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2 MECANISMOS CONSENSUAIS JUDICIAIS COMO RESPOSTA À

2.5 D ESENHO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS

No estudo das práticas e das escolhas realizadas pelos principais atores envolvidos e das iniciativas de institucionalização da mediação e da conciliação no Judiciário, é possível introduzir os conceitos inerentes à técnica de desenho de sistemas de resolução de disputas, que trata da customização de sistemas para lidar com gestão e solução de conflitos em contextos específicos217. Programas judiciais de solução de disputas, sejam os que adotam uma sistemática de multiportas (triagem e encaminhamento de disputas para determinados mecanismos), sejam aqueles desenhados e estruturados a partir de conflitos específicos218, não deixam de ser sistemas de solução de disputas inseridos em um contexto específico (o foro judicial), razão pela qual a análise estruturada de seu desenho é fundamental para compreensão de sua lógica de funcionamento.

A metodologia de desenho de resolução de disputas, segundo William L. Ury, Jeanne M. Brett e Stephen B. Goldberg, tem como ponto de partida a premissa de que disputas podem ser dirimidas por meio da reconciliação de interesses (interests-based) ou de uma determinação de quem está certo (rights-based) ou de quem tem mais poder (power- based)219.Para os autores, a resolução por meio da convergência de interesses é geralmente menos custosa do que aquela em que se determina quem tem razão e esta, por sua vez, envolve menos custos do que a solução que favorece quem tem mais poder. Assim, partes envolvidas em disputas devem tentar estruturar sistemas que privilegiem a reconciliação de

217 Referências sobre essas técnicas podem ser encontradas em URY, William L.; BRETT, Jeanne M.; GOLDBERG, Stephen B., 1993; CONSTANTINO, Cathy. Using interest-based techniques to design conflict management systems. Negotiation Journal, v. 12, n. 207, p. 207-214, 1996; SMITH, Stephanie; MARTINEZ, Janet. An analytic framework for dispute systems design. Harvard Negotiation Law Review, Cambridge, USA, v. 14, n. 123, p. 123-169, 2009; e BINGHAM, Lisa B. Designing justice: legal institutions and other systems for managing conflict. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 1, n. 23, p. 1-150, 2009.

218 Faz-se referência à abordagem dúplice adotada por Frank Sander e Lukasz Rozdeiczer, já mencionada, de busca pelo mecanismo mais adequado de acordo com as características da disputa (“fit the fuss to the

forum”) e de customização de mecanismos de acordo com os objetivos das partes e as caracaterísticas do

caso (“fit the forum to the fuss”). Segundo os autores, a segunda possibilidade teria maior potencial de proporcionar um foro adequado à resolução da controvérsia. No entanto, as duas abordagens são pertinentes: “The first method assumes that the dispute resolution procedures are somewhat fixed, and therefore, prior to knowing the case, one can predict what kind of case should be matched to a certain procedure. To some extent this is true, and such predictions are possible. However, since disputes usually include a great number of elements that can influence and determine the most appropriate procedure, the latter approach of fitting the forum to a described fuss seems more efficient. Beginning the analysis from the parties’ goals and case characteristics, which are hard to change, and then fitting (tailoring) the most appropriate forum for such a case seems a more reasonable approach. Moreover, since one procedure can have a variety of forms, knowing the case allows one not only to match it to one of the known procedures, but also to adapt a procedure to best fit the given dispute. Although the latter approach seems to be superior in most circumstances, in this Article we combine both perspectives”. (SANDER, Frank E. A.; ROZDEICZER, Lukasz, 2006, p. 6-7).

interesses quando possível e, caso não se obtenha uma solução por essa via, viabilizem o uso de métodos baseados em direitos e em poder de forma menos custosa. Custos, para os autores, não são somente recursos financeiros, mas também as oportunidades desperdiçadas e o tempo e a energia emocional gastos com a disputa. Da mesma forma, os ganhos também não são somente monetários, pois se refletem na satisfação dos envolvidos com os resultados e com o processo, nos efeitos sobre as relações e na não recorrência das disputas dirimidas220. O procedimento para construção desses sistemas inicia-se com um diagnóstico dos meios de resolução de disputas existentes: quais são as disputas que surgem no contexto do sistema, como elas são dirimidas (e com que custo) e por que determinados procedimentos são utilizados221. Com base nesse mapeamento, um novo sistema — ou aprimoramentos no sistema atual — pode ser delineado, de modo a reduzir os custos e aumentar os ganhos para os envolvidos. Para tanto, apresentam-se seis princípios básicos a serem observados no desenho de um sistema: (i) o foco deve estar nos interesses; (ii) é necessário que haja mecanismos pelos quais as partes possam voltar a negociar caso entrem em uma disputa de direitos ou de poder; (iii) deve haver procedimentos subsidiários de solução de disputas baseados em direitos e em poder; (iv) deve-se estabelecer meios de consultar os envolvidos antes e após o conflito; e (v) deve-se organizar os procedimentos em uma sequência que vai do menos para o mais custoso222.

Esses conceitos e princípios foram utilizados para estruturação de fundos de indenização a vítimas de acidentes de grandes proporções, tais como o 9/11 Compensation Fund, criado para indenização das vítimas do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001223, e o Gulf Coast Claims Facility, referente ao derramamento de petróleo no Golfo do México em 2010224. Também são comumente usados em programas instalados dentro de organizações para lidar com conflitos internos, como o USPS REDRESS Program, estabelecido pelo US Postal Service para reclamações de discriminação com base em raça, gênero, nacionalidade, religião, idade ou deficiência (equal employment opportunity)225.

220 URY, William L.; BRETT, Jeanne M.; GOLDBERG, Stephen B., 1993, p. 11-12. 221 URY, William L.; BRETT, Jeanne M.; GOLDBERG, Stephen B., 1993, p. 20-40. 222 URY, William L.; BRETT, Jeanne M.; GOLDBERG, Stephen B., 1993, p. 41-64.

223 ACKERMAN, Robert M. The September 11th Victim Compensation Fund: an effective administrative response to national tragedy. Harvard Negotiation Law Review, Cambridge, US, v. 10, n. 135, p. 135-230, 2005. p. 137-140.

224 Mais informações no relatório elaborado pela BDO Consulting a pedido do U.S. Department of Justice: “Independent evaluation of the Gulf Coast Claims Facility - Report of findings & observations”. Disponível em < http://www.justice.gov/opa/documents/gccf-rpt-find-obs.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2013.

225 BINGHAM, Lisa B.; HALLBERLIN, Cynthia J.; WALKER, Denise A.; CHUNG, Won-Tae. Dispute system design and justice in employment dispute resolution: mediation at the workplace. Harvard

No Brasil, a metodologia do desenho de solução de disputas inspirou a estruturação da Câmara de Indenização (CI 3054), montada para indenizar os beneficiários das 199 vítimas do acidente aéreo do voo TAM 3054. Tratou-se de uma iniciativa do Ministério da Justiça que envolveu as companhias aéreas, suas seguradoras, órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e do Sistema de Justiça e os próprios familiares das vítimas226. A experiência serviu de exemplo para o Programa de Indenização 447, originado com o acidente do voo Air France, e para o caso das indenizações coletivas negociadas pela Defensoria Pública no acidente do metrô em São Paulo, em 2007227.

Ao se estruturar programas judiciais de solução de disputas, há uma série de potencialidades e dificuldades a serem analisadas, especialmente em se tratando de disputas individuais repetitivas que integrem um contingente volumoso e representativo.

Como visto no capítulo 1, essas disputas repetitivas podem versar sobre questões de interesse público e sobre direitos individuais homogêneos, situações essas em que há outros fatores que devem ser levados em consideração. Em pesquisa realizada para o Ministério da Justiça (série Pensando o Direito) denominada Desenho de sistemas de resolução alternativa de disputas para conflitos de interesse público228, foram levantadas dificuldades e potencialidades do uso de meios extrajudiciais de solução de conflitos e da customização de sistemas de resolução de disputas envolvendo direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos229.

Dentre as dificuldades apontadas, destacaram-se a questão da responsabilidade objetiva do Estado e as restrições à autocomposição e os limites à negociação pela administração pública, bem como o pagamento de dívidas por meio de precatórios, as restrições orçamentárias, a responsabilidade do gestor público (sob o efeito das leis de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa), a indisponibilidade do bem público, a inafastabilidade da jurisdição e a posição restritiva do Tribunal de Contas quanto aos meios

226 Sobre a Câmara de Indenização do Acidente da TAM, vide FALECK, Diego. Introdução ao design de sistema de disputa: Câmara de Indenização 3054. Revista Brasileira de Arbitragem, Porto Alegre, v. 5, p. 7- 21, jul-ago-set 2009.

227 Mais informações sobre o sistema estruturado para indenização das vítimas do acidente do metrô estão disponíveis no site do Prêmio Innovare: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/indenizacoes- extrajudiciais-relacionadas-ao-acidente-do-metro-em-sao-paulo-2546/>. Acesso em: 11 nov. 2013.

228 Cf. CUNHA, Luciana Gross; GABBAY, Daniela Monteiro (Coords.). O desenho de sistemas de resolução

alternativa de disputas para conflitos de interesse público. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do

Ministério da Justiça, 2011. (Série Pensando o Direito, n. 38/2011).

229 A pesquisa destaca a tramitação do Projeto de Lei nº 5139/2009, propondo a revogação de normas que disciplinam a ação civil pública e a propositura de um novo regime legal que prevê, dentre outras mudanças, a possibilidade de o demandado em ação civil pública apresentar em juízo um programa extrajudicial de prevenção ou reparação de danos a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais (capítulo 10, artigos 57 a 60). Esse programa poderá compreender diversos métodos de solução de disputas e deverá ser necessariamente submetido ao crivo do Ministério Público e do juízo competente.

alternativos de solução de conflitos230. A falta de clareza quanto ao conceito de indisponibilidade do bem público e a responsabilidade pessoal dos agentes (que acabam por preferir decisões judiciais que os isente de responsabilidade) são fatores que também dificultam a tomada de decisões inovadoras para resolução de conflitos envolvendo o interesse público231.

No estudo empírico realizado no Brasil e nos EUA, pretendeu-se analisar programas judiciais de mediação e conciliação para se identificar quais caracteríticas dessas iniciativas repercutem (e como) no tratamento de disputas repetitivas, bem como as práticas especificamente adotadas para lidar com esse tipo de disputa. Esse estudo de aspectos e de escolhas realizadas pelo Judiciário quando da montagem do programa pode ser realizado sob o prisma dos critérios propostos pelos estudiosos de sistemas de solução de disputas. Para tanto, o modelo proposto por Stephanie Smith e Janet Martinez mostra-se bastante adequado, na medida em que, diferentemente de muitos estudos que se propõem a estabelecer um “passo a passo” para construção de um sistema, as autoras estabelecem critérios e terminologias úteis para o estudo e a avaliação de sistemas existentes232:

1. Objetivos:

Que tipos de conflito são remetidos ao programa? Quais são os objetivos do programa?

2. Processos e estrutura:

Quais processos (ou mecanismos) são utilizados para prevenir, gerenciar ou resolver disputas?

Se há mais de um processo/mecanismo, como estão ligados ou integrados? Quais são os incentivos e os desincentivos para se utilizar o programa? Qual a interação do programa com o sistema formal de justiça?

3. Atores (ou stakeholders):

Quem são os stakeholders? Qual o seu poder relativo?

Como seus interesses estão representados no programa?

4. Recursos:

Quais são os recursos financeiros envolvidos? Quais são os recursos humanos envolvidos?

5. Sucesso e transparência:

Quão transparente é o programa? Há uma avaliação?

O programa é considerado bem-sucedido?

Com base nessas categorias, foram delimitados eixos de análise condizentes com o objeto de estudo (programas de resolução de disputas anexos ao Judiciário) e com o objetivo

230 CUNHA, Luciana Gross; GABBAY, Daniela Monteiro (Coords.), 2011, p. 14. 231 CUNHA, Luciana Gross; GABBAY, Daniela Monteiro (Coords.), 2011, p. 74-75. 232 SMITH, Stephanie; MARTINEZ, Janet, 2009, p. 133.

de se investigar a repercussão das demandas repetitivas sobre a conciliação e a mediação judiciais.