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Breve genealogia do conceito de segurança alimentar: três debates

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 65-68)

Desde a sua introdução há mais de 40 anos, mais concretamente no âmbito do Congresso Mundial de Alimentação realizado em Roma, no ano de 1974, que o conceito de segurança alimentar foi sofrendo diversas reformulações, revestindo-se de uma complexidade crescente e implicando esforços acrescidos de operacionalização no plano da investigação. Segundo Carolan (2012), a evolução deste conceito enquadra-se em torno de três debates centrais: a importân- cia das calorias articulada com a segurança alimentar (1940 até aos dias de hoje); o desenvolvimento da ideologia neoliberal da segu- rança alimentar (1970 até ao presente); a quebra da importância dada às calorias, dando-se atenção a outros aspetos, como o ambiente, a justiça social e a cultura alimentar (1980 aos dias de hoje).

O primeiro debate em torno das calorias emerge com as preo- cupações da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), criada em 1943, para assegurar um sistema de pro- visão alimentar adequado às populações, aproximando-se de uma das primeiras formulações de segurança alimentar: o combate à fome e à escassez alimentar. Esta tónica na escassez faz enfatizar a necessidade de produzir mais, equacionando-se os problemas da fome nos países em desenvolvimento como um problema de produção (ao contrário do que veio depois a ser discutido, como sendo uma questão de desa- dequada distribuição) e de fortalecimento calórico das populações. Aliás, esta ideia de «calorificação» da população estava bem presente nas políticas de saúde da primeira metade do século xx, de forma a

1 No contexto português, o conceito de segurança alimentar pode remeter para

duas realidades distintas, quer para os aspetos mais quantitativos ligados ao conceito anglo-saxónico de food security, quer para os aspetos higieno-sanitários relacionados com questões ligadas à segurança dos alimentos – food safety (Gregório et al. 2014; Pinto e Rolo 2015).

combater o raquitismo e outros problemas em torno da pobreza e má nutrição, nomeadamente das crianças (Truninger et al. 2012). Em Por- tugal, nos anos 40, 50 e 60, especialmente em meios rurais (Alentejo, Vila Real e Santo Tirso), elaborou-se uma série de inquéritos alimenta- res para compreender melhor as necessidades nutricionais das popula- ções e saber responder com políticas adequadas ao combate à escassez alimentar e à malnutrição (Basto e Barros 1943; Carvalho e Gomes 1973; Oliveira e Silva 1948). Segundo Freire (2011), as autoridades portuguesas durante estas décadas enviavam para a FAO e a OCDE os valores calóricos da população portuguesa aí incluindo os dados relativos ao consumo de vinho, de forma a impulsionar estes valores e atingir mais rapidamente os níveis mínimos necessários para passar nos critérios internacionais de uma alimentação adequada (cerca de 3000 calorias per capita). A inclusão do vinho nestes cálculos das calo- rias era uma particularidade portuguesa, a qual contribuía com um aumento de cerca de 5 % no total de calorias per capita (Freire 2011). Até 1974, o vinho era considerado um alimento muito nutritivo, havendo várias campanhas para o seu consumo dirigidas a homens, mulheres e até crianças de várias proveniências sociais (Freire 1999). Com isto, as questões de alcoolismo entre a população portuguesa foram aumentando, mas este era um problema de saúde desdramati- zado pelas autoridades que elogiavam o vinho como fonte de saúde e de riqueza calórica, e apontavam outras bebidas (aguardentes, lico- res) como as verdadeiras causas de tal aumento do alcoolismo (Freire 2011).

Ora, sendo a tónica dada às questões da produção agroalimen- tar e da segurança energética a nível das calorias, compreende-se o grande impulso dado às políticas agrícolas nacionais e internacio- nais baseadas no modelo produtivista. Este encontra expressão plena na revolução verde aplicada em muitos países em desenvolvimento como resposta aos problemas da fome e da escassez alimentar (mais tarde, com consequências ambientais gravíssimas para estes países e sem resolver de forma estrutural os problemas da fome, devido, entre outras questões, aos desequilíbrios de distribuição de poder no sis- tema agroalimentar global).

Outra corrente de debates importantes para enquadrar a segu- rança alimentar emerge quando o modelo produtivista começa a ser posto em causa e se olha para o mercado como fulcral para resolver as

questões da distribuição agroalimentar. Aqui emerge a forte influência da ideologia neoliberal, que tem vindo a estabelecer-se como racionali- dade subjacente às políticas públicas dos países desenvolvidos desde a segunda metade do século xx e, sobretudo, desde a dissolução do bloco

soviético a partir de 1989 – em oposição a uma ideologia de carác- ter keynesiano em que se privilegia um papel mais forte do Estado na regulação da economia, bem como a redistribuição governamental da riqueza. De um modo geral, os princípios subjacentes ao pensamento neoliberal traduzem-se na importância atribuída ao mercado (enquanto mecanismo de distribuição dos recursos que permite promover maior eficiência, prosperidade e liberdade do que a regulação centralizada dos Estados); à liberdade individual no âmbito do Estado de Direito; a uma redução da intervenção do Estado; e ao respeito pela propriedade pri- vada (Turner 2008). Nesta perspetiva, na essência do neoliberalismo está um movimento no sentido da redução das estruturas públicas cole- tivas e centralizadas para a valorização da tomada de decisões a nível individual. Consequentemente, grande parte das estruturas produtivas agroalimentares de vários países foi desmantelada de forma a apostar nas soluções oferecidas pela libera lização dos mercados a nível global. Estruturas de produção e de armazenamento foram preteridas em fun- ção do papel das importações e uma forte dependência do mercado internacional de forma a conseguir «calorias baratas» (Carolan 2012). Isto veio ameaçar a soberania alimentar de muitos Estados, fazendo os países depender do mercado alimentar global em vez dos mercados mais localizados, e trazendo vulnerabilidades aos mecanismos de segu- rança e autoabastecimento alimentar nacionais.

Esta situação elevou os debates em torno da segurança alimentar a um outro nível, nomeadamente a um olhar crítico sobre a quali- dade alimentar. Este olhar crítico desvia a atenção de um enfoque puramente calórico, e posiciona o conceito de segurança alimentar na confluência de várias outras preocupações. São elas o bem-estar individual e social, a concentração do mercado, a nutrição e a dieta adequada, a sustentabilidade ecológica, a justiça social, os níveis de soberania e dependência alimentar dos países. Este olhar crítico sobre a conquista da segurança alimentar a todo o custo, através de meca- nismos de mercado que colocam o preço e a quantidade à frente da qualidade, eleva o debate para a promoção dos direitos humanos (como sejam os direitos ao emprego, cuidados de saúde, educação

e alimentação). O Direito Humano à Alimentação é visto cada vez mais como uma via possível na redefinição e reenquadramento do conceito de segurança alimentar. Mas como é que este conceito tem sido definido desde os anos 70 com o contributo da FAO e, sobre- tudo, no âmbito dos debates atuais?

Definições de (in)segurança alimentar à luz

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 65-68)