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1 AS DISPUTAS REPETITIVAS, O JUDICIÁRIO E O PROCESSO

1.4 L ITIGIOSIDADE REPETITIVA NOS EUA

Considerando-se o propósito de se delinear uma noção mais ampla de litigiosidade repetitiva, adequada à análise de práticas de gerenciamento e do uso de técnicas consensuais de resolução de disputas, é pertinente o estudo da concepção de litigância repetitiva (ou repeated litigation) nos Estados Unidos, até para permitir que o estudo empírico realizado nos programas judiciais de mediação e conciliação norte-americanos aborde o tratamento dado a essas disputas considerando o contexto e as noções lá vigentes.

A ideia de litigância repetitiva é frequentemente associada nos Estados Unidos com as mass torts, que consistem em demandas indenizatórias fundadas nas quais se alega um dano pessoal (personal injury) ocasionado por uma determinada circunstância e cuja responsabilidade é atribuída a um determinado agente92. De acordo com Deborah R. Hensler e Mark A. Peterson, há um elevado número de demandas indenizatórias que podem ser consideradas tort litigation, tais como as numerosas ações que tratam de acidentes automobilísticos em curso no Judiciário norte-americano. Esse contingente de ações passa a ser considerado uma mass tort (ou seja, uma litigância de massa) quando são identificados assuntos e atores em comum dentre as demandas individuais, identidade essa decorrente de uma origem em comum dos danos alegados93: um incêndio, o colapso de um prédio ou o uso alastrado de determinado produto defeituoso.

Outro elemento característico das mass torts seria o fato de que as partes são representadas por um número limitado de advogados e escritórios (um advogado representa alguns ou muitos dos autores afetados) e de que as demandas são processadas por um número limitado de juízes94, que lidam com a litigância utilizando-se de procedimentos de agregação,

91 Empresas teriam obtido êxito em quase 50% do total dos recursos em que litigaram, sendo que, quando a parte contrária era um indivíduo, esse percentual é 6,3% maior (SONGER, Donald R.; SHEEHAN, Reginald S.; HAIRE, Susan Brodie, 2004, p. 95).

92 HENSLER, Deborah. Glass half full, a glass half empty: the use of alternative dispute resolution in mass personal injury litigation symposium – national mass tort conference. Texas Lax Review, v. 73, p. 1587- 1623, 1994-1995. p. 1596.

93 HENSLER, Deborah R.; PETERSON, Mark A. Understanding mass personal injury litigation. Brooklyn

Law Review, v. 59, n. 3, p. 965-967, 1993.

94 “Courts typically assign mass torts to one or a few judges for pretrial purposes, either through formal mechanisms, such as the federal multi-district litigation procedure, or through informal court assignment

tais como a multidistrict litigation95 e a própria class action96. Deborah R. Hensler levanta também que é comum que esse tipo de litigância envolva controvérsias científicas sobre as causas dos danos alegados, animosidades políticas ou emocionais e um número elevado de possíveis novas demandas a serem ajuizadas por indivíduos que aleguem ter sofrido os mesmos danos97.

Ainda sobre a definição de mass torts, Richard A. Nagareda entende que a litigância envolvendo danos pessoais pode ser reconhecida como de massa quando envolve as seguintes características: numerosidade, dispersão geográfica (dificuldade de precisar geograficamente onde estão os afetados pelo evento causador do dano), dispersão no tempo (dificuldade de delimitar no tempo os efeitos desse evento) e padrões factuais (similitude das questões alegadas e interdependência de seus valores)98. São esses elementos que tornam o gerenciamento, o processamento e o julgamento dessa litigância especialmente difícil para o Judiciário, que passaria de uma abordagem de varejo para uma administração de atacado dessas disputas, levando em consideração a escassez de recursos para processamento de cada caso individualmente99.

Uma definição mais ampla é a utilizada por um grupo de pesquisa do RAND Institute for Civil Justice, para quem a definição de mass litigation100 compreende os seguintes elementos: (i) grande número de demandas e demandantes; (ii) alegações de danos pessoais,

practices. As a result, a small number of judges may be responsible for critical decisions which affect hundreds or thousands of cases, adding another common factor to the litigation.” (HENSLER, Deborah R.; PETERSON, Mark A., 1993, p. 967).

95 Procedimento pelo qual demandas envolvendo questões fáticas semelhantes podem ser remetidas a um mesmo juízo para que coordene as ações pertinentes à fase pré-julgamento (pretrial): “28 USC § 1407: (a) When civil actions involving one or more common questions of fact are pending in different districts, such actions may be transferred to any district for coordinated or consolidated pretrial proceedings. Such transfers shall be made by the judicial panel on multidistrict litigation authorized by this section upon its determination that transfers for such proceedings will be for the convenience of parties and witnesses and will promote the just and efficient conduct of such actions. Each action so transferred shall be remanded by the panel at or before the conclusion of such pretrial proceedings to the district from which it was transferred unless it shall have been previously terminated: Provided, however, that the panel may separate any claim, cross-claim, counter-claim, or third-party claim and remand any of such claims before the remainder of the action is remanded”.

96 A class action norte-americana está disciplina pela Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, que dispõe sobre seus requisitos, suas tipificações, suas regras de processamento, sua legitimidade e sua representação e sobre procedimentos específicos em caso de acordo. Ver mais sobre procedimentos de agregação do Judiciário norte-americano no capítulo 5, item 5.3.

97 HENSLER, Deborah, 1994-1995, p. 1596.

98 NAGAREDA, Richard A. Mass torts in a world of settlement. Chicago: The University of Chicago Press, 2007. p. xii-xx.

99 “The sheer number of claims belies any aspiration for an individualized ‘day in court’, if for no other reason than the scarcity of judicial resources. The move from retail to wholesale administrative resolution of claims, in other words, is driven in part by raw numbers.” (NAGAREDA, Richard A., 2007, p. xiii).

100 GARBER, Steven; GREENBERG, Michael D.; ERKUT, Emre; LIU, Ying. Framework for analyzing influences and outcomes of mass litigation episodes in the United States. RAND Working paper WR-689-

danos materiais, perda financeira ou qualquer combinação destes; (iii) potencial de dispêndio de grandes quantias por partes dos réus, de seus seguradores, dos autores e de seus advogados; e (iv) valores envolvidos interdependentes101.

Segundo os autores, esse conceito relaciona-se com a definição de Marc Galanter de casos congregados, que são um grupo de demandas que compartilham as mesmas caracaterísticas, um mesmo histórico e um possível desfecho em comum102. Esses elementos de identidade, ou “características compartilhadas”, podem ser de diferentes naturezas, tais como a origem comum das demandas em um mesmo evento específico (como um desastre ou um acidente) ou no uso de determinado produto, a aplicação de uma mesma doutrina jurídica ou de um mesmo procedimento processual ou, ainda, o reconhecimento de um mesmo direito subjetivo103. Galanter também ressalta que, como advogados se especializam em casos congregados, sua atuação também influencia a identificação da similitude entre essas demandas.

Ainda sobre litigância repetitiva, mas mais especificamente em casos de mass torts, Galanter trata também das vantagens específicas do litigante repetitivo que figura tipicamente como réu nesse tipo de litigância104. Denota-se que, mesmo quando os advogados assessorando os autores/litigantes ocasionais sejam experientes nesse tipo disputa, os réus/litigantes repetitivos são grandes organizações que investem também em mudanças legislativas favoráveis105 — por exemplo, em relação às torts, nas mudanças legislativas que diminuiriam sua responsabilidade e a abrangência dos remédios legais (tort reform).

101 Essa interdependência de valores resultaria do fato de que essas demandas versam sobre assuntos de fato e de direito em comum e de que os réus possuem fundos limitados para pagar advogados, sendo que o valor eventualmente disponibilizado para propor acordos é determinado com base no julgamento de um número relativamente limitado de demandas, chamadas de “bellwether trials”. (GARBER, Steven; GREENBERG, Michael D.; ERKUT, Emre; LIU, Ying, 2009, p. 5). Essa expressão, que advém do termo utilizado popularmente para designar o carneiro (“wether”) escolhido para liderar o rebanho e em cujo pescoço é pendurado um sino (“bell”), remete a um procedimento comumente utilizado por juízes no qual uma “amostra” de casos semelhantes é levada a julgamento perante o júri de modo que os vereditos sirvam de base para julgamentos e negociações de acordos futuras (LAVAH, Alexandra D. Bellwether trials. The

George Washington Law Review, n. 76, p. 576-638, 2008).

102 GALANTER, Marc. Case congregations and their careers. Law & Society Review, v. 24, n. 2, p. 371-395, 1990.

103 GALANTER, Marc, 1990, p. 372.

104 GALANTER, Marc. Real world torts: an antidote to anecdote. Maryland Law.Review, v. 55, p. 1109-1160, 1996.

105 “Individual tort claims involve a battle between victims and injurers about specific items of past conduct, a battle conducted by specialized champions within the limiting forms of the judicial contest. But the debate on tort policy is prospective; the participants are potential injurers and potential victims. Among the former are large organizations that can anticipate that they will be repeat players in the civil justice arena and have the resources as well as the incentive to invest in favorable rules. Against the tangible stakes of potential injurers, those of potential victims are remote and diffuse, so they are represented in policy debate by surrogates who may have cross-cutting interests (like plaintiffs' lawyers) or competing priorities (like politicians).” (GALANTER, Marc, 1996p, 1155).

A pesquisa empírica também demonstrou que a noção de litigiosidade repetitiva presente na percepção dos atores vinculados aos programas judiciais que oferecem outros meios de solução de disputas é bastante relacionado com a atuação de atores repetitivos, que não são somente as partes em disputa, mas também os próprios mediadores e os demais funcionários envolvidos no programa.