• Nenhum resultado encontrado

A reconfiguração de velhos debates sobre (in)segurança alimentar: dos Direitos

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 75-78)

Humanos às Alterações Climáticas

Segurança alimentar e direitos humanos

Nos anos 90, paralelamente a uma abordagem mais individua- lista, emergiu uma perspetiva mais ampla sobre a segurança alimentar, que a posiciona no quadro dos direitos humanos como condição de desenvolvimento humano, a par de critérios económicos, de saúde, ambientais, comunitários, políticos e pessoais (PNUP 1994). Neste contexto, as causas da insegurança alimentar são concebidas em ter- mos estruturais, remetendo-se para as plataformas de governação locais e globais uma maior responsabilização no plano da capacitação dos indivíduos em termos de recursos.

Governos e agências internacionais têm tentado várias formas para melhorar a segurança alimentar – tanto a nível nacional como mundial. Mas estes esquemas tiveram um impacto muito limitado. O acesso à alimentação surge com o acesso aos bens, ao trabalho e a rendimentos garantidos. E a menos que a questão do acesso aos bens, ao emprego e à segurança salarial seja abordada a montante, as inter- venções do Estado não conseguem fazer muito pela insegurança ali- mentar a jusante [PNUP 1994, 27, tradução própria].

A integração efetiva da alimentação no quadro dos direitos huma- nos tem sido amplamente discutida (Dowler 2002; Dowler e O’Connor 2012), sendo observado geralmente um desfasamento entre o discurso sobre a alimentação enquanto condicionante da saúde e, portanto,

enquanto direito inalienável de todas as pessoas, e a conceção das políticas de apoio alimentar existentes, tanto a nível local como a nível nacional. A generalidade das medidas apresentadas no campo da alimentação, e em concreto no da erradicação da pobreza e da inse- gurança alimentar, apresentam um cariz fortemente discricionário. Atendendo ao seu alcance relativamente limitado, não se constituem enquanto instrumentos para assegurar um direito consagrado de todos os indivíduos. Antes, as orientações comunitárias em torno da pobreza e da insegurança alimentar assentam no reconhecimento dos indiví- duos enquanto agentes racionais, cujas competências em matéria de consumos alimentares podem, em caso de deficiência, ser melhoradas por via de programas de disseminação de informação e conhecimento. Como reforçam Dowler e O’Connor (2012, 44-45, tradução própria):

De uma forma geral as respostas das políticas públicas dentro de estados neoliberais partem de um modelo consumista que se baseia na escolha informada: o fornecimento de recomendações sobre nutrição e dieta alimentar e a certificação dos produtos são consideradas respos- tas-chave para qualquer agregado familiar, independentemente da sua situação económica ou social. A posição normalmente adotada é ques- tionar as competências a nível dos indivíduos em famílias carenciadas, e focar na existência de conhecimento nutricional e capacidade de gerir um orçamento, fazer compras, cozinhar ou fazer a escolha acertada nas instituições (cantinas, etc.). Que as pessoas devam ser capazes de chegar às lojas, comprar a comida adequada, com dinheiro suficiente, é em grande medida deixada ao mercado para resolver, sendo que o custo dos alimentos em relação aos salários não é regulamentado.

De notar desde logo que a observação de Dowler e O’Connor tem por base uma investigação realizada no Reino Unido e na Irlanda, países com modelos de providência de tipo liberal, de acordo com a tipologia de Esping-Andersen (1990). O mesmo se aplica, contudo, ao caso português, onde o modelo de Estado-Providência permanece, de resto, num formato inacabado típico dos países da Europa do Sul (Silva 2002). Analisando a trajetória dos programas europeus no âmbito do apoio alimentar desde os anos 80 até à atualidade, observa- -se uma certa permanência do carácter essencialmente informativo ou educativo das linhas de atuação que não retira, apesar de tudo, lugar ao estabelecimento de apoios para as populações mais carenciadas.

Apesar de o conjunto de fatores de risco associados à segurança ali- mentar ser amplo (Campbell 1991; Dilley e Boudreau 2001), existe um relativo consenso global quanto à predominância dos fatores económi- cos no desfavorecimento das situações alimentares das famílias e dos indi- víduos. Uma das definições de insegurança alimentar mais consensuais e amplamente mobilizadas no contexto académico e político remete diretamente (e, aliás, quase exclusivamente) para os recursos financeiros.

[…] insegurança alimentar é uma condição que emerge da falta de dinheiro e de outros recursos para adquirir comida. […] A quanti- dade de dinheiro que um agregado familiar gasta em comida fornece uma ideia sobre se está a satisfazer as suas necessidades alimentares de forma adequada. Quando as famílias reduzem as despesas alimentares abaixo de um nível mínimo por causa da restrição de recursos, vários aspetos de insegurança alimentar podem surgir, como interrupções nos padrões alimentares e redução na ingestão de alimentos [Nord, Andrews e Carlson 2009, 22, tradução própria].

Esta é a visão dominante sobre as causas da insegurança alimen- tar no contexto norte-americano, onde de resto as políticas de apoio alimentar têm vindo a apostar na compensação financeira das famí- lias carenciadas através da distribuição de vales-refeição (food stamps), por exemplo. Estas famílias podem depois comprar alimentos de acordo com as suas preferências alimentares, exercendo alguma auto- nomia nas compras. Noutros contextos, como nos países em desen- volvimento, as causas da insegurança alimentar não se concentram de forma tão aguda na dimensão do acesso. São sobretudo causas de natureza mais estrutural, remetendo, quer para as questões que condicionam a disponibilidade alimentar, quer para as questões que dificultam a utilização adequada dos alimentos (por exemplo, falta de saneamento e/ou degradação das condições de saúde pública).

O conceito de segurança alimentar tornou-se num instrumento discursivo poderoso no plano político, apesar das sucessivas recon- ceptualizações que sofreu e das dificuldades na sua operacionalização e medição. Como refere Midgley (2013), para além da presença estra- tégica e aspiracional da segurança alimentar nos debates de políticas públicas, pouco se manteve constante na discussão deste conceito. Tornou-se num termo estratégico utilizado por diferentes grupos e interesses de forma a conseguir consensos. O poder deste conceito na

mobilização de consensos entre interesses divergentes e em períodos de relevância política tem assegurado a sua utilização permanente.

Se no âmbito do discurso político e de movimentos de reivindica- ção de direitos sociais o conceito de segurança alimentar é útil como um todo, no domínio da investigação científica, a valência deste con- ceito reside na sua complexidade, sendo pois mais útil deste ponto de vista quando «desconstruído nas suas partes constituintes para efeitos de monitorização, ação e avaliação» (Coates 2013, 188).

Como fomos referindo a propósito do desenvolvimento do con- ceito de segurança alimentar, dado o seu carácter multidimensional, a operacionalização deste implica que se definam os propósitos da sua mobilização no contexto da pesquisa. Ou seja, a medição da segurança alimentar depende fortemente do contexto a que nos reportamos.

A validade do conceito tem sido examinada a partir de algumas frentes que se questionam quanto à sua adequação em contextos culturais diversos. Estas críticas emergem sobretudo em países onde o valor simbólico da alimentação se encontra mais profundamente enraizado, como é o caso da Itália.

Para os italianos, a segurança alimentar significa muito mais que a mera disponibilidade e acessibilidade, já que a alimentação é uma das principais formas de ancorarem a sua identidade [Brunori, Malandrin e Rossi 2013, 19, tradução própria].

Neste caso, a segurança alimentar vai mais além do simples acesso à quantidade suficiente de alimentos, remetendo para o acesso aos alimentos desejados pelos indivíduos. Estes desejos ou preferên- cias alimentares estão enquadrados numa cultura alimentar especí- fica, destacando-se a importância simbólica, identitária e comunica- cional da alimentação.

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 75-78)