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E porque sós as mulheres? A questão capilar e o corpo negro feminino vivido

3. SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS

3.3 E porque sós as mulheres? A questão capilar e o corpo negro feminino vivido

O corpo da mulher negra, historicamente vem sendo coisificado e colocado como o diferente, o exótico. Corroborando com essa linha de discursão, Braga (2015) traz o exemplo da Vênus hotentote, conhecida também como Saartjie Baartan, é apresentada como exótica, nem feia, nem bonita. Contudo, o corpo negro da Vênus negra foi constantemente associado como anormal devido às formas físicas desproporcionais, como observamos na figura:

Figura 26 - Vênus hotentote: Saartjie Baartan

Fonte: www.historiablog.org

Baartan tornou-se animalizada em circos e em exposições exóticas em Londres. Segundo a autora, enquanto brancos eram colocados como civilizados, normais, inteligentes e comedidos, a mulher negra e africana, era construída como hipersexualizada cujo apetite sexual e incontrolado era evidenciado no corpo (Braga, 2015). O discurso que legitimava como animalesca as características de Baartan era biológico que imperava na época, perpetuou e corpo da mulher negra, após anos, ainda continua sendo coisificado27, e manteve o traço de selvageria, colocado em detrimento ao corpo branco em relação aos traços de beleza, engenhosidade e progresso. Isso é evidenciado quando Bispo cita Frennete que coloca

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Segundo Damasceno, depois de ser exposição em vida, o corpo de Saartjiet Baartman foi dissecado e sua genitália, seu esqueleto e o molde de seu corpo passaram a ser expostos publicamente no Museu do Homem de Paris até 1985. E quando não serviu mais à ciência, o corpo foi devolvido a sua terra natal. “A noção de utilidade com que normalmente se tratam objetos e não pessoas ou sujeitos são usada aqui com naturalidade, como sintoma da objetificação cristalizada do corpo feminino negro na ciência” (DAMASCENO, 2008, p. 4-5).

86 o corpo negro na perspectiva colonizada no viés do sexismo relacionando-o a diversas fantasias eróticas e sob a lógica da dominação.

Esse primeiro toque vem acompanhado de um gemido ancestral que não tem a ver apenas com o desejo. O gemido que se houve vem mais do inconfessável prazer de constatar que está prestes a provar de um fruto exótico e proibido. É um gemido que o gemedor não imaginava que fosse capaz de dar; e mais de um branco não-racista já se envergonhou desse som gutural e semiprimal, para imediatamente tomar consciência de que não é tão inocente quanto pensava dentro de um processo coletivo de discriminação racial. Mas daí o sexo começa a acontecer e, pela primeira vez, sua excitação tem a ver com raça; (...) sente o cheiro diferente exalado pela pele escura, e, pela primeira vez tenta passear sua mão pelos cabelos da parceira, e sente que há ali um impedimento que exige mãos ágeis e delicadas ao mesmo tempo: é a dureza de um cabelo que não serve para anuncio de xampu, e que exige carinhos especiais. A partir daí não tem mais o gemido inicial. O que fica apenas é a sensação desagradável de não saber lidar com uma selva de cabelos (BISPO apud. FRENETTE, 2000, p. 38).

Frennete trata o corpo da mulher negra meramente como um local de saciar desejos exóticos e “proibido”, e por fim, descreve o cabelo feminino como uma selva, já que não conseguia passar os dedos entre os fios. Retomamos a um ponto principal: o cabelo torna-se transgressão por não seguir ao padrão de beleza e ao consumo, não servindo nem para um anúncio de xampu. Dessa maneira, quando o corpo feminino negro é não é invisibilizado, é reconhecido pelas “diferenças”. Mattos (2007) afirma que devido a essas diferenças, o corpo negro é inferiorizado e recebe estereótipos que exercem o poder de anular, ocultar a sua cultura, por exemplo, na

[...] escolha das rainhas e princesas nas escolas, em épocas de festas juninas. Normalmente, essas escolhas recaem no estereótipo, excluindo as meninas de pele mais escura, cabelos crespos e nariz achatado. Quantas destas meninas já não sonharam em ser as escolhidas e, por outro lado, quanto complexo de inferioridade não foi introjetado a partir da discriminação de um perfil de beleza que não é considerado ideal para rainhas e princesas? (MATTOS, 2007, p. 55).

Para Hall (1997), os estereótipos são os exemplos mais rígidos da sociedade, que tornar-se mecanismos que são capazes de dar limites e excluir o outro, ou seja, para o autor, os estereótipos fazem parte da manutenção da ordem social e simbólica, e estabelece “... uma fronteira simbólica entre o 'normal' e 'desviantes', o 'normal' e 'patológico', o 'aceitável' e 'inaceitável', o que 'pertence' e o que não ou é 'Outro', entre 'insiders' e 'outsiders', nós e eles” (HALL, 1997, p. 258). O corpo da mulher negra é apontado como o diferente e excluído, que causa uma violência simbólica (HALL, 1997, p. 259). Portanto, como aponta Damasceno, estereótipo, bem como o fetichismo marcam o modo como foi racionalizada a existência e o

87 corpo da mulher negra, consequentemente, foi legitimada sua presença nas hierarquias mais baixas de ser humano (DAMASCENO, 2008, p. 4).

No Brasil, no pós-abolição, o corpo feminino negro continua a ser inferiorizado por toda a sociedade. Segundo Silva (2015), o corpo feminino por si só já era atribuído à ideologia machista ao relacionar a mulher à beleza com os trabalhos domésticos. A mulher só seria bela caso cuidasse do marido, da casa e da prole. Já a mulher negra era associada à fealdade tanto pela cor quanto aos aspectos corpóreas. O discurso que vigorava no pós- abolição era o da boa aparência e seria um ponto chave para as brasileiras negras, “o ponto em que essas mulheres precisariam lidar com a interpretação da 'boa aparência' seria aquele para o qual se direcionaria a modificação da sua estética e de sua cultura adequados e ao perfil hegemônico. (SILVA, 2015, p. 109)

Dessa forma, a banalização do corpo da mulher negra, enquanto exótico e do seu cabelo como “feio e ruim”, construída ao longo dos anos faz com que muitas pessoas sintam- se no direito de tocá-los. Sobre o cabelo, há relatos de mulheres que passaram pela transição capilar e assumiram seus cabelos naturais e logo após esse procedimento encontraram pessoas vieram tocar em seus cabelos por achar exóticos e fazem perguntas taxativas como: Ter um cabelo assim não incomoda? É cheiroso? A água penetra seu cabelo? Essas perguntas impregnadas de preconceito e racismo também fazem parte da vida das mulheres que passaram pela transição e as mesmas acompanham as mulheres negras há séculos. Na música Veja os cabelos dela, lançado no ano de 1996, podemos perceber o quanto o cabelo é estigmatizado na letra da música Veja os cabelos de dela, interpretado pelo cantor Tiririca,

Veja os cabelos dela

Veja veja veja veja veja os cabelos dela Parece bom-bril, de ariá panela

Parece bom-bril, de ariá panela Quando ela passa, me chama atenção Mas os seus cabelos, não tem jeito não A sua caatinga quase me desmaiou Olha eu não aguento, é grande o seu fedor Veja veja veja veja veja os cabelos dela Veja veja veja veja veja os cabelos dela Veja veja veja veja veja os cabelos dela Veja veja veja veja veja os cabelos dela Parece bom-bril, de ariá panela

Parece bom-bril, de ariá panela Eu já mandei, ela se lavar

Mas ela teimo, e não quis me escutar Essa nega fede, fede de lascar

88 Tiririca. Gravada em 1996. 03:26 min Na letra, o cabelo crespo é associado à lã de aço utilizado para lavar louças e coisificado em algo que fede. Quando o autor fala “essa nega” percebe-se que se fala de uma mulher negra. A mulher é hipersexulizada, pois chama a atenção por onde passa e relacionada a um animal que exale odor. Contudo, diante desses episódios, o anseio das interlocutoras de construir uma imagem do corpo negro ganham contornos relevantes, por meio de um movimento de aceitação do cabelo e do corpo. Dessa forma, pontuamos a especificidade essencial para entendermos a ruptura em relação ao gênero com o movimento do Black Power. Enquanto este era protagonizado por homens na música, entrevistas, mercado de trabalho como em salões e até mesmo na mídia, o recente movimento foi regido por mulheres negras que colocaram como pauta além da textura capilar, o corpo e identidade negra.

Há de se pontuar a relação do corpo feminino negro com a organização das mulheres negras brasileiras. Segundo Santos (2016), o racismo epistêmico foi o motor que historicamente exterminou material e simbolicamente a trajetória de vida das mulheres negras do Brasil. Tal racismo se manifesta de forma velada que desencadeia propositalmente um “processo de subjugação, silenciamento e extermínio dos saberes e tradições dos não europeus” (Santos, 2016, p. 11). Para a autora, por mais que o racismo tente afastar às mulheres negras dos recursos econômicos e políticos, elas resistem e enfrentam a exploração estrutural da sociedade.

E uma das resistências é por meio do novo olhar do feminismo negro, que de acordo com Carneiro (2003) veio para afirmar uma identidade política em relação ao que é ser negra. Dessa maneira, a pesquisadora ressalta que o movimento político trás variáveis de raça, classe, gênero e interseccionalidade que são conceitos indispensáveis para repensar a luta das mulheres negras no país. Em relação ao conjunto de mulheres negras, ela afirma que,

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras (Grifo meu) (CARNEIRO, 2003, p.4).

89 Diante da historicidade do corpo feminino negro e as resistências por mulheres negras, percebemos a trajetória de se pautar a afirmação positiva do corpo negro, e o cabelo sendo um dos atributos físicos mais relevantes para que possa ser ressignificado que é ampliado para compreender do que é ser mulher negra e percebido, principalmente como libertador, como podemos observar na figura seguinte,

Figura 27 - O corpo da mulher negra livre de padrões

Fonte: Facebook/CCSaa

Nota-se que algumas mulheres que passam pelo processo da TC, dão “adeus” aos padrões impostos, a negação por causa dos estereótipos, seja nas medidas corporais e /ou nos fenotípicos e começam a aceitar o próprio corpo. A entrevistada Sâmara Azevedo revela sobre a aceitação do seu corpo por meio da aceitação do cabelo natural.

Antes de eu ficar grávida eu era magra, mas eu não era magra meu biótipo, eu era magra porque eu me autoflagelava. De todas as maneiras que você puder imaginar de uma pessoa forçar a barra para ser magra, eu fazia. De vômito, de ficar 24 horas por dia bebendo só água, de passar 24 horas por dia dormindo à base de remédio e de comer e botar para fora, o remédio que tivesse para inibir o apetite eu tomava. Tudo o que você puder imaginar eu fiz para me manter magra. Aí eu comecei a fazer balé e não aceitava que eu tivesse sobrepeso e nem um quilo a mais e daí meu

90 distúrbio ficou pior. Dai eu engravidei em 2008 e parei de tomar remédios para emagrecer. Depois que tive meu filho não senti vontade de voltar. Mas fiquei desleixada. Sem vaidade nenhuma. Sendo que esse parar foi tudo em função do meu filho, não na questão de eu me aceitar. Não era porque eu me amava. Eu fiquei em um estado deplorável e quando eu olho, eu digo ‘não é possível que eu tenha chegado a esse ponto’. Não passava batom, não usava argola, nada! Hoje eu tenho orgulho da minha boca, do meu cabelo, da minha bunda, do meu corpo. Eu mulher, tenho orgulho da minha negritude e de todo o meu corpo. Sabe, eu costumo dizer que eu passei por uma transição de alma. O cabelo me tirou de uma redoma. O processo do cabelo em 2014, eu descobri a mim mesma. Eu passei a me gostar, por isso que eu digo que a transição foi na alma. Foi muito automático eu olhar para mim, olhar no espelho e dizer ‘que mulher é essa!’ Teve um momento X, que foi quando eu fui no salão para cuidar do meu cabelo, aproveitei e fiz outros procedimentos estéticos, unha, sobrancelha e nesse dia fui encontrar com meu esposo no shopping. Quando eu cheguei e ele me viu, eu estava de cabelo solto, toda bonita... depois de ter sido aquela mulher largada, eu estava uma outra mulher. Meu marido perguntou a onde eu estava [risos]. Aquela outra mulher foi, agora já sou uma nova. E aí foi amor próprio até o talo. De uma maneira que eu digo a todo mundo ‘eu gosto dessa dobrinha que está aqui, eu amo, eu amo esse peito, essa coxa, eu amo tudo’. Eu posso dizer que o cabelo foi o pontapé inicial para a aceitação de todo o meu corpo” (Sâmara Azevedo, entrevista concedida em 15 de maio de 2018). No primeiro momento o que chama atenção no relato de Samara é a punição física por achar que não se encaixa em um padrão. Segundo Del Priori (2000), com vontade de se parecer com barbies ou modelos, muitas mulheres ficam doentes ao associar a magreza com remédios, cirurgias plásticas e condiciona a identidade corporal feminina com mecanismos de ajustes obrigatórios com beleza-juventude-saúde (DEL PRIORI, 2000). Entretanto, com rumos diferentes destisnados ao corpo em virtude da gravidez, Sâmara ao se deparar com a TC na gestação, caracteriza esse processo como “transição da alma”, pois para além de mudança capilar, produz uma visão de liberdade do próprio corpo. Essa visão de liberdade ao corpo ocorre com outras interlocutoras, como podemos perceber no relato e na imagem a seguir.

O cabelo hoje representa liberdade e que me sinto livre tanto quanto pessoa, livre em termos de padrões estéticos. Eu sou o que sou e ponto, sabe. Não preciso seguir nenhuma regra e nenhuma forma para eu me encaixar em algum lugar. Eu me sinto completamente tranquila. Livre para cuidar dele do jeito que ele é, livre para fazer com ele o que eu bem entender. O meu cabelo é lindo do jeito que é. Por isso esse processo e meu cabelo significam liberdade (Dandara Matos, entrevista concedida em 9 de março de 2018).

Dandara percebeu que poderia ser livre ao deixar de seguir o padrão estético. Nota-se que repetidamente as entrevistadas associam o cabelo natural à liberdade. Livre para assumir o aspecto capilar e vai além, associam a liberdade capilar para além dos fios. É o que novamente presenciamos na Figura 28. Ao assumir o uso do cabelo crespo, a interlocutora traz também a reflexão sobre a autonomia do corpo como livre de padrões.

91 Figura 28 - Autonomia do corpo feminino negro

Fonte: Facebook/CCSaa

O que ao longo dos anos para a mulher negra foi obrigação esconder ou camuflar características do próprio corpo que foi recorrente estereotipado, atualmente, para as mulheres que resolveram optar pela TC, o retorno ao cabelo natural tornou-se mais uma ferramenta para mulheres negras aceitarem e respeitar o corpo. O corpo deixa de ser “feio”, para ser livre. No caso de Juliana, a TC foi um caminho para enxerga-se como negra.

Até 2014 eu usava mega hair. Sendo que eu nesse período estava sentindo necessidade de mudança. Eu comecei a participar de alguns grupos e neles eu li sobre mulheres negras e suas lutas cotidianas. Um depoimento que me chamou atenção foi da aceitação dela com o cabelo e também com o corpo. Fui pesquisar mais sobre essas mulheres negras e aos poucos decidi também mudar. Assim como elas, comecei pelo cabelo e fui mudando a forma de me enxergar. Hoje, tenho esse cabelo lindo e me amo mais. É só olhar minha rede social, mudança até nas fotos [RISOS]. Antes eu não me aceitava, achava feio meu corpo, hoje eu aceito todo o meu corpo, minha negritude e meu cabelo. (Juliana Lobo, entrevista concedida em 11 de dezembro de 2017)

Alguns relatos, como o de Juliana, nos leva a perceber que cabelo e corpo são colocados por vezes como partes distintas, mas que ao mesmo tempo se complementam. Ao passo que Juliana desvendou a beleza do cabelo e que provavelmente, elevou a sua autoestima

92 e redescobriu o amor e respeito ao próprio corpo. Corpo esse que foi negado por ela e pela sociedade.

A investigação da TC e a relação com mulheres negras, nos leva a questionar: qual a conjuntura se encontrava o Brasil quando chegou a TC? O contexto influenciou ou favoreceu a disseminação das informações sobre a TC? A seguir, algumas reflexões sobre essa indagação.