Perante o risco iminente de se verem na impossibilidade de adqui- rir alimentos em quantidade suficiente para assegurar a sua alimenta- ção, as famílias adotam estratégias de resposta diversas.
No nosso inquérito foi considerado um conjunto de estratégias que permitem às famílias em dificuldades (ou que anteveem difi- culdades) gerir os seus recursos no campo da alimentação (ver o quadro 3.5). Consideraram-se práticas associadas à redução do des- perdício alimentar (tanto na confeção dos alimentos como na sua preservação e reutilização) e à poupança (na opção por produtos mais baratos e na minimização dos gastos energéticos associados à confe- ção e preservação dos alimentos).
Mesmo nas famílias em situação de segurança alimentar, observa- -se uma forte adesão a um conjunto de práticas associadas ao desen- volvimento de estratégias de adaptação. Na sua análise ao consumo e à adesão a estratégias de adaptação durante o período de 2010-2014, Frade e Coelho (2015) já haviam salientado que, em alturas de crise, as famílias tendem a sacrificar os seus hábitos de consumo para prote- ger o bem-estar da família, sobretudo o das crianças.
A questão normativa pode, de facto, estar também saliente no nosso estudo, uma vez que algumas questões orientam os inquiri- dos para uma resposta socialmente desejável, isto é, para «boas prá- ticas» normativamente aceites pela sociedade em geral. Tais práticas são ainda mais exacerbadas e reconhecidas como «boas práticas» em períodos de escassez de recursos e de constantes apelos à poupança e ao não-desperdício alimentar.
Quadro 3.5 – Estratégias de adaptação
Tipo de estratégia
de adaptação Indicador
Redução do desperdício alimentar
Começámos a cozinhar e a preparar refeições de uma forma diferente para evitar desperdício
Passámos a organizar melhor os alimentos no frigorífico para evitar que se estraguem
Passámos a transmitir às crianças a importância de não desperdiçar comida
Começámos a utilizar mais o congelador (e. g., aproveitamento de refeições, porções individualizadas para toda a semana) Poupança alimentar
(trocar os alimentos de que se gosta mais por alternativas mais baratas)
Passámos a comprar alimentos em estabelecimentos mais baratos
Trocámos os lanches comprados fora de casa (e. g., pré-confecionados/embalados) por lanches feitos em casa
As crianças deixaram de comer no refeitório da escola e passaram a levar almoço de casa (e. g., merenda, marmita)
Poupança energética
Começámos a cozinhar de forma a não gastar tanta energia (e. g., utilizar menos o forno, desligar o fogão antes de os alimentos estarem completamente cozinhados, optar por refeições frias)
Produção e conservação alimentar
Passámos a cultivar alguns legumes, frutas ou ervas aromáticas
Recuperámos maneiras de conservar e cozinhar alimentos do tempo dos nossos pais ou avós
Fonte: Inquérito à Pobreza e Segurança Alimentar das Famílias Portuguesas com Crianças em
Idade Escolar 2014.
Assim, a minimização do desperdício alimentar, explicada, em parte, pela sua mediatização enquanto boa prática, regista frequên- cias elevadas tanto do ponto de vista da transmissão inter geracional de valores de pais para filhos (86,6 % afirmam «transmitir às crian- ças a importância de não desperdiçar comida») como do ponto de vista das práticas em si: 73 % das famílias dizem ter passado a organizar melhor o frigorífico de modo a evitar que os alimentos se estraguem, e 69,6 % afirmam ter começado a cozinhar de maneira diferente para evitar o desperdício (ver o quadro 3.6). A poupança terá
Quadro 3.6 – Adesão a estratégias de adaptação, por situação de (in)segurança alimentar (% de «sim»)
Segurança alimentar
Insegurança alimentar Ligeira Moderada Grave Subtotal Começámos a cozinhar e a preparar
refeições de uma forma diferente para evitar desperdício
69,6 %
(n = 1233) 90,0 % 95,0 % 95,0 %
92,2 % (n = 214) Passámos a comprar alimentos
em estabelecimentos mais baratos
58,8 %
(n = 1040) 88,7 % 100,0 % 100,0 %
90,9 % (n = 211) Passámos a organizar melhor
os alimentos no frigorífico para evitar que se estraguem
73,0 %
(n = 1293) 93,3 % 100,0 % 100,0 %
93,1 % (n = 216) Passámos a transmitir às crianças
a importância de não desperdiçar comida
86,6 %
(n = 1534) 96,0 % 90,0 % 90,0 %
96,1 % (n = 223) Trocámos os lanches comprados
fora de casa (e. g., pré-confecionados/ embalados) por lanches feitos em casa
65,9 %
(n = 1163) 80,7 % 85,0 % 85,0 %
81,4 % (n = 188) As crianças deixaram de comer
no refeitório da escola e passaram a levar almoço de casa
(e. g., merenda, marmita)
12,0 %
(n = 213) 11,3 % 30,0 % 30,0 %
15,5 % (n = 36) Começámos a utilizar mais
o congelador (e. g., aproveitamento de refeições, porções
individualizadas para toda a semana)
43,2 %
(n = 765) 56,0 % 75,0 % 75,0 %
62,5 % (n = 145) Passámos a cultivar alguns legumes,
frutas ou ervas aromáticas
41,4 %
(n = 733) 48,0 % 60,0 % 60,0 %
50,4 % (n = 117) Recuperámos maneiras de conservar
e cozinhar alimentos do tempo dos nossos pais ou avós
43,4 %
(n = 768) 62,0 % 85,0 % 85,0 %
65,9 % (n = 153) Começámos a cozinhar de forma
a não gastar tanta energia
(e. g., utilizar menos o forno, desligar o fogão antes de os alimentos estarem completamente cozinhados, optar por refeições frias)
63,0 %
(n = 1115) 84,0 % 85,0 % 85,0 %
84,5 % (n = 196)
Fonte: Inquérito à Pobreza e Segurança Alimentar das Famílias Portuguesas com Crianças em
também passado a modelar de modo mais estreito as práticas de uma parte considerável destas famílias, observando-se que 63 % afir- mam ter passado a cozinhar de maneira a não gastar tanta energia; 65,9 % dizem ter substituído os lanches comprados fora de casa por lanches caseiros e 58,8 % terão passado a fazer compras em estabe- lecimentos mais baratos.
No entanto, e é aqui que os dados se tornam mais reveladores, verifica-se que a adesão às práticas associadas à adoção de estratégias de adaptação é muito mais acentuada entre as famílias classificadas como estando em situação de insegurança alimentar do que nas res- tantes, sobretudo nos níveis mais graves de insegurança. As práticas associadas à redução do desperdício e ao melhor aproveitamento dos alimentos são as que registam frequências mais elevadas (acima dos 90 %) entre as famílias em insegurança alimentar.
Em relação às estratégias de adaptação no que concerne a alimen- tação (ver a figura 3.16), considerou-se também um conjunto de práti- cas, incluindo o reaproveitamento de sobras alimentares e a utilização da «marmita» como alternativa para as refeições fora de casa, obser- vando-se igualmente variações na frequência da sua realização no seio das famílias. A maior parte do total das famílias inquiridas reduziram consideravelmente o número de refeições fora de casa (75,6 %), sendo poucos os casos de famílias em situação de insegurança alimentar moderada (94 %) e grave (92,9 %) que não o fizeram – o que poderá explicar-se pelo facto de estas famílias já não terem (ou nunca terem tido) o hábito de fazer refeições fora de casa. Os produtos de marca branca passaram a ser uma opção mais frequente para 63,2 % do total das famílias inquiridas.
Para além disso, 29,8 % das famílias em situação de insegurança alimentar passaram a reaproveitar as sobras das refeições com maior frequência, enquanto 68,7 % o fazem com a mesma regularidade. Nas famílias que registam um nível mais grave de insegurança alimen- tar, o aumento desta prática é mais acentuado (78,9 %). O recurso à «marmita» – ou seja, levar para o trabalho ou para a escola alimen- tos preparados em casa – também terá mantido a mesma frequência para uma parte considerável das famílias em situação de insegurança alimentar (57,5 %), tendo passado a ser mais frequente para 37 % de todos os agregados familiares, independentemente da sua situação de segurança alimentar. Nas famílias em situação de segurança alimentar,
Figura 3.16 – Alterações na frequência de algumas práticas alimentares, por situação de (in)segurança alimentar
Seg. Alimentar IA Ligeira IA Moderada IA Grave
Fonte: Inquérito à Pobreza e Segurança Alimentar das Famílias Portuguesas com Crianças em
Idade Escolar 2014.
as principais alterações registam-se a nível dos hábitos de consumo e rotinas de compra de alimentos, observando-se que uma elevada pro- porção destas famílias reduziu a frequência das refeições fora de casa (73,7 %), e que uma parte significativa passou a comprar produtos alimentares de marca branca com mais frequência (60,7 %). De resto, não se observam grandes alterações nas práticas de reaproveitamento alimentar. Sublinha-se, contudo, que uma fatia considerável das famí- lias passou a introduzir com mais frequência no seu quotidiano o uso da «marmita» (35,3 %).