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Breve história da revista dos negros brasileiros: Raça Brasil

2. O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO

2.3. Breve história da revista dos negros brasileiros: Raça Brasil

Em 1996 é lançado a revista Raça Brasil que se apresentava como “a revista dos negros brasileiros”13, com discurso do orgulho de ser negro e tinha como intuito ser um veículo de comunicação para disseminar a valorização do negro em vários espaços. Diferentemente do que se produzia sobre a população negra na mídia, a RB propunha uma nova perspectiva positiva abordando a partir de elementos comportamentais a consciência da identidade negra em relação à beleza, política , moda, da raça, música, mercado de trabalho e em diversos outros espaços. Tomando de partida esse diferencial em que a revista se propunha no final dos anos 90, nos leva a nossa primeira inquietação: o porquê das pessoas comprarem

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40 RB? Ela era referencial no meio midiático para os negros, já que era intitulada para os mesmos? O depoimento de Edna Matos, nos dar um norte sobre essas questões.

Eu comecei a comprar a Raça no dia que ela foi lançada, lá em Setembro de 1996, se não me engano, pois teria que confirmar a data a primeira edição e do primeiro número. Mass eu não assinava, eu achava que naquela época, no finalzinho da década de 90, em que a gente estava se afirmando e que a luta do movimento negro era tão forte, era muito mais eficaz comprar a revista na banca, do que exatamente fazer uma assinatura e receber em casa anonimamente. Eu tinha muito orgulho em chegar na banca de revista e dizer: ‘olá, me dê uma revista Raça’ ou então o que era mais comum é ‘vocês tem a revista Raça aí?’ Na maioria das bancas não tinha, mas eu fomentava, eu conversava com o dono da banca, normalmente eu procurava bancas de revistas grandes e eu nunca comprava na mesma banca. Era uma questão de militância mesmo, eu saía trocando de banca para comprar revista, procurar os lugares mais impróprios, normalmente em bancas grandes nos bairros mais ricos, mais nobres para que ele soubessem que existia aquela revista e que tinha um público para aquela revista. Então eu, na minha cabeça, fazer isso era fomentar a venda da revista e difundir a revista. Eu vim ser assinante da revista Raça já agora, depois de todas as mudanças que eles fizeram. Foi em 2016 ou 2017, quase ou mais de 20 anos depois que eu fui assinar. Aí sim eu fui assinar por comodismo, era mais fácil receber em casa. Mas antes eu comprava a revista por militância, foi uma revista que foi um marco, ela foi um diferencial no movimento, a gente começou a se ver na banca de revista e só que para isso é necessário que tivesse em público que comprasse a revista para que a banca pudesse colocar a nossa capa, a nossa cara ali estampada junto com todas as outras revistas que existiam na época. (Edna Matos. Entrevista concedida a autora em 15/05/2018.)

Mulher, negra e afirmando que adquirir a revista era questão de militância, Edna fazia questão de comprar a RB diretamente nas bancas para haver demandas e vendas das revistas. O que nos chama a atenção era que Edna se enxergava nas capas. Na maioria dos meios de comunicação os negros eram sempre estereotipados. Com a intenção de se opor a esse cenário, a revista RB ressaltava e valoriza o negro em todas as suas esferas. 20 anos depois, Edna continuou comprando, e assinou para recebê-las em casa. Para entendermos sobre esse diferencial da RB, que em meio de tantas mudanças, continua em circulação, é necessário fazermos uma breve reflexão sobre o seu surgimento na década de 90 e trajetória desde então.

A Revista Raça veio fazer parte da nova impressa negra no Brasil, que segundo Santos (2007) é resultante de uma consciência etnicista surgida nos anos 60, com o movimento Black Soul que retorna na década de 90. Nas palavras de Santos (2007, pp 09)

A revista, na perspectiva comercial que segue, apropria-se de algumas manifestações dos movimentos sociais que têm, entre outras metas, a redefinição da identidade negra, a luta contra o racismo, a construção da auto-estima positiva para a população negra, melhores condições econômicas, acesso ao mercado de trabalho, a consideração da diversidade racial do país e a assunção dos mestiços como negros.

41 Ainda sobre a nova imprensa negra no Brasil, Dias Filho (1999) caracteriza-a de Afromídia por compor revistas periódicas dirigidas ao público afro-brasileiro. Foram várias revistas que foram lançadas a partir de 1990 como o “Agito Brasil” que tinha como principal reportagem principal a cultura do hip hop, a “Black People” que se dedicava com assuntos sobre a educação, esporte e turismo e um pouco de beleza e moda, “Negro Cem por Cento” que abordava funk, moda e pagode, “A Cor do ébano” trazia assuntos sobre história e política, e assuntos também de moda, “Etnic” voltada para a estética corporal e facial e moda, a “Rap” se dedicavam a “cultura de rua” e a “Raça Brasil” que exaltava e ascendia socialmente o negro (DIAS FILHO, 1999, pp. 02). Todas essas revistas foram importantes para a comunicação e visibilidade da população negra brasileira, mas escolhemos a RB por ser a mais reconhecida, com mais de 200 mil exemplares vendidas (índice recorde) em sua primeira tiragem e por percebemos que além dos artigos de ascensão social do negro, se dedica em reportagens na valorização do mesmo grupo, com foco relevantes no cabelo da mulher negra. E também por que a seção Beleza/Moda aparecia em todas as revistas e seu público-alvo, em especial, eram as mulheres.

Exatamente no dia 02 de setembro de 1996, a RB nº 1, ano 1 chegava às bancas de todo o Brasil, pela Editora Símbolo, sob o comando do editor chefe Araldo Macedo propunha que a

[...] revista Raça nasceu para dar a você leitor, o orgulho de ser negro. Todo cidadão precisa dessa dose diária de auto-estima: ver-se bonito, a quatro cores, fazendo sucesso, dançando, cantando, consumindo. Vivendo a vida feliz. Todos os meses, a Revista Raça vai falar de nossos problemas e apresentar soluções. Vai ajuda-lo a se cuidar melhor; a viver com mais alegria e segurança. Vai discutir nossa identidade, resgatar nossa herança cultural e mostrar que a negritude é alegre, rica, linda. Estaremos atentos para negar o preconceito, mas, acima de tudo, queremos afirmar nossas qualidades. Nosso trabalho começou. Quem vai continuá-lo é você. Lendo, discutindo, escrevendo, sugerindo, reivindicando. Queremos o que há de melhor. Ninguém neste país merece mais do que você. Queremos esta revista com a cara da nossa raça: black, colorida, com balanço e ginga bem brasileiros: Isto é Revista Raça. (REVISTA RAÇA BRASIL, ano 1, nº 1)

Assim, a RB se coloca uma importante no meio midiático que fomentou a elevação da auto-estima especificamente dos negros, e de maneira diferenciada, ousada e pretensioso, vem falar dos problemas enfrentados pela população negra, não de maneira estereotipada, mas, sim, trazendo soluções. Perceber-se aqui que a pretensão da RB não é relatar sobre as mazelas que afetam os negros, mas sim, abordar qualidades do negro de uma forma dinâmica, através de um intercâmbio intrínseco com os seus leitores.

42 É relevante ressaltar que em alguns momentos de sua trajetória, a RB passou por algumas crises editoriais em relação ao seu apelo mercadológico. Segundo Dias Filho (1999, p. 02), a linguagem mercadologia ao falar de auto-estima e consciência racial, merecem uma atenção por publicizar de forma tradicional a exploração do negro, reproduzindo velhos estigmas raciais. As questões mercadológicas seriam voltadas apenas para uma parcela da população negra e a outra, uma grande maioria que efetivamente teria um baixo poder aquisitivo, não seria contemplada pelo efeito mercadológico. Sobre essa questão, alguns componentes dos movimentos negros faziam severas críticas por entender um grande aspecto nas questões de consumo, sendo que, para os mesmos, seriam mais urgentes artigos sobre políticas públicas.

Por outro lado, informa Suzana Tavares (2010), é necessário considerar as opiniões dos defensores da RB. O Consumo e a estética seriam ferramentas importantes na sociedade contemporânea contra o racismo, ou seja, uma ação política de estratégia. Esse instrumento seria essencial para produzir transformações no imaginário social do negro e seria um ponto crucial para provocar mudanças na construção de identidades e relações de poder que acontecem na prática. Tavares (2010) complementa que,

Seja qual for a opinião que se tenha a respeito da Raça, entretanto, é inegável que essa revista, apesar das várias crises editoriais e da queda nas vendas que levaram à redução de sua periodicidade, foi um marco na divulgação de uma estética negra positivamente valorizada, e isso não apenas para o seu público alvo. Embora predomine entre a maioria dos profissionais da propaganda uma perspectiva marcadamente utilitarista, que atribui o crescimento do mercado de produtos étnicos e a presença cada vez mais evidente de negros na propaganda, sendo este um ponto de argumento pela revista onde a diretora geral da Raça na época, Liliane Santos, no editorial da Edição 102 - Setembro/2006, que comemora os 10 anos da revista, faz tal afirmação: "Hoje somos maioria e fico feliz em não sermos à única revista com negros e personalidades negras na capa. Raça Brasil foi causa e efeito dessa significativa mudança” (TAVARES, 2010, p. 02).

De fato, os elementos da cultura negra brasileira exibidos na RB foram apropriados pelo campo mercadológico e o que antes era negado ou ridicularizado, com a atuação da Raça, os símbolos da cultura negra brasileira são vendidos com ênfase contínua entre mercado, identidade e cultura. Todavia, Braga (2008) pondera que

Essa comercialização, além de causar uma popularização de bens simbólicos, produz também a socialização de expressões culturais que foram, por muito tempo, marginalizadas. Por isso, apesar das críticas sofridas, das crises editoriais e da queda

43 nas vendas, não se pode negar o papel social empreendido pela Raça Brasil. Assim, se a Raça, por um lado, mercantiliza uma cultura com fins de mercado, esse processo, por outro lado, age como forma de compartilhamento e valorização dessa cultura (BRAGA, 2008, p. 79).

Portanto, analisamos que, para além das críticas do consumismo, a RB pretendia valorizar os negros e estimular sua auto-estima a partir de histórias comuns ou de personalidades que ascenderam socialmente, apresentando soluções a problemas vivenciados pelos indivíduos negros cotidianamente, seja na família, escola, trabalho, na moda, na beleza e comportamento. A revista RB rompe, no meio midiático, com a forma de como os negros eram retratados até então e dá um novo significado à imagem da população afrodescendente na mídia e no imaginário social dos negros brasileiros.

Levando em conta as discursões tecidas nos três tópicos anteriores sobre o cabelo, as influências internacionais e nacionais para uma afirmação positiva sobre o negro e sua estética negra e a intenção da RB para uma valorização negra e sua representação no imaginário dos sujeitos, partiremos para análise do cabelo do negro e de como ele é retratado para o leitor.

De acordo com Santos (2004, pp. 78), as edições da RB possuem duas fases. A primeira corresponde do ano de seu lançamento a 2001 e a outra fase começa em 2002 até os dias atuais. Para que se pudesse analisar as representações sobre o cabelo, decidimos por investigar os quatro primeiros anos da revista. Essa escolha justifica-se por duas questões. A primeira é pela relevância da análise do cabelo logo nas primeiras revistas da RB. Perceber a representação capilar é importante para compreender o grande sucesso que a revista obteve em seu lançamento inicial entre o público-alvo fazendo com que muitas mulheres negras se identificassem com os modelos capilares da revista. E a segunda, porque verificamos que praticamente em todas as revistas desses quatro anos há matérias em suas chamadas sobre o cabelo. Tanto a representação, quanto os artigos sobre o cabelo, serão mostradas nas figuras a partir do próximo tópico. Nesse contexto, Santos (2004) caracteriza que

Beleza e Moda chegava a ocupar, com suas várias matérias, muitas páginas da revista, como, por exemplo, na edição nº 9: são 28 páginas dedicadas à moda e à beleza, em uma revista de 114 páginas, o que corresponde a 24,56% do total da revista. A seção contava com fotos de modelos negras, sendo que havia poucos homens que ilustravam os diversos temas abordados. Muitas vezes, eram apresentadas sugestões de empresas ou profissionais da área de tratamento de beleza, com seus respectivos telefones e endereços. (Santos, 2004, pp. 82)

Portanto, considera-se relevante as discursões sobre a estética e auto-estima do negro trazidas pela RB que colocou em foco o campo da beleza, em especial o cabelo desses

44 sujeitos, pois colocou uma atenção especial na representação do cabelo da população negra, principalmente para as mulheres, mostrando além da beleza, técnicas de cuidados e usos práticos do cabelo no intuito de afirmação identitária. Nesse sentido, no próximo tópico iremos discutir sobre como era retratado o cabelo na RB que fazia a cabeleira de milhares de mulheres pelo Brasil.

2.4 O que fazia a cabeleira das mulheres: o paradigma Pluralidade Capilar por meio da