (artigo 1º). Para

147 “Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.”

148 MORAES, Germana de Oliveira; LORENZONI, Eduardo Kurtz. A bandeira da paz na justiça brasileira (nascimento, berço e vida durante a gestão inicial do CNJ). In: PELUSO, Antonio Cezar; RICHA, Morgana de Almeida. (Coords.). Conciliação e mediação: estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 74-84.

149 PACHA, Andréa Maciel. Movimento pela conciliação: o foco na sociedade. In: PELUSO, Antonio Cezar; RICHA, Morgana de Almeida (Coords.). Conciliação e mediação: estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 85-91. p. 86-87.

tanto, estabelece obrigações para o CNJ e para os tribunais no sentido de disseminar a cultura da pacificação e fomentar a utilização de meios consensuais, criando estruturas denominadas Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, incumbidas, dentre outras atividades, de instalar os Centros Judiciários de Soluções de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), que são estruturas capazes de ofertar outros mecanismos de solução de conflitos e de prestar atendimento e orientação ao cidadão. Estabelece-se também que a implementação dessa política deverá observar: a centralização das estruturas judiciárias; a adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores; e o acompanhamento estatístico específico (artigo 2º). Com a resolução, a regra passou a ser a realização de audiências de conciliação e mediação por conciliadores (e não mais pelos próprios juízes) 150 capacitados nos CEJUSCs. Tais conciliadores e mediadores estão sujeitos ao Código de Ética previsto pelo anexo III da resolução.

A pesquisa empírica demonstrou que, desde sua publicação, a resolução vem sendo o principal marco regulatório dos programas judiciais de conciliação e de mediação que, em maior ou menor medida, vêm se estruturando ou reestruturando de modo a observar as diretrizes estabelecidas pelo CNJ.

O projeto do novo Código de Processo Civil também trata da mediação e da conciliação. O texto proposto pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro trata do tema em seus artigos 166 a 176 e, dentre outras disposições, corrobora a política judiciária instituída pelo CNJ no que tange à criação de centros judiciários de solução de conflitos e cidadão, cuja composição e cuja organização continuarão a cargo do Conselho Nacional de Justiça151.

O texto incorpora a diferenciação entre mediação e conciliação que concebe esta como um procedimento mais célere e que visa à solução da disputa em si e aquela como um processo focado mais no relacionamento entre as partes152. Nesse sentido, determina que o conciliador atuará preferencialmente em casos nos quais as partes não tiverem vínculo anterior à controvérsia, podendo sugerir soluções ao litígio, enquanto o mediador lidará com as disputas que envolvam vínculos anteriores entre as partes, cabendo-lhe auxiliá-las a

150 “Artigo 8º, §1º. As sessões de conciliação e mediação pré-processuais deverão ser realizadas nos Centros, podendo, excepcionalmente, as sessões de conciliação e mediação processuais ser realizadas nos próprios Juízos, Juizados ou Varas designadas, desde que o sejam por conciliadores e mediadores cadastrados junto ao Tribunal (inciso VI do art. 7º) e supervisionados pelo Juiz Coordenador do Centro (art. 9º).(artigo 8º, §1º).”

151 “Artigo 166. Todos os tribunais criarão centros judiciários de solução de conflitos e cidadania, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, além de desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.

§1º A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça.”

restabelecer a comunicação para melhor compreender as questões e os interesses em conflito153.

Também estabelece como princípios da conciliação e da mediação a independência, a imparcialidade, a autonomia da vontade, a confidencialidade, a oralidade, a informalidade e a decisão informada (artigo 167) e dispõe sobre o credenciamento de mediadores, conciliadores e câmaras e sobre a remuneração destes, a ser fixada pelos tribunais de acordo com parâmetros estabelecidos pelo CNJ (artigo 170), dentre outros.