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Os protagonistas da pesquisa: as mulheres entrevistadas e os grupos virtuais

3. SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS

3.2 Permanências e mudanças: afinal, qual a inovação da Transição

3.2.1 Os protagonistas da pesquisa: as mulheres entrevistadas e os grupos virtuais

Inicialmente, a proposta da pesquisa era dialogar com mulheres que residiam na cidade de Salvador e/ou região metropolitana, em função da mobilidade em realização das entrevistas. Todavia, com a aproximação com mulheres de Aracaju/SE e São Cristóvão/SE (grande Aracaju) devido ao desenvolvimento do mestrado presencial na Universidade Federal de Sergipe, localizada na cidade de São Cristóvão, e principalmente, por perceber um contingente de mulheres transicionadas e em transição em espaços físicos e virtuais, percebemos então a relevância de ampliar a análise do estudo com mulheres em solos sergipanos.

Desta forma, foram realizadas 14 entrevistas por meio de um questionário semiestruturado e centrado no problema para que pudesse obter relatos que evidenciavam a relação das interlocutoras com a Transição Capilar. Segundo Arnoldi e Rosa (2008), a

77 entrevista é uma das técnicas que é considerada uma forma racional de conduta do pesquisar, que por meio do questionário, previamente estabelecido, dirige com eficácia um conteúdo sistemático de conhecimentos, resultando não apenas em dados, mas em uma gama de resultados que darão suporte a análises epistemológicas na pesquisa (ARNOLDI; ROSA, 2008).

O procedimento metodológico que utilizei para análises das entrevistas sobre a TC foi a Fenomenologia que possibilitou uma investigação intrínseca dos fenômenos sociais. De acordo com Bicudo, utiliza-se a fenomenologia para pensar a realidade de um modo rigoroso que interroga relações sociais para além da aparência e investiga algo que seja característico, básico e essencial (BICUDO, 1994). Dessa maneira, o aporte da Fenomenologia irá permitir obter resultados significantes das experiências das mulheres entrevistadas sobre como experienciam o retorno capilar crespo por meio da TC.

Ao considerar com ponto de partida que a mulher tem uma relação subjetiva com o cabelo que poder levar a diversas possibilidades de análises, é necessário então situar o fenômeno para não deixa-lo solto, ou seja, investigar direcionado sobre o que levou as mulheres a optar pela TC e experiência das mesmas a partir dessa opção. Com o fenômeno situado, é necessário interrogar e isso é possível, de acordo com Martins et al. (1990), uma descrição da experiência dos sujeitos da pesquisa, como a descrição de um relato de alguém que vivencia para o outro que não participa. Nas palavras dos autores,

Porque o pesquisador não sabe o que se passa com o sujeito é preciso que este sujeito descreva o que se passa com ele. A descrição se dá, então, na experiência do sujeito que está experenciando aquela situação. É desta maneira que o fenômeno situado se ilumina e se desvela para o pesquisador. Nem sempre, porém, é possível obter descrições feitas pelo sujeito a respeito do fenômeno que o pesquisador deseja estudar; recorre então ele à entrevista, com muito cuidado, para não induzir respostas (MARTINS et al.; 1990, p. 145)

Dessa maneira a escolha das entrevistadas não se deu de forma aleatória. São mulheres que fizeram a TC e buscaram a afirmação de uma identidade negra e a partir desse retorno ao cabelo natural, ressignificaram vários aspectos da sua vida. Das 14 mulheres entrevistadas26, 7 foram residentes em Salvador/Ba e 7 residentes em Aracaju/Se e em São Cristóvão/Se. Corroborando com a ideia de Lélia Gonzalez, de que é necessário identificar o negro com

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A identificação das participantes deu-se pelo consentimento prévio por partes das mesmas e também pela da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (ARNOLDI; ROSA, 2008).

78 nome e sobrenome, é relevante apresentar as protagonistas do estudo, pois os depoimentos que utilizamos para a pesquisa são fundamentais para visibilizar histórias e experiências das mesmas (BAIRROS, 2017, p. 3). Posto isso, as da Bahia são:

Ana Paula Couto, 36 anos, Administradora, pós-graduação em andamento.

“No início eu me lembro que senti medo, medo de cortar o cabelo. Por que cortar o cabelo me lembrava da infância de quando minha madrinha me levou para cortar o cabelo. Passar pela transição, eu sabia que um dos processos seria o corte para agilizar a mudança. Hoje percebo o quanto é libertador todo esse processo”.

Aline Santos da Silva, 28 anos, Superior em curso, maquiadora. “Quando fiz a transição e comecei a colocar o cabelo para o auto, percebi que as pessoas me olhavam como se tivessem agredidas. O processo é complexo, mas não impossível e no final nos aceitamos. O que eu não entendo é a não aceitação da sociedade. É necessário enfrentamento, e é isso que faço, converso com as meninas para enfrentar o amanhã”.

Cíntia Castro, 28 anos, Superior completo, Professora.

“O que me levou a fazer a Transição capilar foi a falta de identificação com o cabelo alisado, ele estava sem forma e não era prático para cuidar pois demandava de tratamentos químicos e custo financeiro, mensalmente ou quando a raiz do cabelo crespo apontava. O pior é que eu não lembrava mais do cabelo. Alinhei então meu pouco tempo e dinheiro, pois estava no final também da minha graduação e me demandava tempo, com a angustia para conhecer esse ‘novo’ cabelo” e decidi fazer a Transição capilar”.

79 Dandara Matos , 28 anos, mestra, professora de História.

“A relação com meu cabelo era de guerra. Ao mesmo tempo em que eu me sentia livre para fazer o que eu quiser com meu cabelo, que era um direito meu, assim eu acreditava né, de alisa-lo, ao mesmo tempo eu ficava triste porque meu cabelo era sempre quebradiço, não ficava bonito, a gente precisava gastar muito para poder manter ele em um determinado padrão, e isso não me dava felicidade. Eu queria ter um cabelo muito grande, e certo dia quando eu consegui mantê-lo abaixo do ombro, a química destruiu em 3 meses e me deixou muito frustrada. Hoje digo para você que meu cabelo além de me dar alegria, me dar liberdade”.

Juliana Lobo, 24 anos, superior em curso, recepcionista. “Eu comecei aos poucos. Fui dando permanentes e usei bastantes apliques e tranças. Depois decidi de vez passar pela Transição. Cortei e não me identifiquei no início. Minha aceitação foi gradual. Incentivei várias amigas e isso para mim é especial. Poder falar sobre esse processo e incentivar outras meninas é dizer: você consegue!” Antes eu era bonita, mas hoje sou rainha”.

Hilmara Bittencourt da Silva Borges, 25 anos, graduanda em

Letras, estudante/educadora.

“Minha Transição capilar começou devido a um ponto crucial. Há uns três anos eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular. Tinha mais de 300 pessoas e muitas delas queriam fazer medicina e teve um menino, negro e que usava dreds disse também que queria cursar. A postura dele e a presença dele me inquietou para que eu me percebesse enquanto negra. Nesse processo, a estética foi a primeira coisa que gritou. O cabelo devido a negação desde criança, foi a primeira coisa que me inquietou. Comecei a fazer coquinhos no cabelo, usar trançar e megahair. A partir desse momento que eu entendo que começou a minha transição, de cabelo e sobretudo, de me enxergar como negra. Foi uma transição interna, primeiramente de busca, conhecimento e depois a transição capilar de fato”.

80 Samara Azevedo, 37 anos, pós-graduada, professora.

“Desde criança minha mãe alisava meu cabelo e tinha aquela coisa que meu cabelo não era bom, rebelde e terrível. Quando me entendi por gente, eu fiquei anos da minha vida dando Guanidina, imagina você... anos. Eu queria ter os cachos da atriz Ana Paula Arósio. E aí eu fiquei grávida e não pude mais colocar química. Então comecei a passar pela Transição. Detalhe, eu fiz a Transição sem saber desse movimento todo. O que acontece é que fiz um Transição de alma. Minha vida mudou, minha auto-estima apareceu, meu amor próprio colou em mim. Esse é o nome certo: Transição de alma”.

As de Sergipe são:

Angélica Oliveira Nascimento, 31 anos, superior completo, psicóloga.

“O que me levou a fazer a Transição Capilar foi justamente o desejo de me assumir. De assumir meu cabelo como parte de mim né, de minha raça das minhas origens. Foram 13 anos alisando e quando decidi as primeiras que falaram que meu cabelo jamais voltaria a ser natural foram as cabeleireiras. Isso me deixou insegura. Mas continuei. Quando vim estudar na Universidade, me deparei com outras meninas e comigo mesma enquanto negra. Decide depois de uma tentativa frustrada, novamente passar pela Transição. E foi a melhor coisa que decidi”.

Debora Leite, 30 anos, superior incompleto, estudante.

“Bem... a maioria da minha família tem cabelo liso e desde pequena tentei me adequar àquilo que minha família era. Me sentia um peixe fora d’água. E quando decidi, tentei lembrar de como era meu cabelo e não conseguia. Foi bem difícil a Transição , porque eu achava meu cabelo feio e não iria me adaptar, mas fui resiliente e consegui. Conheci algumas meninas aqui em Sergipe e foi importante todo o contato com as meninas desse movimento”

81 Karoline Silva Gois, 21 anos, ensino médio, auxiliar administrativo.

“Iniciei porque fiquei inspirada no cabelo de uma amiga. Além disso, já estava cansada de dar químicas em meu cabelo. Depois fui também inspiração, pois inspirei minha irmã. Ajudei ela na Transição e estamos juntas amando e aprendendo sobre o nosso cabelo”.

Leiliane dos Santos, 28 anos, superior em curso, desempregada. “Quando eu era pequena eu tinha vergonha do meu cabelo. Eu falava para minha mãe que era uma mata. Comecei a dar química, e quebrou todo. Quando vi estava quase careca. Mesmo assim continuei. Anos depois, cansei de dar química, não aguentava mais aquilo. Me deparei com um grupo de meninas no WhattsApp e elas falavam do desejo de retornar ao cabelo cacheado e com elas, me joguei. Hoje assumo meu cabelo crespo. É lindo né? ”.

Michele Santos Souza, 34 anos, pós-graduada, psicólogo e consultora ambiental.

“No começo dos anos 2000, eu comecei a deixar de usar alisamento, e passei a usar relaxamento no cabelo, depois para a Guanidina, depois para o permanente afro e depois para o cabelo natural. Foi um processo fluido e não sei bem quando comecei ou se isso já era uma Transição. Mas teve um momento que decidi não dar mais permanente e fiquei natural durante muito tempo. Só que aí, dei mais uma vez permanente, foi horrível e nunca mais. Essa construção do meu cabelo natural foi interna e externa. Entre idas e vindas. Hoje, participo e promovo várias discussões, encontros virtuais e presenciais sobre cabelo crespo e cacheado”.

82 Miriam Félix, 33 anos, Ensino Médio, Auxiliar Administrativa.

“Eu vi muitas meninas com o cabelo cacheado e isso me encorajou. Cortei e fui ao Beleza Natural em Salvador. Esse início foi importante, mesmo sabendo que teria química para enrolar, pois para mim não tem problema. O que foi importante foi me libertar do alisamento, de me sentir feia, de me sentir submissa ao padrão do cabelo liso. Estou bem comigo mesma. Ao contrário de mim, minha filha nem cogita usar ou ficar com vergonha do cabelo natural dela”.

Thatiana Santos Menezes, 38 anos, pós-graduada, Educadora Social.

“Quando eu comecei a fazer Transição eu não tinha a mínima ideia do que iria mudar de dentro para fora. Do que eu iria passar, dos meus pensamentos. Foi o momento que meu cabelo pedia para que eu parasse de colocar droga nele para ele respirar. Só que eu no primeiro momento não consegui porque meus impulsos foram de fora para dentro, queria ver ele de uma forma e não conseguia ver a raiz inchada. Aí depois, tive um encontro com o movimento negro e vi uma fala de uma mulher e ela tocou sobre o cabelo. A fala dela me inquietou e plantou a semente em meu coração e a partir daquele momento comecei minha trajetória de voltar ao cabelo natural que eu nem lembrava de como era. Resgatei a afetividade negada com o meu cabelo”.

A escolha por mulheres negras para a pesquisa nessas regiões se deu por possuírem grande contingente de mulheres negras autodeclaradas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano de 210, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, como podemos ver a seguir.

83 Tabela: Mulheres negras nas cidades de Salvador e Aracaju

FONTE: IBGE- Censo Demográfico 2010

Em Sergipe e Bahia a quantidade de mulheres negras é quase a metade em relação ao total de pessoas autodeclaradas nesses Estados. Em relação às respectivas capitais, Aracaju segue na mesma proporção das capitais, e Salvador ultrapassa a metade de mulheres negras em relação aos homens. Esse dados só vem a ratificar outro dado em relação a mulheres e o contato com a TC nessas duas regiões, a grande quantidade de mulheres que buscaram referências sobre o processo de transição pela internet.

As entrevistadas, por exemplo, começaram a passar pelo processo a partir do ano de 2009. Algumas mulheres iniciaram a transição sem mesmo conhecer o termo TC, mas por causa das redes sociais, com trocas de informações capilares, depararam-se com processo da TC na qual estavam inseridas compartilhando particularidades sobre a TC e as relações com os cabelos. Na Figura 25, destaca-se a pesquisa obtida pelo Google Trends, que é uma ferramenta do Google que informa os termos mais buscados no site em um determinado período de tempo e só ratifica a relevância de trocas de informações na internet entre as mulheres entrevistadas.

84 Figura 25- Busca pelo termo Transição Capilar

Fonte: Google Trends

Na imagem podemos observar três pontos: o 1) em todas as regiões do Brasil houve uma busca na internet pelo terno TC; 2) Na Bahia, há 100% de busca em relação aos outros estados do Nordeste; e 3) Sergipe está entre os cinco Estados do Nordeste brasileiro em que os sujeitos mais buscam na internet sobre o termo. Por meio desses dados, podemos obter tais análises: a TC é um termo de interesse buscado na internet desde 2009, possibilitando um contato prévio entre os sujeitos para com o tema. A Bahia, por ser um dos primeiros Estados a organizar debates e Marchas sobre o poder do cabelo crespo, além de possuir grande quantidade de membros em grupos virtuais em redes sociais, aparece em primeiro lugar. E Sergipe, apesar de está em quarto lugar, mostra que o termo TC é bastante pesquisado nessa região.

As redes sociais toraram-se um meio essencial para trocar informações sobre a transição e obter um conhecimento sobre a TC. Sabe-se da importância desses espaços que corroboram na construção do cabelo como símbolo identitário, dessa forma utilizaremos os relatos de interlocutoras que dialogarão com os depoimentos das entrevistadas da pesquisa, a saber: grupo Cacheadas e Crespas de Salvador (CCSaa), fundado em 2014 e Cabelos Crespos e cacheados de Sergipe (CCSe), criado em 2015. Os grupos, CCSaa que reúne mais de 100 mil e o CCSe, com quase 10 mil, têm o intuito de informar e ser pontos de apoios para mulheres que decidiram passar pela TC.

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