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Zona de tensão: reflexões sobre a construção e/ou afirmação da identidade negra

4. O CABELO CRESPO É IDENTIDADE, É RESISTÊNCIA

4.1 Zona de tensão: reflexões sobre a construção e/ou afirmação da identidade negra

Até aqui analisamos que o aspecto capilar do corpo feminino negro foi ressignificado na contemporaneidade e como reconfigurou o mundo vivido de mulheres negras, da imposição e aceitação dos paradigmas capilares em torno do cabelo crespo. É esse sentido que, na epígrafe, as palavras da autora descrevem a potencialidade do poder do símbolo capilar e o poder de resistência das populações negras dentro da sociedade. Dessa maneira, para compreender essa reconfiguração, faz-se necessário refletir sobre as zonas de tensão em relação à identidade e as estratégias de resistências em torno do cabelo.

Para isso, refletiremos nesse capítulo sobre o paradigma Transição Capilar, não no sentido de percebemos apenas ela como processo efetivo de ressignifição, mas por está em vigor no cenário capilar das mulheres negra, tornando-se ferramenta de análise emblemática que traz em seu curso posicionamentos atuais de sujeitos sociais que vivenciam tal paradigma.

Dessa maneira, a transição capilar, para além da mudança da textura do cabelo torna- se um processo complexo no qual podemos caracterizar como um período de zonas de tensão. Esses conflitos são gerados por intervenção e modificação do cabelo, quando o indivíduo sai

98 do padrão imposto ideal, e se depara com o padrão real, que deixa de ser apenas questão capilar e revela-se ao afetar a vida do sujeito. Para Gomes “a consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária” (GOMES, 2008, p. 21). É o que nota-se na narrativa de Karoline,

Quando eu decidi fazer a TC, eu me deparei com várias outras mudanças. Por exemplo, me enxergar como negra e enxergar as outras também. Além disso, as outras pessoas me enxergavam como tal. Meus próprios parentes apontavam para me e ao falar do meu cabelo, falavam da minha cor. Por exemplo “você não é negra, porque usar o cabelo assim? Meu cabelo estava para o alto. O que eu fazia? Jogava mais o alto”. (Karoline Silva de Gois, entrevista concedida em 08 de novembro de 2017).

Ao sair do padrão de beleza imposto, o período da TC é capaz de gerar conflitos tanto na esfera pessoal quanto nas relações interpessoais. Para Karoline, os conflitos desencadeados a partir da TC serão ressignificados, transformando-se em auxílios para enfrentar desafios internos, como conhecer a própria identidade; e externas, ao se deparar um o racismo proveniente do cabelo crespo e suas esferas.

Esses conflitos surgem em vários momentos da transição, que para Gomes (2017) são fases de transformação capilar e sobretudo, trânsitos impactam a vida da pessoa. Segundo a autora, a TC é um ritual que é caracterizado por fases que são capazes de marcar uma pessoa ou um coletivo e ao mesmo tempo propicia mudanças. Dessa maneira, a autora caracteriza a transição em três períodos: a) Primeiro Trânsito- Experiências e memórias da infância; b) Segundo Trânsito- Na margem; c) Terceiro Trânsito- o cabelo como Renascimento (GOMES, 2017).

O primeiro ponto, a autora ressalta sobre o constrangimento pessoal de muitas mulheres ao optar por alisar o cabelo. Esse desejo da manipulação era movido pela intenção de esconder ou disfarçar. No segundo trânsito é relacionado ao momento em que mulheres abandonam o alisamento, ou seja, é momento da transição capilar que as pessoas não estão “lisas”, nem “crespas”, que ela nomeia como deslocamento do processo estético. O último trânsito torna-se o momento de relações interpessoais e descobertas como o novo cabelo. Portanto, Gomes (2017) define que TC é dotada de uma capacidade remodeladora e de reinvenção sobre formas de interação e identificação coletiva e individual, bem como torna o cabelo um símbolo capaz de levar a negritude (GOMES, 2017). É por meio dessa negritude que a interlocura pontua a seguir,

99 Figura 30- Identidade e cabelo crespo

FONTE: Facebook/CCSaa

Para a participante do grupo, aceitar a negritude juntamente com o orgulho e valorização faz parte do processo de assunção do cabelo crespo. Dessa forma, é relevante constituir os pontos de vistas sobre o processo identitário para que possamos entender as estratégias individuais e coletivas desenvolvidas pelas mulheres do é se enxergar como mulher negra por intermédio da TC. Nesse sentido Ana Paula relata,

Eu brincava muito com a barbie, e eu me lembro que pegava um lenço e fazia de cabelo. Eu ficava penteando e imaginava que meu cabelo era grande e liso, dessa forma eu queria me associar a barbie. A memória que tenho era que ela loira e lisa e eu queria ser também. Eu não tinha inveja de coleguinhas de escola, mas tinha vontade de ser igual a boneca. Agora, quando eu decidir deixar meu cabelo natural, pelo fato de eu ser adulta, ter conhecimento e serenidade, me ajudou bastante para me reconhecer como negra e não me estranhar tanto. O que antes eu associava cabelo bonito e liso ser o cabelo da boneca branca, hoje eu entendo cabelo crespo como belo e isso faz parte de me entender como mulher negra. Foi uma decisão, pensada e vivida. Eu acho que a decisão de voltar a sua origem, se reencontrar enquanto uma pessoa negra, ela tem que ser amadurecida e compreendida, e voltar a ter o cabelo crespo faz parte desse entendimento. (Ana Paula Couto Alves, entrevista concedida em 07 de março de 2015).

Ana Paula rememora o cabelo na infância. O cabelo que era da mesma é negado para dar lugar ao cabelo liso e com isso lembra que queria ser igual à boneca. O processo de construção da identidade negra para Ana Paula faz a partir do momento em que aceita seus fenótipos do jeito que são. Ou seja, o encontro com a identidade é algo sentido, vivido e pensado para obter a compreensão do que é ser mulher negra.

100 Segundo Munanga (2009, p. 19) “a recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade”. A questão de se enxergar o corpo, sobretudo o cabelo como parte desse corpo, significa resgatar o autoestima, valorizar o corpo negro que há séculos foi inferiorizado e relacionava a cor da pele, bem como o cabelo com aspectos morais dos povos negros, como analisamos na entrevista de Aline,

Me falavam assim: Você é último tom do marrom. Você não é preta. Você é moreninha. Você é escurinha e seu cabelo é ruim. Isso fez com que eu não gostasse de mim, do meu cabelo. E como eu não vivia no ambiente onde se falava sobre isso, minha família não falava sobre ser negro e na minha própria família reproduz discurso racista, então eu não sabia que eu era uma menina negra. Com isso eu alisava meu cabelo e me via como moreninha. Eu lembro que quando eu era criança, chamavam a gente de formiga: eu, minha mãe, meu pai. Diziam que as formigas pareciam com a gente. E hoje, na verdade, quando eu comecei a usar turbante, depois cortei o cabelo, ao me olhar no espelho, foi ai que vi que sou negra. Claro que não foi instantâneo. Mas essa percepção foi minha e também da minha família. O cabelo foi um ponto inicial para me ver como negra. Fui estudar sobre isso. Tomei consciência viu. Me ver como negra foi entender o contexto social que eu vivo entendeu, estudar sobre as nossas histórias, tentar modificar as estruturas racistas e fazer com que as meninas também tenham essa consciência? Fazer um canal no youtube, falar sobre cabelo e a questão de negritude veio disso (Aline Santos da Silva, entrevista concedida em 16 de junho de 2018).

No caso de Aline o processo de negação da pessoa negra ocorreu fora e dentro do ambiente familiar. Ora a família não debatia sobre aspectos raciais com Aline, ora era mencionada por colegas de maneira racista com a cor de sua pele. Contudo, o processo de construção e positivação de uma identidade negra de Aline que ocorreu na fase adulta, veio por meio do conhecimento, como também do olhar de si mesma e do outro. Nesse sentido, além da busca pela identidade negra por meio dos fenótipos, alguns autores associam a construção da identidade por uma relação dinâmica do sujeito e o grupo que compartilham as mesmas percepções, como pondera Leiliane em sua narrativa,

Para mim foi uma libertação. Liberdade de me ver como sou. Antes me sentia como uma escrava. Não me reconhecia como sou hoje. Antes eu era moreninha e usava cabelo alisado. Nossa, quando comecei a transição... comecei porque estava cansada das químicas, mas depois quando cortei o cabelo e me vi no espelho, me vi como mulher negra. Corri nos grupos e fui ler os depoimentos das outras meninas sobre isso. (Leiliane dos Santos, entrevista concedida em 09 de novembro de 2017).

Nesse sentido, Munanga (2009) caracteriza que o processo de construção da identidade nasce por meio de uma consciência das diferenças entre nós e outros. A identidade

101 funcionaria como uma ideologia que permite aos seus membros se definirem em contraposição aos membros de outros grupos, visando uma conservação do grupo como entidade distinta. Para Nilma Lino Gomes (2008), o processo identitário é conflitivo quando colocado nós, eu e o outro, mas necessário, pois o eu se constrói no ponto de vista do outro, ou seja, nem sempre uma imagem social corresponde com a autoimagem e vice-versa. Nas palavras da autora,

[...] a construção da identidade negra como um movimento que não se dá apenas a começar do olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com o olhar do outro, do que está fora. É essa relação tensa, conflituosa e complexa que este trabalho privilegia, vendo-a a partir da mediação realizada pelo corpo e pela expressão da estética negra. Nessa mediação, um ícone identitário se sobressai: o cabelo crespo. O cabelo e o corpo são pensados pela cultura. Por isso não podem ser considerados simplesmente como dados biológicos (GOMES, 2008, p. 27)

A construção da identidade dessa forma é compreendida com olhar para dentro, mas também pelo olho de quem está de forma. Dessa forma seria um processo com relação tensa, conflituosa e complexa que se da pela busca da identidade por meio de uma a inteiração negociada durante toda a vida social do sujeito por meio de um diálogo, entre o eu e o outro (GOMES 2008). Nesse sentido, em relação a identidade com o olhar do sujeito e do mundo, Woodward (2014) pontua que a identidade assume um caráter relacional, ou seja, para que a identidade exista, é preciso entender o que se encontra fora dela, por intermédio também de outras identidades, de algo que ela não é, mas que entretanto, fornece condições para que ela exista. É possível então pensar que esse processo ganha corpo quando refletem sobre a própria identidade negra dentro dessa relação.

Posto isso, Nascimento é incisiva ao afirmar que a identidade é uma encruzilhada existencial entre o sujeito e a sociedade, pois segundo a autora, ambos vão se constituindo mutuamente. Para agir, o sujeito agrega referenciais que possibilitará um relacionamento com o outro, com o mundo e consigo mesmo. De acordo com a autora, esses referenciais serão obtidos pelo sujeito por um processo da própria experiência de vida e das representações em grupo (NASCIMENTO, 2003).

Passar por esse processo é uma reconexão imediata. É o sentimento, é a convicção, é a realidade de ser negra né. Porque até quando eu era mais nova era complicado usar o termo inclusive negra, muito menos preta. No ambiente na qual eu participava tinha um resquício de dúvida de usar o termo “negra”, mesmo eu sendo negra e minha família sendo negra. Então após a transição capilar não tem como você se encarar mais enquanto negra né. Fica lógico que essa é sua cor e que você vai ter que lidar com isso. Comecei a olhar o que as outras meninas estavam passando

102 nesse momento. Minha família mudou também. Minha mãe e meu irmão começaram a passar por esse processo. Me enxergar, enxergar eles e a nós como negros é compreender tudo o que vem junto com isso e que a gente sabe que vem muita coisa acompanhando o fato de sua estética ser negra, principalmente se seu cabelo for natural e você se coloca também como negro. Então eu passei a me enxergar dessa forma com muito mais força e muito mais orgulho. Antes eu não tinha, mas hoje é orgulho, mais respeito, uma força incrível. Olhar meu corpo, minha forma de ser, aceitar meus padrões. O meu cabelo me deu forças para isso. Voltar a ter o cabelo crespo para mim foi sinônimo de reconhecimento do meu eu. Eu olhava para as meninas que passaram por isso e comecei a entender. Via nelas o que queria enxergar em mim. Eu respeitava a minha ancestralidade. E então fui procurar compreender isso, por que se eu sou negra é porque existiram outras pessoas antes de mim, então eu acho que esse processo foi conduzido a partir de uma série de identificações mesmo, respeito e valorização, tudo isso. (Cíntia Castro, entrevista concedida em 03/03/2018)

Cíntia Castro relata que quando pequena não se enxergava como negra no ambiente que em vivia, nem mesmo tratava sobre questões raciais. O processo de construção da identidade após a TC foi conjunto com a família. Aceitar a identidade negra para Cíntia é aceitar o corpo, a estética e principalmente, perceber isso nos outros, que no caso foi à própria família e as mulheres que estava passando pelo mesmo processo. Dessa forma, a construção da identidade entendida nesta pesquisa, por meio da analises dos relatos é percebida como um processo que envolve o plano simbólico por meio da mudança como também na esfera real por intermédio do contato com o outro, da troca, conflito e diálogo.