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4. O CABELO CRESPO É IDENTIDADE, É RESISTÊNCIA

4.2 Como resistir? O simbolismo do cabelo crespo

A relação das mulheres negras com o cabelo é constituída por um universo de ressignificações marcado por múltiplos significados nos quais elas se apropriam de suas experiências atribuindo sentidos aos usos e negações dos aspectos capilares crespos. Experiências essas que são marcadas pela memória, sensibilidade e o sensorial que ao dialogarem entre si, abrem possibilidades que afetam e vivenciam contextos tanto nos âmbitos individuais como nos contextos coletivos. Ao utilizar o corpo negro, sobretudo o cabelo como expressão estética, cultural e política, as mulheres negras reivindicam transformações, proporcionando, dessa forma, novos modos de subjetivação. Hilmara Bitencourt ressalta sobre esse posicionamento,

A luta coletiva em prol do cabelo crespo é para assegurar para que as mulheres possam ser quem elas são. Nós lutamos pelo direito de ser quem nós somos. Sim, temos o direito de alisar o cabelo, de fazer o que quiser, mas sem imposição. Da mesma forma que podermos ser o que quiser, de aceitar ser negra, da boca grande, do cabelo crespo e para cima. As crianças precisam crescer se aceitam do jeito que elas são e se futuramente, elas crescerem e resolverem mudar, não serão

103 por imposição política, vai ser porque elas querem e por ser um desejo pessoal delas. E é bom frisar que falar da estética negra, do movimento de mulheres em torno do cabelo... por que é muito atacado como se fosse o grupo de mulheres que falam só sobre cabelo, como se cabelo não fosse nada. Para a gente, isso foi negado a vida toda. Não é artificial. E não é mesmo. Todos esses aspectos que falei, faz parte da nossa subjetividade e isso é importante porque constrói quem nós somos, né (Hilmara Bitencourt, entrevista concedida em 13/09/2017)

O símbolo em torno do cabelo crespo tem se configurado por profundas transformações pelas mulheres negras, principalmente em virtude aos contextos econômicos, culturais, políticos e afirmações contra hegemônicos estéticos. Dessa forma, as mulheres negras buscam, por meio das estratégias, não somente resistir à imposição hegemônica, mas direito de utilizar a estética da forma que quiserem, a afirmação do corpo como elemento essencial dos posicionamentos do movimento de mulheres negras e igualdade em relação ao mercado de cosmético, por exemplo. Essas resistências então são atreladas à subjetividade, às criatividades, às experiências singulares, as relações de poder e à experimentação. Assim, ao resistirem, tornam-se autoras e protagonistas de suas próprias histórias.

Contudo, é preciso compreender sobre como se procedeu as estratégias de resistências das mulheres negras em torno da experiência vivida com o retorno do cabelo crespo. Destarte, acerca das formas de resistir ao longo da história, buscou-se suporte nos estudos Thompson (1998), Scott (2013) e Gomes (2008) que subsidiaram discussões teóricas acerca dos movimentos dinâmicos das estratégias de resistências seja elas coletivas ou individuais, públicas ou até mesmo ocultas.

Thompson (1998) ao discutir sobre os costumes da população inglesa do século XVIII considera a cultura como um elemento central que se manifesta no cotidiano da classe trabalhadora. Os estudos de Thompson (1998) afirmam que as relações do povo inglês eram conflitantes e tinham como peculiaridades as formas negociar, agir e fazer escolhas autônomas. Essas características só foram possíveis, segundo o autor, por causa de resistências e acomodações das tradições, como também mudanças de comportamentos que ganharam consolidação por causa da emergência do capitalismo industrial na Inglaterra.

Essas resistências são compreendidas por Thompson (1998), como práticas e são reformuladas por meio da experiência. Através dessas ações, as camadas populares constantemente entraram em confronto com as classes dominantes, colocando em evidência a hegemonia de poder. Vale salientar que o autor compreende os povos trabalhadores como sujeitos históricos com motivações racionais, autônomas e coerentes.

104 Nessa perspectiva, Thompson (1998), mostra três características da ação popular. A priemira é a tradição anônima ou terrorismo individual numa sociedade que se encontra em total dependência ou clientelismo e que toda resistência aberta pode resultar em retaliação. Algumas dessas resistências são incêndio criminoso, o gado jarretado, tiro na janeira, árvores derrubadas, roubos de cães, cartas anônimas, entre outros. Para Thompson (1998), essas resistências “eram capazes de acabar com qualquer ilusão de deferência e de considerar seus governadores de um modo bem pouco sentimental ou filial” (THOMPSON, 1998, p. 64). A segunda ação prática é caracterizada como um contrateatro, ou seja, da mesma forma que os governantes afirmavam a sua presença por um teatro, os plebeus empregavam sua presença em um teatro de ameaça e sublevação. Com atitudes cheias de significados, quase como um ritual, colocava, por exemplo, uma bota num patíbulo, a iluminação das janelas, o destelhamento de uma casa para contestar contra o poder. Por meio dessas linguagens, os governantes já imaginavam se tinha ou não popularidade nas regiões.

E por fim, o terceiro motim popular era em relação à capacidade de ação direta rápida e fugaz, como ação da multidão. Juntar-se a grande público, pontua Thompson (1998), era outra maneira de se tornar anônimo. A grande multidão encobria os anonimatos, a sua capacidade de ação e seus feitos teriam que ser imediatos ou se não, poderiam sair fracassados. O escritor afirma que a multidão era em geral disciplinada, tinha objetivos claros e sabia negociar com as autoridades e acima de tudo, empregava sua força com rapidez, ou seja, sabiam o que estavam fazendo e eram coerentes.

Já Scott (2004) analisa a dominação, resistência e as formas de subordinações sociais sistemáticas e complexas nas quais os sujeitos ao longo da história estiveram impostos. A teoria central observa que a possível aceitação das dominação por meio da subordinação já seria estratégia de resistência, sobretudo, de sobrevivência e de simulação. Esses simulacros ocultam revoltas que constantemente são colocadas em avaliação e criticadas em espaços públicos vigiados pelos dominadores.

Comungando da mesma posição que Thompson (1998), Scott sugere que a simulação da ordem dominante e da deferência pelas normas devem ser vistas como um teatro em que se encena a submissão às regras das elites, não somente para proteção dos dominados, mas também como formas de retórica para obter vantagens em virtude das normas que permeiam o discurso oficial. A contestação à dominação, segundo Scott (2004) vai do murmúrio à ameaça anônima, da ação também anônima como sabotagem, caças e incêndios como a inversão de valores de inversão de rituais como o carnaval, entre outros.

105 Para analisarmos os enlaces das resistências contra o poder, Scott (2004) considera relevante compreender o discurso público e oculto tanto dos dominadores quanto dos dominados e tais discursos vivem em fronteiras constantes de lutas e conflitos ordinários no dia-a-dia no âmbito das relações de poder.

Em relação aos dominados, os discursos fazem parte das estratégias de resistência. O discurso público, segundo o autor, seria um modelo de conduta que sobrepõe qualquer opinião individual ou coletiva dos subordinados e apresenta como característica principal um tom conciliador para produzir justificativas convincentes para a hegemonia. Pode ser visto como um “autorretrato das elites dominantes tal como elas gostariam de serem vistas” (SCOTT, 2004, p. 48). Então resistir se caracterizaria como uma forma acentuada e simulada na aceitação e subordinação dos dominados em relação à imposição às normas.

O discurso oculto, por sua vez, consiste em enunciados, gestos e práticas e tem lugar nos bastidores. Dessa maneira, para perceber sobre os por menores desse discurso, o autor elenca três características do discurso oculto: a primeira é que o discurso sempre é destinado a um determinado espaço social e pessoas; o segundo comporta um conjunto de práticas diversas e o terceiro é que o discurso oculto vive fronteira com as formas disfarçadas de dissidência pública do discurso público. Segundo Scott (2004) é nesse universo que perpassa o infrapolítica das camadas populares. Para o autor, o termo infrapolítica designa infraestruturas que contém alicerces culturais e estruturais da ação e visa objetivos estratégicos que permitem a população resistir a um adversário que possivelmente triunfaria em um confronto aberto.

Para compreender a infrapolítica nesse contexto, o autor exemplifica que esse termo é utilizado para depreender sobre a ruptura declarada do movimento black power nos anos 60. O contexto de exaltação da cultura e política negra nesse contexto obteve sucesso não somente pela movimentos dos adeptos do movimento, mas também por causa dos discursos dos estudantes, clérigos e párocos que se desenvolveram fora de cena. Para tal, as resistências que ocorreram nessa conjuntura se deram tanto de maneira declarada como disfarçada, como podemos analisar os aspectos de resistência e dominação no quadro a seguir.

106 Quadro 2: Dominação e resistência

DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA DOMINAÇÃO MATERIAL DOMINAÇÃO DE ESTATUTO DOMINAÇÃO IDEOLÓGICA PRÁTICAS DE DOMINAÇÃO Apropriação de cereais, impostos, trabalhos, etc Humilhação, desfavorecimento, insultos, ataques à dignidade Justificação da escravatura, da servidão, do sistema de castas, de privilégios, etc. por parte dos grupos dominantes FORMAS DE RESISTÊNCIAS PÚBLICA DECLARADA Petições, manifestações, boicotes, greves, ocupações de terras e rebeldias declaradas Afirmação pública de dignidade através de gestos, indumentária, discurso, e/ou atentado explícito aos símbolos do estatuto dos dominantes Contra ideologias públicas de propagação de valores igualitários, revolucionários ou de negação da ideologia dominante FORMAS DE RESISTÊNCIA DISFARÇADA, DISCRETA, OCULTA, INFRAPOLÍTICA Formas quotidianas de resistências, por exemplo, caça furtiva, ocupações, deserção, evasão, lentidão no trabalho. Resistência directa por rebeldes Discurso oculto de raiva, agressão, e discursos de dignidade disfarçados, por exemplo, rituais de agressão, histórias de vingança, uso do Desenvolvimento de subculturas dissidentes, por exemplo, religiões milenaristas <hush arbors> dos escravos, religiões populares, mitos de

107 disfarçados, por exemplo, apropriações sob disfarce, ameaças dissimuladas ou anónimas simbolismo carnavalesco, boatos, rumores, criação de um espaço social autônomo para a afirmação da dignidade bandoleirismo social e de heróis populares, imagística do mundo às avessas, mitos do <bom> rei ou do tempo anterior ao <jugo normando> Fonte: (SCOTT, 2004, p. 272)

Por meio das análises sobre resistências desencadeadas por Scott (2004) percebemos que as resistências tantos as abertas quanto às disfarçadas são constatadas pela subjetividade e experiências vividas pelas camadas populares e que a todo tempo revela-se dinâmica, o que torna sua interpretação mais complexa. Trata-se de verdadeiras proezas realizadas em um universo onde a subordinação sistemática provoca uma reação ao ato dominante por meio da resistência. Importante ressaltar, de acordo com o autor, que as normas foram ditas a partir de cima e as resistências têm o intuito tanto de simular com as concordâncias dos dominadores quanto de forma aberta. Estes, quando rompem a fronteira com a elite, recuperam a voz e dignidade, bem como conseguem mobilizar novos tipos de instrumentos para desafiar e alterar as relações de poder e seu discurso hegemônico.

As ponderações de Thompson (1998) e Scott (2004) nos fazem questionar em relação como então seria a resistência em relação ao cabelo das mulheres negras? Sobretudo porque ao manipula-lo, tornou-se zona de tensão entre a autoimagem e a imagem por meio do olhar do outro. É imprescindível tal análise para o viés das questões raciais.

Segundo Silva (2015, p. 32) “... os corpos negros, num espaço de significação onde memórias, tradições, valores, posição e situação social são evidenciados e interpretados a partir de seus gestos, atitudes corporais e características físicas”. Como então essas atitudes são externalizadas por meio de resistências de mulheres negras em um viés de liberdade do corpo, denúncia ao racismo estético, exclusão social e dignidade humana no tempo presente? Segundo Hall (2003), resistir de certa forma representa ameaça e negociação com a ordem dominante, mas não no sentido de conflitos de classes, mas sim, equilibrar as relações de poder. De acordo com Gramsci, conforme citado por Hall (2003),

Negociação, resistência, luta: as relações entre uma formação cultural subordinada e uma dominante, onde quer que se localizem nesse espectro, são sempre intensamente ativas, sempre opostas num sentido estrutural (mesmo quando essa

108 "oposição" for latente, ou experimentada simplesmente como o estado normal das coisas ...). Seu resultado não e dado, mas construído. A classe subordinada traz para esse "teatro de luta" um repertorio de estratégias e respostas — formas de lidar com situações e resisti-las. Cada "estratégia" no repertorio mobiliza certos elementos materiais, sociais [e simbólicos]: os constrói como suportes para as diversas formas de vida das classes, [negocia] e resiste a continua subordinação das mesmas. Nem todas as estratégias tem o mesmo peso; nem todas são potencialmente contra hegemônicas (HALL, 2003, p. 229).

Compreendemos, portanto que as resistências são estratégias desencadeadas por uma reação das populações que historicamente vem sendo imposta a uma ideologia que faz negar para aceitação determinada cultura. Dessa forma, as relações que se firmaram entre o corpo da mulher negra e o cabelo como elemento corporal de diferença, instituíram como referência de normalidade. Contudo, mesmo com apropriação das normas hegemônica da estética branca pelas mulheres negras brasileiras, ocorreu no pós-abolição uma reação estruturada por meio de espaços de resistências. Espaços esses que foram fomentados, por exemplo, por meio da disseminação dos paradigmas capilares, bem como o uso do cabelo natural, como veremos no tópico a seguir.

Anteposto, ressaltamos que as populações negras desenvolvem, historicamente, estratégias de resistência, combate ao racismo e à discriminação racial. Infelizmente temos que admitir que o processo de rejeição e/ou aceitação é continua e implica numa negação/afirmação por vezes parcial por causa da imposição é da proposição racista e a rejeição à história inscrita no seu corpo. Então, resistência no âmbito estético para as mulheres negras é mais complexo, principalmente na sua subjetividade e a identidade.

Nesse caminho, é relevante trazer a luz o estudo de Gomes (2008) sobre os espaços de salões étnicos como locais que não expressam somente estilos de penteados, beleza ou modernidade, como reprodução do pensamento de branqueamento, mas um espaço de resistências de mulheres e homens negros. Resistência no fato de se tornar uma ferramenta para expressar a corporeidade e recriar a cultura ancestral africana. Dessa forma, a pesquisa da autora não revela a ida desses sujeitos em busca da vaidade ou aparência, mas um campo que apresenta um corpo negro por meio da linguagem e do social que expressa símbolo indentitário e resistência cultural. Para Gomes (2008),

Essas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente, desde o processo da escravidão até às formas sutis e explícitas de racismo, à construção da miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência negra num processo não menos tenso – de continuidade e recriação de referências identitárias africanas. É nesse processo que o corpo se destaca como veículo de expressão e de resistência sociocultural, mas também de opressão e negação. (GOMES, 2008, p.21)

109 É nessa dinâmica aceitação e negação que, como já pontuamos no tópico anterior, a trajetória dada ao cabelo crespo pelas mulheres negras apresenta contradições e tensões próprias do processo identitário. Contudo, por meio de estratégias de resistência, as mulheres desenvolve um sentimento de identificação, pertença e autonomia. Nesse sentido a seguir iremos discutir sobre os espaços de resistências que circulam diálogos e caminhos para o posicionamento do uso do cabelo crespo como símbolo que representa mais do que parte corpórea.