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Segurança alimentar: operacionalização e análise crítica

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 80-86)

Têm surgido diversas propostas de operacionalização do con- ceito de segurança alimentar, tendencialmente orientadas para o

desenvolvimento de escalas de medição passíveis de integrar instru- mentos de recolha extensivos. Uma vez que as carências nutricio- nais nem sempre são explicadas através de indicadores de pobreza, de escassez alimentar ou de desenvolvimento humano, o recurso a inquéritos no estudo das causas e consequências da (in)segurança alimentar tem sido muito importante (Webb e Harinarayan 1999).

Os avanços metodológicos na avaliação da (in)segurança ali- mentar têm acompanhado, de uma maneira geral, a evolução mais elementar do conceito. Em primeiro lugar, identifica-se uma transi- ção do recurso a medidas de disponibilidade alimentar e de utilização dos alimentos para medidas de acesso a uma alimentação adequada. Em segundo lugar, a preferência por medidas subjetivas de pobreza e insegurança alimentar, dado que estas possibilitam a emergência de fatores e consequências associados que não são imediatamente tan- gíveis, e cuja apreensão é possível apenas a partir dos discursos das pessoas acerca das suas situações e experiências (Webb et al. 2006). Em terceiro lugar, uma crescente preocupação com a medição funda-

mental (ou seja, não mediada por critérios de medição estandardiza-

dos), em oposição à medição baseada em indicadores predefinidos. Note-se que, ao contrário do que sucede em relação à medição das disponibilidades alimentares (cuja Balança Alimentar mede relati- vamente bem), não é possível encontrar indicadores exatos para as falhas no acesso à alimentação (Webb et al. 2006).

Como referem Maxwell, Caldwell e Langworthy (2008), têm sido feitas tentativas para desenvolver e sofisticar os indicadores de acesso alimentar. No entanto, nessa medição existem problemas críticos a considerar. Por exemplo, a segurança alimentar é um processo que se gere de acordo com um padrão mais ou menos previsível: as pessoas conseguem antecipar um problema relativamente ao acesso alimentar e começar a desenhar e a modificar os seus comportamentos de forma a precaverem-se o mais possível da crise alimentar que se avizinha.

Mais ainda, as estratégias adotadas para fazer face à crise alimentar têm diferentes graus de intensidade, sendo que nem sempre se apli- cam as medidas consideradas mais sérias em situações muito críticas. Portanto, não há uma correspondência clara entre determinadas estra- tégias de adaptação à crise e a gravidade da crise de insegurança alimen- tar. Finalmente, os significados culturais atribuídos às estratégias de adaptação são diferenciados de acordo com o grupo social específico

em análise. Tudo isto torna difícil medir de forma exata as questões de acesso alimentar (Maxwell, Caldwell e Langworthy 2008).

Assim, existe um certo consenso demonstrado ao longo da última década quanto à necessidade de desenvolver indicadores válidos em diferentes contextos, sendo dada preferência a escalas e índices:

As escalas de segurança alimentar [...] foram construídas com a intenção de captar aspetos-chave da insegurança alimentar, incluindo insuficiência alimentar (em qualidade e quantidade), inaceitabilidade cultural, e incerteza. No entanto, aspetos que se prendiam com medi- ções concorrentes conduziram à necessidade de sacrificar a medição completa de cada uma destas dimensões [Coates 2013, 190, tradução própria].

A realização de pesquisas exploratórias assentes em metodologias qualitativas é da maior relevância no estudo da (in)segurança alimen- tar, na medida em que, tratando-se de um fenómeno variável de con- texto para contexto, as suas causas e consequências podem diferir, assumindo diversas formas e intensidades. Neste sentido, a utilização acrítica de indicadores predefinidos pode implicar a negligência de aspetos importantes para a resolução do problema a nível político (Webb et al. 2006). A construção de indicadores de raiz (grounded) tem assim grande potencial, pressupondo as seguintes condições: 1) construção e validação de medidas de insegurança alimentar basea- das nas experiências das pessoas, utilizando métodos qualitativos e quantitativos em contextos diversos; 2) desenvolvimento de proto- colos práticos e de aplicação concretizável em contextos diversos, facilitando a construção de medidas adequadas de insegurança ali- mentar; 3) disseminação de resultados e do protocolo de aplicação, encorajando a sua adequada utilização. Ao mesmo tempo, esta abor- dagem potencia a identificação de aspetos universais da insegurança alimentar, bem como de aspetos variáveis em função do contexto (Wolfe e Frongillo 2001).

Clay (2003) sugere o recurso a análises multicritério no estudo da insegurança alimentar, compreendendo um conjunto alargado de variáveis explicativas do fenómeno. Propõe que se incluam aqui indicadores inspirados no contributo de Amartya Sen (1981) acerca do papel dos direitos no acesso a uma alimentação adequada,

sublinhando que tal implica a introdução de uma discussão ética sobre segurança alimentar, distinta das abordagens mais simples que definem o problema de forma mais restritiva (Clay 2003).

Uma das propostas operacionais mais amplamente aprovadas e legitimadas é a U.S. Household Food Security Scale, desenvolvida pelo

Food Security Measurement Project, da responsabilidade do Departa-

mento de Agricultura dos EUA (USDA).

A partir de uma questão relativamente simples e que aparece nos inquéritos alimentares do USDA desde 1977 (Keenan et al. 2001), pro- cede-se à identificação dos casos de insegurança alimentar potencial. Pede-se aos inquiridos que selecionem a frase que melhor descreve a sua situação alimentar: 1) comemos sempre o suficiente e os alimen- tos que queremos; 2) comemos sempre o suficiente mas nem sempre os alimentos que queremos; 3) por vezes não comemos o suficiente; 4) muitas vezes não comemos o suficiente.

A escala de segurança alimentar do USDA consiste num conjunto de 18 itens que mede a gravidade da insegurança alimentar e fome vivida pelos agregados familiares nos últimos 12 meses. A partir das respostas dos indivíduos ao conjunto de itens, é depois atribuído um

score a cada agregado que no fundo consiste numa contagem de itens

afirmativos e que remete, posteriormente, para as quatro categorias enunciadas na figura 2.1 (ver a página seguinte).

Este instrumento é bastante útil para monitorizar a prevalência da insegurança alimentar, avaliando-a sob diferentes ângulos. Um dos méritos da medida norte-americana é o facto de ter sido construída a partir de entrevistas em profundidade conduzidas junto de mulheres com e sem filhos, de baixos rendimentos, residentes em meios rurais e que viveram situações de insegurança alimentar (Radimer, Olson e Campbell 1990; Wolfe e Frongillo 2001). A partir desta pesquisa exploratória foi possível concluir que:

[...] a insegurança alimentar é experienciada de forma diferente nos níveis do agregado doméstico, dos adultos e das crianças; [sendo que] os adultos amortecem os efeitos da insegurança alimentar sobre as crianças; [e que] a insegurança alimentar tem quatro componentes, duas diretamente relacionadas com a comida (quantidade e qualidade dos alimentos), e duas de natureza psicológica e social (certeza, rela- cionada com as preocupações sobre a alimentação, e aceitabilidade,

Figura 2.1 – Escala de (in)segurança alimentar

Sem ou com evidências mínimas de insegurança alimentar

Com preocupações na gestão do orçamento alimentar, obrigando a reajustamentos (e. g., substituição de produtos mais caros por mais baratos ou de menor qualidade nutricional).

Com redução da ingestão de bens alimentares apenas nos adultos ao ponto de experienciarem situações de fome.

Com redução da ingestão de bens alimentares tanto nos adultos como nas crianças ao ponto

de experienciarem situações de fome.

ESCALA DE (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR

INSEGURANÇA ALIMEN

TA

R

relacionada com o modo como os alimentos são adquiridos); [notando-se também que] a fome é a consequência mais extrema da insegurança alimentar [Wolfe e Frongillo 2001, 6, tradução própria].

Foi a partir dos testemunhos das entrevistadas sobre a experiência da insegurança alimentar que se desenvolveram os itens que viriam a integrar a escala de segurança alimentar, sendo que à realização das entrevistas se sucedeu uma fase de validação dos itens através da aplicação de inquéritos à população (Wolfe e Frongillo 2001). Outro aspeto importante, e que contribui para a ampla adoção desta medida, prende-se com a relativa facilidade da sua administração, sendo que, de um modo geral, requer menos de quatro minutos de inquérito. Para além disso, é uma medida que permite categorizar os agregados em termos da gravidade da insegurança alimentar, con- forme exposto anteriormente (Wolfe e Frongillo 2001).

No caso português, esta escala tem permitido avaliar níveis de segurança alimentar em agregados familiares através do INFOFAMÍLIA – Estudo de Avaliação da Segurança Alimentar e outras questões de saúde relacionadas com condições socioeconó- micas. Este estudo,2 iniciado em 2011, de abrangência nacional e com uma periodicidade anual, é da responsabilidade da Direção- -Geral de Saúde e tem possibilitado cumprir as decisões tomadas no âmbito das políticas de alimentação e nutrição, assentes na neces- sidade de recolher informação de qualidade e atualizada. A aplica- ção destas escalas em diversos países a nível mundial, bem como a adaptação e validação das mesmas a diferentes contextos socioeco- nómicos e culturais, justifica a sua aplicação no contexto português (Gregório et al. 2014).

Existem, contudo, algumas críticas à escala do USDA, nomeada- mente por representar uma medida subjetiva de avaliação da situa- ção de insegurança alimentar e, também, por não ser sensível às variações intradomésticas da segurança alimentar, captando a con- dição dos agregados familiares enquanto grupos, e não a condição individual de cada um dos seus elementos (Connell et al. 2004).

2 A metodologia adotada neste estudo para a avaliação da condição de segurança

alimentar das famílias portuguesas resulta da adaptação da «Escala Brasileira de Inse- gurança Alimentar», que originalmente foi implementada pelo USDA (Gregório et al. 2014).

Estratégias de adaptação: algumas

No documento Alimentação em tempos de crise (páginas 80-86)