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Para além dos fios : cabelo crespo e identidade negra feminina na contemporaneidade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE - UFS PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM HISTÓRIA

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na

contemporaneidade

DENISE BISPO DOS SANTOS

SÃO CRISTÓVÃO SERGIPE - BRASIL

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DENISE BISPO DOS SANTOS

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na

contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe, como requisito obrigatório para obtenção de título de Mestre em História. Linha de pesquisa: Cultura, Memória e Identidade

Orientador: Prof. Dr. Petrônio José Domingues

SÃO CRISTÓVÃO SERGIPE - BRASIL

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DENISE BISPO DOS SANTOS

Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina na

contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe, como requisito obrigatório para obtenção de título de Mestre em História. Linha de pesquisa: Cultura, Memória e Identidade

Orientador: Prof. Dr. Petrônio José Domingues

Aprovada em: 13 de junho de 2019 Banca Examinadora:

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4 Dedico esta dissertação a todas as

mulheres negra de antes, de hoje e as que virão.

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AGRADECIMENTOS

Escrever essa dissertação foi muito especial, pois a produção só foi possível porque tive ao meu lado pessoas que me ajudaram tanto por meio de palavras como gestos e que foram fundamentais na construção de toda a pesquisa. Lembro-me das noites que fiquei conversando com minha amiga e companheira de moradia, Daniela Silva, sobre o momento que iríamos escrever o tópico do “agradecimento” e aqui estou... Muito emocionada, mas com a certeza de que as palavras a seguir tentarão demonstrar toda a minha gratidão.

Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus ancestrais que lutaram bravamente e resistiram a todas as privações históricas e hoje contemplo este momento por causa deles. Em especial, a minha vó Helena Francisca, que não a foi dado o direito de estudar e a minha mãe Marisa dos Santos que desafiou todas as estatísticas para sobreviver e criar uma filha nesse Brasil, que como todos sabem; não é fácil! Tenho plena consciência que o mérito da produção da escrita é minha, mas sem dúvida, se não fossem ambas, a fortaleza que elas transmitiram a mim, eu não conseguiria chegar a onde estou. Recordo-me que no início da aprovação do mestrado, mainha ainda sem saber o que era essa nova conquista acadêmica, falou para mim: “se você quer um mestrado, se jogue, pois eu já estarei me jogando em sua frente para retirar todos os obstáculos que irão surgir". Gratidão minha mãe, por mover montanhas para permitir que sua filha realizasse todos os sonhos.

As minhas historiadoras que me acompanham desde a graduação: Josiane Rocha, Claudiana Cardoso e Dandara Matos. Desde sempre eu agradeço e não me canso de falar o quanto sou grata ao Universo por ter me permitido conhecer vocês três. Josy, suas palavras e seu apoio incondicional foram essenciais para eu encontrar a minha fé. Você soube me conduzir de maneira impar e me fez refletir sobre o porquê não podemos desistir, nunca. Obrigada! Claudinha, amiga, como agradecer a você? Meu agradecimento é diário: nas redes sociais e toda vez que te vejo. Você me fez sair da inércia e ir à luta. Orientou-me, acalmou-me, falou-me verdades duras e me acalentou. Você é luz e terá a minha eterna gratidão! Dandara Matos, você me conhece melhor que eu mesma e sabe o quanto está sendo importante esse momento para mim. Você é meu ponto de apoio, é meu alicerce, é simplesmente a minha Dandara. A minha sorte é que todos os dias que (desde sempre) estivermos juntas, festejaremos e agradeceremos pela vida uma da outra. Gratidão por tudo e pelo o que virá. Eu pedi tanto a Deus uma irmã, e ele enviou três. Amo vocês.

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6 Ao meu companheiro, Augusto Júnior pela cumplicidade e compreensão nesse longo período. Mesmo antes da aprovação, esteve comigo compartilhando todo o processo da elaboração do projeto de pesquisa. Seu otimismo foi fundamental para eu poder continuar. Muito obrigada, meu amor.

A rede de mulheres que desde o início me ajudou e me fortaleceu:

A amiga Daniela Silva que compartilhou literalmente comigo as alegrias e apreensões do mestrado. Até tentamos não morar juntas, mas o Universo é sábio. Cada um no seu quadrado e claro, duas andaraienses teriam que ficar no mesmo quadrado. Um ano compartilhando a casa, novidades do mestrado e da vida em Sergipe. Muitos segredos, risos, choros e comidinhas que foram primordiais para aguentar a saudade e permanecer sã no período do mestrado. Obrigada, amiga! Amo você!

A minha sogra Janete Oliveira que não mediu esforços para me ajudar a realizar mais esse sonho. Permaneceu firme e forte ao meu lado, literalmente. Suas visitas e seus conselhos foram importantes nesse período, além de ser ótima parceira de viagens. Agradecer também ao meu sogro Augusto Rocha, por todo apoio e preocupação.

A amiga Majbritt Meincke que todos os dias emanou energia positiva para mim. Compartilhar com você sobre minha vida, em especial sobre o meu mestrado, foram “terapias” que me fizeram respirar com alívio. Com você tive meu primeiro contato do que seria um mestrado. Obrigada amiga por todo o seu apoio e por você ser um exemplo para mim. Amo-te, amiga.

A Edna Matos que é uma das minhas referencias. Sua história me inspira. Gratidão por todas as palavras e exemplo.

A Paula Lima, amiga amada que o Universo me deu! São exatamente dois anos de amizade, a mesma duração dessa dissertação. Nada é por acaso. Sou tão grata por te encontrar e agora poder compartilhar todos os momentos contigo. Gratidão por toda energia e parceria.

A Dailza Araújo, uma mulher que tenho muita admiração. Gratidão por tudo o que você somou em minha vida. Com você, eu refleti diariamente que “uma sobe e puxa a outra”. Além disso, obrigada pelas sugestões, leituras e empréstimos de livros. Você faz parte dessa vitória!

A Priscila Lobo, Linda Gomes, Cíntia Castro, Débora Oliveira, Stela Damasceno, Ana Santos, Bruna Ramos e Tamires Costa por toda a preocupação, pelos incentivos e por toda a torcida. Conversar e compartilhar com vocês a minha trajetória, fez-me perceber que nunca estive só. Gratidão meninas.

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7 As amigas que Sergipe me deu. Debora Leite, gratidão por todo apoio. Sou muito grata ao Universo por ter te conhecido. Aprendi muito com sua bravura e sensibilidade. Obrigada por toda a cumplicidade.

A Selma Santos que também tenho como referência de resistência de mulher negra. Inspiro-me em você, minha irmã. Gratidão por todos os conselhos e sou feliz por compartilhar contigo minhas expectativas, segredos, choros, sorrisos e os happy hour. Obrigada pela morada! Gratidão!!!!

As amigas que reencontrei depois de 12 anos. Mônica, obrigada por toda atenção dada a mim em Aracaju. Você, Kiara e Evellyn são meus tesouros.

A Anne Caroline serei eternamente grata pela acolhida e risadas. Amiga de longa data e ainda trouxe a vida a linda Laurinha. Nossos encontros foram sempre recheados de alegrias e muitos sambas.

E Miriam, obrigada também pela estadia e por toda energia. Gratidão pela existência, sua e de Yasmim. Gratidão por acreditar em mim desde o primeiro dia. A sua frase ainda ecoa “você será aprovada, mulher”. Obrigada meninas. Amo vocês.

Agradecer as mulheres que deram entrevistas para a dissertação. Ana Paula Couto, Samara Azevedo, Juliana Lobo, Hilmara Bitencourt, Cíntia Castro, Dandara Matos, Aline Silva, Karoline Gois, Debora Leite, Michele Santos, Thatiana Menezes, Angélica Nascimento, Leiliane Santos e Míriam Félix. Gratidão por compartilharem comigo suas histórias de vida, de momentos tristes, mas, sobretudo, de fatos especiais que tiveram com suas cabeleiras. Gratidão por todos os registros.

Agradecer a turma do mestrado que me abraçou desde o primeiro dia de aula. Não esquecerei jamais toda acolhimento que vocês me deram. Sintam-se agraciados por meio de três pessoas da turma: Andrea Rocha, obrigada pelas palavras confortantes, conversas e pela ajuda Acadêmica. Você foi a primeira pessoa que me deu boas vindas. Sua energia foi fundamental para eu iniciar essa trajetória com muito otimismo. Gratidão Déa!! A William Siqueira, amigo querido que apesar das poucas conversas que tivemos, seu carisma e simplicidade foram contagiantes. Aprendi contigo que mesmo que o obstáculo pareça grande, não conseguirá nos bloquear. Obrigada!! E Ivoneide Santos, amiga que tanto estimo, que tanto quero o bem. Gratidão pelas conversas, desabafos, choros e sorrisos. Poder compartilhar contigo tantos momentos, foi um aprendizado de vida! Obrigada por me emprestar a sua família. Olha, a nossa trajetória não termina por aqui, viu? Amo muito você!!!

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8 Aos professores que fazem parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe. Todo o ensinamento transmitido por vocês foi essencial para a construção da dissertação de mestrado e que levarei para a vida. Gratidão.

Ao meu orientador, Petrônio Domingues. Foi além e tornou-se meu amigo. Sou muito grata por todas as orientações, tanto para a dissertação quanto para a vida acadêmica em geral. Gratidão pelo exemplo que és para mim.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro que permitiu o desenvolvimento dessa pesquisa.

Por fim, é necessário falar que escrever essa dissertação não foi fácil. Foram dois anos que ocorreram fatos lamentáveis no Brasil. Golpes atrás de golpes que infelizmente serão marcados na História. Além disso, ocorreram muitas mortes, violências e racismos contra a população negra, em especial, às mulheres afro-brasileiras. Escrever uma dissertação, falando das mulheres negras, de nós, do povo preto e assistir a tantas perdas não foi fácil. Não mesmo. Por isso, foi tão importante o apoio de todos que citei. Juntamente com a fé. À Deus por toda benção emanada a mim e energia para enfrentar todas as dificuldades nessa trajetória e a minha mãe Oxum que me guiou, livrou e conduziu pelos melhores caminhos. Òóré Yéyé ó, minha mãe!

Gratidão aos meus. E para quem acha que é “mimimi” (os entendedores entenderão), reparem: vim de Andaraí/Ba, moro em Salvador, da comunidade do Nordeste de Amaralina. Meus ancestrais lutaram por isso. Minha mãe e amigos também. Quer mais? Acabo de me tornar Mestra em História. Estamos em festa. Viva a nós!

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo compreender os fenômenos que levaram um grupo de mulheres negras a assumir o cabelo crespo tornando-o expressão de luta contra o racismo, estratégia de resistência e redefinição da identidade feminina negra contemporânea. Nesse sentido, no intuito de entender a influência do cabelo para a subjetividade dessas mulheres, foram analisados quatro paradigmas capilares, são eles: Cabelo Alisado, Pluralidade Capilar, Black Power e Transição Capilar. Por meio das contribuições do campo da História do Tempo Presente que nos fornece possibilidades de analisar a movimentação de sujeitos sociais em torno do aspecto capilar na contemporaneidade, realizou-se a coleta de dados em revistas da Raça Brasil, narrativas de mulheres das cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA e relatos de grupos em redes virtuais. No que tange aos resultados encontrados, infere-se esse retorno capilar às múltiplas dimensões como o diálogo com o corpo feminino, afirmação de identidade, insurgência de um movimento virtual e presencial em torno da questão capilar, bem como, troca de experiências e vivências no sentido de que são intensamente constituídas de subjetividade, prisma fundamental para que adquirissem os significados no contexto atual. Dessa maneira, a presente pesquisa busca contribuir com a reflexão acerca da construção da identidade de mulheres que vivenciam e ressignificam as representações capilares pautadas na intensa relação com os paradigmas que giram em torno do cabelo crespo.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres negras. Cabelo crespo. Identidade negra. Paradigmas capilares.

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ABSTRACT

The present research aims to understand the phenomena that led a group of black women to assume afro curly hair making it an expression of the struggle against racism, a resistance strategy and a redefinition of contemporary black feminine identity. In this sense, in order to understand the influence of hair on the subjectivity of these women, four hair paradigms were analyzed: Hair Straightening, Capillary Plurality, Black Power and Hair Transition. Through contributions from the field of History of the Present Time that provides us with possibilities to analyze the movement of social subjects around the capillary aspect in contemporary times, the data was collected through the magazines “Raça Brasil”, narratives of women from the cities of Aracaju / SE and Salvador / BA and reports of groups in virtual networks. With regard to the results found, this capillary return is inflected to multiple dimensions such as dialogue with the female body, affirmation of identity, insurgency of a virtual and face-to-face movement around the capillary issue, as well as exchange of experiences which are intensely loaded with subjectivity, a fundamental prism for the ways in which the women acquired meanings in the current context. In this way, the present research seeks to contribute with a reflection on the construction of the identity of women who experience and create a resignification of the capillary representations based on the intense relation with the paradigms that revolve around afro curly hair.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Ângela Davis no partido Panteras Negras...36

Figura 2 - Carta de princípios do MNU...38

Figura 3 - Cabelo bom da Revista Raça Brasil...44

Figura 4 - Primeira Revista da Raça Brasil Setembro 1996...44

Figura 5 - Segunda Revista da Raça Brasil Outubro 1996...44

Figura 6 - Terceira Revista da Raça Brasil Novembro 1996...45

Figura 7 - Quarta Revista da Raça Brasil Dezembro 1996...45

Figura 8 - Cabeça Feita e estilos...49

Figura 9 - As tranças produzidas por fio de kanecalon...51

Figura 10 - A técnica de entrelaçamento...52

Figura 11 - A técnica de Mega Hair...53

Figura 12 - O cabelo crespo natural...53

Figura 13 - Aspecto capilar: Crespo, sim...54

Figura 14 - Modelos capilares do crespo...55

Figura 15 - Cabelo crespo: estilos de penteados ...56

Figura 16 - Penteados da Raça Brasil...56

Figura 17 - Black Power na cabeça...57

Figura 18 - Capa da Revista Raça Brasil sem chamada sobre cabelos 1...59

Figura 19 - Capa da Revista Raça Brasil sem chamada sobre cabelos 2...59

Figura 20 - Encontro do paradigma Pluralidade Capilar com a Transição Capilar...60

Figura 21 - Baile Black Power...65

Figura 22 - Toni Tornado e o cabelo Black Power...66

Figura 23 - Revista Black Hair...71

Figura 24 - Química x Transição Capilar...74

Figura 25 - Busca pelo termo Transição Capilar...84

Figura 26 - Vênus hotentote: Saartjie Baartan...85

Figura 27 - O corpo da mulher negra livre de padrões...89

Figura 28 - Autonomia do corpo feminino negro...91

Figura 29 - Mulher negra e as cotas...95

Figura 30 - Identidade e cabelo crespo...99

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Figura 32: Resistencia e liberdade nos grupos virtuais...113

Figura 33: Apoio e identidade negra...114

Figura 34: Aniversário de 2 anos do CCSaa...116

Figura 35: 2º Encontro do CCSe...116

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...15

2. O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO SOCIAL E SMBÓLICA...29

2.1. O lugar do cabelo da (a) negro (a) ...29

2.2. Dos movimentos negros ao cabelo em foco ...34

2.3. Breve história da revista dos negros brasileiros: Raça Brasil ...39

2.4. O que fazia a cabeleira das mulheres: o paradigma Pluralidade Capilar por meio da reprodução do cabelo da Revista Raça Brasil...44

2.4.1. O cabelo é livre, múltiplas opções ...49

2.4.2. Crespo sim!!! ...52

2.4.3. Black Power na Cabeça ...57

2.5. O novo paradigma: da Raça Brasil a transição capilar ...58

3. SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS CRESPOS NATURAIS COMO FORMAS DE EXPRESSÃO DE LUTA, AUTOESTIMA E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA...62

3.1 A era do paradigma Black Power: o cabelo crespo como símbolo de luta e elevação da autoestima de um povo...62

3.2 Permanências e mudanças: afinal, qual a inovação da Transição capilar?...69

3.2.1 Os protagonistas da pesquisa: as mulheres entrevistadas e os grupos virtuais que abordam a transição capilar...76

3.3 E porque sós as mulheres? A questão capilar e o corpo negro feminino vivido...85

3.4 Breve reflexão sobre o contexto histórico...92

4. O CABELO CRESPO É IDENTIDADE, É RESISTÊNCIA...97

4.1 Zona de tensão: reflexões sobre a construção e/ou afirmação da identidade negra por meio do simbolismo do cabelo crespo...97

4.2 Como resistir? O simbolismo do cabelo crespo...102

4.3 Os Espaços de resistências em torno da questão capilar...109

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14 4.3.2 É preciso resistir: conhecimento e troca de experiências nos encontros presenciais...114

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...120 6 REFERÊNCIAS...122

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1. INTRODUÇÃO

A pesquisa tem como objetivo compreender os fenômenos que levaram um grupo de mulheres negras a assumir o cabelo crespo e em que medida o mesmo se torna expressão de luta contra o racismo, estratégia de resistência e redefinição da identidade feminina negra contemporânea. No intuito de refletir sobre o que influenciou as cabeleiras das mulheres negras, investigaremos quatro paradigmas1 capilares: Cabelo Alisado, Black Power, Pluralidade Capilar e Transição Capilar. Tais padrões do cabelo crespo não sobrepõem uns aos outros, contudo são relevantes para refletir sobre a construção da identidade que é ressignificada mediante as experiências das mulheres.

Embora no Brasil tenha uma variedade de fenótipos, cores de pele e texturas de cabelos, juntos, se tornam símbolos de inclusão e exclusão na sociedade brasileira. Sobre essa questão, Gomes (2012) reitera que os aspectos físicos expressam a construção social, cultural, política e ideológica e que por isso não podem ser considerados simplesmente elementos biológicos (GOMES, 2012, p.2). Assim, no Brasil, para além da origem, os fenótipos da pessoa são características essenciais para determinar se um indivíduo sofrerá ou não racismo.

No que se refere sobre o racismo proveniente dos traços físicos, Nogueira (2007) contribui ao elencar dois tipos de características de preconceitos raciais: de marca e de origem. Segundo o autor, membros de determinadas populações são condicionadas a julgamentos por vários motivos, entre eles, pela aparência, ou por terem ascendência étnica que lhes atribuem ou por serem reconhecidos. Nas palavras de Nogueira,

Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem. (NOGUEIRA, 2007)

Dessa maneira, de acordo com Nogueira quando o preconceito é de marca, serve de critério o fenótipo ou aparência racial. Vale ressaltar que, para o autor, o preconceito de marca era típico do modelo racial norte-americana, já o preconceito de cor, era típico do modelo racial brasileiro. Por meio de variações subjetivas, devido aos diversos fatores que

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Bartelmebs (2012) apud Kuhn (1997) considera que paradigma é “[...] um conjunto de saberes e fazeres que garantam a realização de uma pesquisa científica por uma comunidade. O paradigma determina até onde se pode pensar, uma vez que dados e teorias, sempre que aplicados a uma pesquisa, irão confirmar a existência desse paradigma.” (BARTELMEBS, 2012, p. 353). Dessa forma, aplica-se no estudo a ideia do paradigma capilar para compreender fenômenos históricos distintos que abordaram o cabelo crespo dos sujeitos sociais negros.

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16 podem influenciar o grupo discriminador em relação ao grupo discriminado, como a função dos característicos de quem está sendo julgado e observado, como também em função da atitude como a relação de amizade ou deferência por exemplos, essa variação de julgamentos leva ao ridículo que implicará numa discrepância entre a aparência do indivíduo e identificação que ele faz de si ou a que lhe atribuem.

Assim, ainda que saibamos que surgiu a ideologia da democracia racial2 e que esta nunca existiu, a sociedade brasileira ainda é baseada em hierarquias sociais que estruturam as desigualdades raciais. Nessa perspectiva, a imagem da população negra foi construída marcadamente por preconceitos fincados em ideias racistas, inferiorizando-os. Munanga (1986) corrobora que além da força física, foi utilizado contra os negros o preconceito e estereótipo, que surgem como fatores importantes para a dominação à medida que desmoralizam o ser humano, fazendo-o acreditar na sua inferioridade.

Esse cenário de exclusões e violência favoreceu a imposição de uma beleza hegemônica baseada em modelos europeus. Há de se pontuar que tal injunção capilar é observada no Brasil desde o período escravista, quando por meio da aparência: vestimentas, brincos, colares e o cabelo cortado embelezado por pequenos adereços3, mulheres negras escravizadas podiam se distinguir em posições privilegiadas em relação às outras mulheres negras. Entretanto, é necessário ressaltar que esta pesquisa está situada nos estudos do pós-abolição, por perceber transformações em relação aos aspectos capilares das mulheres negras não somente a uma corrida por um status social, mas também pelas interferências das indústrias relacionadas ao mercado, propaganda, manipulações e conceitos de beleza que ocasionou comportamentos, atitudes e ressignificações.

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A democracia racial remonta desde o século XIX. Segundo Domingues (2005), as raízes histórica do mito da democracia racial é impulsionado pela literatura produzida pelos viajantes que visitaram o país, pela produção da elite intelectual e política; pela direção do movimento abolicionista institucionalizado e pelo processo de mestiçagem. E houve grande impulso no pós-abolição até 1930 pela a imprensa negra; o relacionamento de aparente integração dos negros com os imigrantes; o legado da mentalidade paternalista em um setor da elite tradicional; o movimento comunista e a tradição de comparar o sistema racial brasileiro ao estadunidense (DOMINGUES, 2005, P. 119). Ainda nessa perspectiva, Nilma Lino Gomes enfatiza em relação à democracia racial que “tal discurso consegue desviar o olhar da população e do próprio Estado brasileiro das atrocidades cometidas contra os africanos escravizados no Brasil e seus descendentes, impedindo-os de agirem de maneira contundente e eficaz na superação do racismo. Outras vezes, mesmo que as pessoas e o próprio poder público tenham conhecimento da distorção presente no discurso da harmonia racial brasileira, usam-no política e ideologicamente, argumentando que não existe racismo no Brasil e, dessa forma, julgam que podem se manter impassíveis diante da desigualdade racial” (GOMES, 2005, p. 56).

3Para saber mais sobre as mulheres negras escravizadas com os mais diversos penteados e adereços, ver a

dissertação de COUTINHO, Cassi Ladi Reis. A Estética dos Cabelos Crespos em Salvador. Dissertação de Mestrado. Salvador : UNEB, 2010.

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17 Nesse contexto, no pós-abolição, por causa da hegemonia do padrão estético de beleza branco, foram desenvolvidos produtos direcionados às mulheres negras com a finalidade de se assemelhar a textura dos cabelos lisos, conhecidos como cremes de alisamentos. Processo esse que denominamos como o primeiro padrão do cabelo crespo: paradigma Cabelo Alisado. Mas antes de falarmos sobre o processo dos cabelos alisados das mulheres negras no Brasil no pós-abolição, é relevante trazer as contribuições de Côrtes (2012) em relação ao alisamento e crescimento capilar por meio da análise de histórias de vida de mulheres. Côrtes (2012) em sua pesquisa dialoga sobre a racialização, beleza e cosmética na imprensa nega no pós-emancipação nos Estados Unidos. As mulheres negras, segundo a autora, definiam a beleza como uma forma de equidade em relação às mulheres brancas e respeito diante a sociedade. No intuito de progredirem no campo intelectual, cultivavam saberes científicos e disseminavam os conhecimentos e práticas em relação a beleza da cor e do cabelo por meio da uma rede de sociabilidade, não somente para agradar ter um status na profissão, mas também para terem sucesso no matrimônio.

Não obstante, para além desses quesitos descritos anteriormente, havia um questão essencial para a busca da boa aparência: o resgate da feminilidade, que foi anulada pelo longo e duro processo de escravidão. Dessa maneira, segundo Côrtes (2012), para as mulheres dos EUA, adequasse à imagem do cabelo alisado e “que carregava em seu bojo uma proposta de revitalização da imagem, igualmente calcada no discurso racializado de melhora da aparência, promovido por centenas de cosmetologistas que integravam o time das empresárias da raça”. (CÔRTES, 2012, p. 332). A autora reconstrói então, trajetórias do empreendedorismo negro, como por exemplo, mulheres como Annie Pope Turnbo-Malone e Madam C. J. Walker e suas relações com as comercialização e produção de cosméticas negras. Ambas insistiam em articular mercado da beleza e ascensão profissional de mulheres blacks4, e lançavam a imagens que as mulheres negras tinham suas próprias histórias para contar e as “experiências de manipulação dos pelos também revelam o intento feminino de desconstruir estereótipos através da comercialização e uso de produtos criados para encontrar o penteado mais adequado para representar o que julgavam ser uma beleza cívica negra” (CÔRTES, 2012, p. 333). Ainda no ponto de vista de Côrtes (2012),

Já no caso da manipulação dos fios, o sonho era mais realista, uma vez que as mudanças prometidas eram ligadas ao trabalho específico com os fios do couro cabeludo, que rebeldes que só precisavam ser melhorados, como garantia o Hartona, “maior de todas as preparações”, o tônico era “positivamente incomparável [no]

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18 alisamento de todos os cabelos carapinhas, teimosos e ásperos”. Nesse sentido, é interessante notar que as anunciantes recusavam um discurso essencialista e homogêneo. Ao contrário disso, de olho nas vendas, faziam questão de reconhecer a diversidade de cabeleiras crespas, criando um vocabulário altamente complexo e comprometendo-se a esticar toda e qualquer uma delas. Por outro lado, não menos interessante é a observação de que, em hipótese alguma, elas asseguravam mudar aquilo que acreditavam ser a suposta essência dos fios, tão pouco garantiam a manutenção de uma crina escorrida, em caso de abandono do tratamento. A esse respeito, nossas especialistas eram um tanto quanto sinceras: uma vez kinky sempre carapinha, daí a necessidade de cuidado permanente (CÔRTES, 2012, p. 334). Nesse sentido, observamos que as mulheres não queriam negar o cabelo crespo e sim cuidar constantemente da estética, ou seja, disciplinavam seus corpos a fim de se adequarem ao contexto histórico e racista dos EUA. Por meio dessa reflexão, Côrtes (2012) sinaliza que o alisamento foi uma política hegemônica entre as mulheres negras até 1950, quando começa a se evidenciar o estilo natural do cabelo. Dessa forma, segundo a autora, é necessário compreender que o processo de aceitação das mulheres afro-americanas do aspecto capilar alisado “pode ser interpretado como uma posição política de afirmação racial” (CÔRTES, 2012, p. 337).

Já em relação ao Brasil, como já pontuamos anteriormente, o processo de alisamento em várias mulheres negras foi também em detrimento ao racismo que as faziam a acreditar na sua inferioridade. Dessa maneira, de acordo com Lopes (2002), no início do século XX, ocorre um grande investimento em propagandas em prol de deixar o cabelo e pele apresentáveis, visto que nesse período para ser uma mulher elegante, teria que se apresentar com cabelos lisos e se possível, compridos. Lopes (2002) enfatiza que enquanto anúncios e reportagens eram constantes publicados, apareciam poucos de produtos que eram capazes de diminuir as quedas de cabelos ocasionados pelo teor químicos das pastas de alisamento. Isso porque as empresas não queriam passar a imagem de produtos ruins.

Um dos produtos mais teve publicidades, foi o Cabelizador. Braga (2015) traz um exemplo em sua pesquisa de um texto publicitário em que anuncia o produto chamado “O cabelisador: alisa do cabelo o mais crespo sem dor”5 que tinha como intuito alisar o cabelo crespo, pois era “o sonho dourado de milhares de pessoas” (BRAGA, 2015, p.244). A autora ainda argumenta que,

[...] o Cabelisador aparecia como uma alternativa estética que vinha responder a uma exigência social e histórica. Não por acaso, as pastas do produto são chamadas de pastas mágicas: a elas estava reservado o poder de subverter a estética natural do

5 Ver a publicidade transcrita em BRAGA, Amanda Batista. História da Beleza Negra no Brasil: discursos,

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19 negro em nome de um padrão de beleza dominante. Aliadas ao pente quente, essas pastas prometiam beleza e modernidade à mulher negra sem causa-lhe dor, além de dispensar a necessidade de ir ao salão ou de solicitar a ajuda de um cabelereiro. O sonho dourado daquele momento nos parece ser, na verdade um sono negro, que parte da prática de alisamento, mas que não se resume ou não se limita a ela: é um sonho que vai além, e que também começa muito antes dessa invenção maravilhosa que é o Cabelisador. Falamos de um sonho que condensa a busca por um status, bem como a busca por uma aceitação/inserção social através da estética, ainda que isso lhe custe uma profunda manipulação de seu corpo. Apostar num padrão de beleza genuinamente negro não representaria qualquer alcance. Nas tramas da história, era a estética branca que prevalecia enquanto modelo a ser seguido (...) (BRAGA, 2015, p. 245).

Como podemos perceber, o alisamento causava uma profunda manipulação no corpo da mulher negra. Os anúncios produzidos nesse período não escapavam ao estereótipo em prol de um embelezamento moderno (LOPES, 2002). Sobre essa discussão, Jocélio T. dos Santos evidencia que,

Os discursos sobre a importância do cabelo na composição da estética negra são tema de imagens aproximativas, contrastivas e de conteúdo político. A aproximação é a suposta harmonia estética do rosto das sociedades ocidentais, em que os cabelos considerados bonitos são lisos e compridos. Em razão dessa colonização cultural, os negros usavam ferro quente (que os baianos apropriadamente denominam cabelo frito), pastas, alisantes e outras alquimias, construindo-se um ideal negro associado ao uso desse instrumental (SANTOS, 2000, p. 9-10).

Assim, desde o início do pós-abolição no Brasil dominou o padrão do Cabelo Alisado que gerou a negação dos fenótipos negros ocasionando a perda identidades para muitas mulheres negras. Contudo, a depreciação da estética negra, sobretudo de uma grande parte da população afro-brasileira só veio a ser significativamente alterada a partir dos anos 1960, contendo influências dos vários movimentos que ocorreram nos Estados Unidos em 1950 que buscavam a valorização dos negros por meio da elevação de sua autoestima. No Brasil surgiram vários grupos organizados, como o Movimento Negro Unificado (1978), que militou por direitos, reparações e rompimento com o mito da democracia racial, e também a valorização de beleza, ou seja, a junção dos movimentos políticos e estéticos romperam padrões racistas que imperavam.

Nota-se que houve transformações na aceitação de seus fenótipos e muitos sujeitos negros passaram a assumir seus traços e se identificarem como tal. O Bloco afro baiano Ilê Aiyê, fundado em Salvador no ano de 1974, tinha como principal ação a elevação da autoestima da população afrodescendente como pode ser observados na letra da música Deusa do Ébano 1.

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20 Deusa do Ébano I

Minha crioula

Eu vou contar para você Que estás tão linda No meu bloco Ilê-Aiyê

Com suas trancas muitas originalidade Pela avenida cheia de felicidade Deusa do ébano

Ê, deusa do ébano Ê, deusa do ébano Ê, deusa do ébano Todos os valores

De uma raça estão presentes Na estrutura deste bloco diferente Por isto eu canto pelas ruas da cidade Pra você minha crioula

Minha cor Minhas verdades Deusa do ébano Ê, deusa do ébano Ê, deusa do ébano Ê, deusa do ébano Ê, deusa do ébano

Geraldo Lima. Deusa do Ébano. Gravado pelo Bloco Ilê Aiyê, 1978. 03:16 min. A música tem o intuito de homenagear a Deusa do ébano6, com ênfase na afirmação da consciência negra, valorizando a raça e a cultura, no intuito de fortalecer a identidade negra e, também, exaltar as formas de expressão do corpo negro. Mas, apesar de toda afirmação dos movimentos negros, o cabelo da mulher afro-brasileira ainda seguia como marco de definição de estigmas.

A reflexão desse contexto direciona para a problematização da pesquisa: como o cabelo crespo natural de muitas mulheres negras que há séculos é estereotipado, se tornou símbolo de resistência e reconstrói uma identidade na contemporaneidade? Qual(is) o(s) caminho(s) que os padrões encontraram para positivar a identidade negra? Em que o atual paradigma da Transição Capilar inova em relação aos demais padrões capilares do cabelo crespo? Esses paradigmas seriam estratégias de resistências? Em que medida o retorno do

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O Bloco afro Ilê-Aiyê desde 1979 realiza o Concurso da Beleza Negra para a escolha de uma mulher negra, a Deusa do Ébano que ocupa lugar de destaque, desconstruindo estereótipos racistas do padrão hegemônico. Ver PINHO, Osmundo Araújo. Deusa do ébano: a construção como uma categoria nativa da reafricanização em Salvador. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 26., 2002. Caxambu. Anais... Caxambu: ANPOCS.

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21 cabelo crespo seria uma possibilidade das mulheres reconhecer-se como negras? Quais os fenômenos que levam um grupo de mulheres valorizar o corpo negro, sobretudo o cabelo?

No entanto, de onde surgiram esses questionamentos? Tais inquietações sobre os cabelos das mulheres negras surgiram ainda na graduação. Entre a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e as ruelas da cidade de Cachoeira/Bahia, conheci um grupo de samba chamado Samba Suerdick e em pouco tempo de participação nos ensaios do grupo, fui convidada pela matriarca do samba, a Doutora do Samba7, Dona Dalva Damiana de Freitas, a fazer parte do grupo. Um dos rituais que me chamou atenção foi a maneira que as senhoras negras que compunham o grupo, arrumavam seus cabelos para colocar o torço8 na cabeça. Todas tinham os cabelos crespos, menos eu. Utilizava química no cabelo e isso começou a me incomodar. Após conversas com as integrantes do grupo, resolvi passar por uma transição capilar e também por um processo de me enxergar e me aceitar como uma mulher negra, pois antes, não me reconhecia como tal.

Com essa inquietação, meus caminhos acadêmicos voltaram-se para os estudos da população afro-brasileira, em especial no que tange a história das mulheres negras e suas especificidades. Falar de mulher negra é essencial para um rompimento de uma narrativa dominante que insiste em invisibilizar, silenciar e ridicularizar as histórias das mulheres negras de forma individual e coletiva, desde as ancestrais até as dos dias presentes. Sobre essa rompimento, Ribeiro (2017) alerta que deve-se

[...] pensar em saídas emancipatórias para isso, lutar para que elas possam ter direito a voz e melhores condições. Nesse sentido, seria urgente o deslocamento do pensamento hegemônico e a ressignificação das identidades, sejam de raça, gênero, classe para que se pudesse construir novos lugares de fala com o objetivo de possibilitar voz e visibilidade a sujeitos que foram considerados implícitos dentro dessa normatização hegemônica (RIBEIRO, 2017, p. 43)

Dessa forma, logo após finalizar a graduação decidi que iria desenvolver uma pesquisa que contemplasse a história dessas mulheres e trazê-las para o mundo acadêmico como protagonistas do processo histórico, sobre a ótica da estética negra com ênfase nos cabelos dessas mulheres negras. Assim, tais questões e vivências instigaram ao desenvolvimento da presente pesquisa.

7 No dia 22 de novembro de 2012, a Universidade Federal da Bahia concedeu o título de Doutora Honoris Causa

a Dona Dalva Damiana de Freitas.

8 O torço é feito com tecidos brancos que envolve e tem o objetivo de proteger o Or i- a cabeça. No samba de

roda é usado exclusivamente pelas mulheres e reverência todas as mulheres negras ancestrais, em especial, as mulheres que tinham como ofício ser baianas de acarajé.

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22 O recorte espacial do estudo são as cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA, ambas situam-se na região Nordeste do Brasil. Salvador/Ba foi escolhida por habitar uma das maiores populações afrodescendentes do mundo, e principalmente, por apresentar um quadro de empoderamento das mulheres negras e do orgulho crespo que promovem e participam das marchas com o objetivo de valorizar a beleza negra e combater o racismo. Aracaju/SE, por sua vez foi escolhida por ser uma capital que desde os anos 1980, vem construindo estratégias para se fortalecer uma identidade da população negra através dos movimentos negros. Seja por meio da religião afro-brasileira, pelos centros de cultura ou políticas públicas, o movimento negro aracajuano organiza discussões sobre o racismo, a auto-estima e a valorização da cultura negra (NEVES, 2012). Acrescenta-se que Aracaju foi escolhida também por análises preliminares feitas em grupos virtuais das redes sociais em que percebeu-se um movimento de idas e vindas de mulheres negras aracajuanas à Salvador. Esses itinerários tinham como finalidades a participação nas machas e encontros que socializavam informações sobre a transição capilar e o empoderamento crespo9.

Em relação ao recorte temporal, o estudo se debruça na análise dos paradigmas capilares no pós-abolição: Cabelo Alisado, Black Power, Pluralidade Capilar e Transição Capilar. Há reflexões pontuais feitos do período da era Black Power no Brasil a partir dos anos 1960, como também análises retiradas por meio das publicações feitas nas revistas Raça Brasil (RB) entre os anos de 1996 a 1999. Nos últimos anos da década de 90, a RB foi um veículo midiático nacional que abordou questões raciais, nas quais a beleza da população negra, sobretudo o cabelo estava sempre em foco. Dessa forma, será possível analisar detalhes relevantes sobre o cabelo e suas particularidades como modelos capilares, métodos, penteados que influenciavam as mulheres nesse período.

A pesquisa também se propõe refletir sobre o paradigma atual do cabelo por meio do método da transição capilar que se inicia no ano de 2008 e estende até o ano atual. O período analisado está inserido em um contexto em que ocorre no Brasil aplicação de ações afirmativas e, também, acontece à emergência da reflexão sobre o corpo negro por intermédio de pautas advindas do feminismo negro que foram igualmente essenciais para a repercussão do novo fenômeno capilar.

Os procedimentos metodológicos fundamentam-se, a priori, em fontes escritas e orais. Na fonte impressa, as revistas RB podemos localizar reportagens relacionadas ao cabelo da mulher. Para analisar a fonte impressa, Lucca (2005) corrobora que o pesquisador que

9 Ocorreram em Salvador, 03 marchas do Empoderamento Crespo entre os anos de 2015 a 2016. No capitulo 3

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23 trabalha com revistas e jornais, investiga assuntos que já se tornaram notícias, e que é necessário o destaque conferido ao acontecimento, como também para o local em que se deu a publicação. Por isso a análise crítica das revistas RB nessa pesquisa se abarcará tanto dos conteúdos interiores, quando nas capas e no contato que mulheres leitoras tiveram com a revista.

Dessa forma, a revista da RB é essencial, pois permite apreender sobre o paradigma Pluralidade Capilar, anterior a transição capilar que também tinha o intuito de valorizar a cabelo da mulher negra. Nessa fonte localizam-se usos práticos para os cabelos crespos como técnicas capilares, cortes e tratamentos para os cabelos naturais, o grande uso de produtos para alisar e relaxar os cabelos, depoimentos e reportagens que evidenciam o uso do cabelo crespo como símbolo de afirmação identitário. Na revista também observam-se diversas fases da reprodução do cabelo crespo, natural e com química, bem como o encontro desse paradigma capilar com a transição capilar.

Para dar corpo ao trabalho e obtermos maiores informações de quem são as mulheres que estão optando ao retorno do cabelo natural, utilizou-se, também, entrevistas de mulheres das cidades de Salvador-Ba e Aracaju-Se. Os depoimentos são relevantes para que possamos entender o que levaram essas mulheres a passar pelo processo de transição capilar; qual seria o sentido do cabelo crespo para refletir-se como mulher negra e se o retorno ao cabelo natural seria uma forma de resistência dentro de uma sociedade racista, ou se tinha outros objetivos. Ao analisá-los dá-se ênfase aos pormenores, como por exemplo, as questões subjetivas dessas mulheres por meio de suas histórias de vida, em relação aos seus cabelos e aos relatos considerados irrelevantes para alguns. Dessa forma, tem-se como objetivo dar voz a essas mulheres que tiveram suas vivências silenciadas, conferindo-lhes o papel de protagonistas de suas histórias.

Na pesquisa dialogamos com 2 grupos da rede social do Facebook, são eles: Crespas e Cacheadas de Salvador e Cabelos crespos e cacheados de Sergipe. A participação reflexiva nos grupos permitiu compreender a dinâmica de ajuda mútua, troca de informações e compartilhamento de experiências entre as mulheres que fizeram a transição capilar. Nesse sentido ressaltarmos a importância em dialogar com o ciberespaço, pois é um espaço que permite a comunicação e interação entre diversas pessoas no meio virtual online, quanto off-line. Sobre a pesquisa histórica no ciberespaço, Lopes (2018) pondera que,

[...] a mídia digital trouxe de fato uma série de novidades epistemológicas para a pesquisa histórica. Trabalhar em dispositivos digitais

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24 acessando um espaço de informação igualmente digital não é análogo a trabalhar com papel e lápis em uma biblioteca/arquivo incomensurável. A maneira como a informação é encontrada é diferente, o modo como a examinamos é distinto, o jeito como a compilamos e comparamos é outro. Ou seja, a pesquisa histórica realizada em meio digital é diversa da pesquisa histórica realizada em arquivos tradicionais (LOPES, 2018, p. 161).

Nesse contexto, encontramos nesses grupos relatos de racismo da família, dos colegas, de ambientes institucionais, enfrentamento antirracista por causa do cabelo; afirmação identitárias por meio do corpo; vivências das mulheres por intermédio da transição. Analisou-se, também, a movimentação virtual destas mulheres e suas iniciativas para organizarem encontros em espaços físicos que discutiam sobre o cabelo e suas particularidades. Todas as fontes são de grande importância, têm proporcionado observar mudanças e permanências que permitirá responder à problemática da pesquisa.

O cabelo da população negra, sobretudo, da mulher vem sendo discutido cada dia mais e as pesquisas sobre essa temática também cresceram. Tal análise é interdisciplinar, a saber, historiadores, antropólogos, sociólogos dão enfoque ao tema. Alguns desses estudos são pertinentes para esta pesquisa, dentre eles destacam-se: a obra de Raul Giovanni Lody (2004) que traz uma pertinente discussão sobre os cabelos como forma de memórias de identidade de grupos sociais. Com a utilização de fontes iconográficas, Lody (2004) narra a história do cabelo dos africanos e afro-descendentes por meio dos penteados, abordando que a cabeça como uma união do mundo contemporâneo a ancestralidade. O autor afirma que a cabeça é um espaço simbólico e dessa forma, cuidar do cabelo é um ritual que a pessoa vivencia nela própria e com seu grupo. Manipular os cabelos, para Lody, é atividade muito antiga e muito importante, tão quanto às outras descobertas do ser humano (LODY, 2004).

Outra pesquisa fundamental é o da antropóloga Ângela Figueiredo, intitulado Beleza Pura: símbolos e economia ao redor do cabelo (1994), que traz um debate acerca da manipulação em torno do cabelo crespo para entender sobre a classificação de cor na construção do discurso da identidade. A autora faz um contraponto com as falas de militantes negras e entrevistadas sobre as formas de usar o cabelo afro e conclui, por meio da pesquisa, que para as ativistas negras o cabelo é uma marca da identidade, já para as entrevistadas o cabelo é um fenótipo que pode ser manipulado de acordo com o que se pretende, como festas, trabalho, reuniões sociais e orçamento financeiro, ou seja, os preços, por exemplo, salões, compras de cremes.

Em relação ao cabelo como símbolo de afirmação, Nilma Lino Gomes em seu livro Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra (2006), faz uma de

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25 pesquisa realizada em quatro salões étnicos em Belo Horizonte que a norteia para entender como se constrói a subjetividade e identidade da negra mediante a estética. A autora aborda questões históricas, sociais, identitárias, estratégias de resistência e relaciona-as com as demandas do cotidiano das entrevistadas que possibilita conhecer o universo do indivíduo negro e suas particularidades. Vale ressaltar que Gomes (2006) escolhe justamente os salões étnicos por ser um espaço de sociabilidade onde surgem questões sobre política e sociedade, como também movimentos tipo desfiles de beleza negra, músicas, entre outros.

Cassi Coutinho, em A estética dos cabelos crespos em Salvador (2010) investiga o processo da estética negra, com ênfase nos penteados dos cabelos relacionando a afirmação e pertencimento étnico com base no processo de emergência e institucionalização de uma estética negra em Salvador. Coutinho ainda destaca que os penteados como estética do indivíduo negro ganhou espaço no mercado brasileiro e busca entender sobre a identidade dos sujeitos envolvidos.

Para pensar sobre o processo de alisamento entre as mulheres negras, encontramos o trabalho da autora bell hooks10 (2005), que embora não discuta sobre o Brasil, foi relevante

para se pensar o cabelo alisado das mulheres negras. Seu trabalho Alisando nossos cabelos (2005), que teve como referência as mulheres dos Estados Unidos, faz uma reflexão sobre o alisamento dos cabelos das meninas negras que era uma forma de ritual feito na cozinha pelas suas mães, irmãs, tias, ou seja, uma forma de solidariedade entre as mulheres. Nesse espaço e também nos salões de alisamento constituíam-se em locais de trocas de experiências, cantigas, afazeres, ou seja, elas podiam acolher e ser acolhidas. Segundo a autora, com a presença do patriarcado capitalista, nos contextos sociais e políticos, a postura do negro com o alisamento capilar se torna uma imitação com a aparência dos brancos e toma isso com inferioridade, fazendo com que sentissem ódio de si mesmos desenvolvendo baixo auto-estima.

Já em relação ao cabelo no processo da transição capilar, manteremos um diálogo com a pesquisa de Larisse Louise Pontes Gomes (2017) que busca compreender a transição capilar e o racismo, no qual geram tensões e novos significados, dentro e fora do ciberespaço. Por meio de uma caracterização da transição como rito de passagem, mostra a aproximação das mulheres com a estética negra, o fim da prática do alisamento e reconfiguração do processo de identidade. Esses e outros trabalhos que serão citados ao longo desta pesquisa nos

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Bell hooks é uma escritora norte-americana e seu nome é Gloria Jean Watkins. Ela justifica a assinatura de suas obras como “bell hooks”, pois afirma que o que é mais importante em seus livros é a substância e não nomes ou títulos.

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26 permitem obter informações específicas sobre o cabelo como símbolo identitário da mulher negra.

Por meio dessas contribuições, a pequisa visa observar o aspecto capilar por intermédio dos paradigmas capilares: Cabelo Alisado, Black Power, Pluralidade Capilar e Transição Capilar e investigar como cabelo crespo foi ressignficado no pós-abolição por mulheres negras no contexto brasileiro. Em suma, a pesquisa alvitra auxiliar para a consolidação do campo de estudos sobre a estética negra no Brasil, ocupando espaço de pesquisa e construção de teorias inovadoras que possam contribuir para a afirmação e discussões em torno de questões da população negra e, contribuindo, assim, para o estudo da trajetória dos povos afro-brasileiros e do enfrentamento contra as desigualdades sociais e raciais.

Esta pesquisa é relevante, pois, amplia o estudo do campo da História do Tempo Presente fornecendo possibilidades de leituras para a compreensão da história das mulheres negras utilizando o cabelo como símbolo de afirmação, construção de uma identidade e expressão antirracista, contribuindo para que haja a mudança de estereótipos e padrões que inferiorizam o povo negro, criados por uma sociedade racista e consagrados pela história oficial.

Ao considerar que a história se reescreve constantemente, aplicaremos a metodologia construída pela História do Tempo Presente, pois a história está em permanente processo de atualização, como avalia Ferreira (2013, p. 25). Essa metodologia permite analisar o processo histórico marcado por experiências ainda vivas e ativas com tensões e repercussões (Ferreira, 2013). Ademais, História do Tempo Presente possibilita trabalhar com fontes inovadoras como as entrevistas orais e as mídias digitais, fazendo a história como “coparticipante dos acontecimentos; vive-se e conta-se sobre o que se vive” (MOTTA, 2011, p. 34).

Contribuindo com a pesquisa, empregaremos a metodologia da História Oral que consiste em realizar entrevistas com sujeitos que participaram e ou testemunharam conjunturas e fatos do presente e do passado no intuito de ampliar os conhecimentos e ações desenvolvidas, registrando e difundindo na contemporaneidade. Lozano (1998, p. 19) afirma que a história oral, com a concepção da oralidade, se relaciona com a história de vida das pessoas e com isso se comunica e interpreta.

É daí que a história oral se corresponde com as ciências humanas, sobretudo, com a antropologia, a história e a literatura. Com as influências dessas vertentes, a história oral possibilita interpretações e uso de técnicas produzindo análises profundas das experiências

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27 dos indivíduos. Nessa vertente, a abordagem de Paul Thompson (1992, p. 22) relaciona a História Oral como uma possibilidade de transformação que revela novos campos de investigação na história. Utilizaremos no estudo em questão, a História Oral para propiciar o conhecimento das experiências e trajetórias das mulheres negras em relação ao cabelo crespo antes e pós transição capilar e como o cabelo se torna símbolo e expressão antirracista na contemporaneidade.

Na metodologia aplicaremos também a entrevista semi-estruturada centralizada no problema, pois permite manter a liberdade em colocar diversos assuntos sobre a estética negra no decorrer da entrevista, apesar de estar com questões previamente definidas. Manzini (1990) contribui ao ressaltar que a entrevista semi-estruturada foca em um assunto com perguntas principais comtempladas por outras questões relacionadas com o assunto principal no momento da entrevista. Com uma abordagem qualitativa, produz-se um levantamento das informações colhidas no intuito de verificar as mudanças/retorno no que diz respeito à estética e à busca pela identidade feminina contemporânea.

Pretendemos também com o aporte das entrevistas, tornar o passado concreto e compreender o presente, numa história dinâmica que permitirá construir narrativas vivas no processo de construção de identidade. Para isso, como fez Ginzburg (1989), seguiremos os vestígios dessas narrativas e não apenas interpretar os relatos de ações passados, pois essas memórias são mutantes e estão em constantes reformulações (ALBERTI, 2010, p. 167).

Por meio das análises das fontes que seguiram a metodologia descrita e dialogaram com a bibliografia elencada, as reflexões construídas na pesquisa foram estruturadas em cinco capítulos. O primeiro é apresentado as reflexões introdutórias. O segundo capítulo denominado O cabelo da (o) negra (o) ressignificado: do feio da raça a símbolo da identidade negra, tem como objetivo o estudo do lugar social e representação do cabelo. Neste capítulo, buscamos analisar um panorama geral do cabelo da população negra e refletir sobre como ao longo dos anos o mesmo foi construído e ressignificado fora e dentro da comunidade negra. Em um segundo momento, descreve-se sobre o paradigma Pluralidade Capilar que na década de 90 influenciou várias mulheres negras no Brasil, no qual apresenta-se a representação do cabelo, bem como os modelos e técnicas capilares, penteados e as várias vertentes do cabelo crespo proposto pela revista Raça Brasil.

No terceiro capítulo, denominada Solto, armado e natural: os paradigmas dos cabelos crespos naturais como formas de expressão de luta, autoestima e afirmação da identidade negra, tem como objetivo fazer uma análise minuciosa sobre as particularidades dos padrões

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28 que exaltaram o cabelo crespo natural e como os mesmos redefiniram a identidade de um grupo de mulheres. No primeiro momento, iremos refletir sobre a Era Black Power e sua relevância para a elevação da autoestima do sujeito negro a partir da década de 1960 no Brasil e, a seguir, abordaremos sobre o paradigma da Transição Capilar e a influência desse processo estético entre as mulheres nos dias atuais.

E quarto capítulo, intitulado O cabelo crespo é identidade, é resistência faz a reflexão sobre como sujeitos socais conseguem resistir em locais que impõe atitudes e pensamentos hegemônicos. Por meio da análise do paradigma Transição Capilar, no primeiro tópico apresentaremos uma discussão sobre identidade e as zonas de tensões que as mulheres enfrentam quando assumem o cabelo crespo e a seguir, fazemos uma problematização em torno da resistência dessas mulheres no cenário atual através de encontros virtuais e presenciais, nas quais utilizam a resistência como ferramenta para posicionarem afirmativamente nos dias atuais. E por fim, nas Considerações Finais apresentam-se as reflexões e resultados encontrados ao longo da construção dessa pesquisa.

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2 O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO SOCIAL E SIMBOLICA

Preta

Hoje eu acordei mais Preta Pus o turbante na cabeça

Forjadas na amarração aprendida recentemente e sai pela rua inocente, descrente

Uma Preta empoderada mete medo em muita gente.

São tão bonitas minhas tranças, mas me chamam de exótica, a cena fica caótica.

Hoje eu acordei tão Preta que arranquei dos curiosos olhares, se eu tivesse nascido em outro tempo me chamariam de ousada

Hoje eu sou mais uma ousada que não se limita ao alisamento e que prefere o afrontamento.

Hoje eu acordei chamativa minha gata

Passei no meio da multidão e um grupo me mirou na cara,

não sei se foi meu coque bem amarrado ou meu tom de marrom estampado, eu sei que me olharam.

Mas esse olhar de estranhamento não me deu constrangimento, lancei meu rosto ereto

Por que cabeça feliz não se abala Passei com minhas tranças na sua cara Hoje nem o seu "Oh morena, me abala".

(Andra Tls)

2.1 O lugar do cabelo da (a) negro (a).

A simplicidade dos versos da poetiza Andra11 nos convida a pensar sobre o cabelo e como este é importante para a construção dos sujeitos sociais em relação a sua negritude em suas múltiplas nuances. O sentido explícito nas palavras imprimem cicatrizes de uma outrora e um enfretamento de uma mulher que se reconhece como negra e por intermédio do cabelo ressignificado percorre caminhos que reconfiguram o mundo vivido, pertencimento e poder enquanto mulher negra que usa cabelo crespo. E para melhor apreender sobre a ressignificação em torno do cabelo crespo para as mulheres negras é preciso compreender o lugar social dos sujeitos negros.

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30 O cabelo é uma parte fenotípica do corpo humano. No contexto brasileiro, o cabelo da (o) negro (a) ora assume significados que possibilitam exclusão, violência, infeoridade ou tornando-se símbolo da identidade do povo negro por meio de lutas antirracistas de movimentos negros. Dessa forma, assim como a cor da pele, nariz, feições, o cabelo torna-se representação que é ressignificada alterando ou moldando a história que foi marcada por práticas e discursos discriminatórios para produzir discursos positivos aos corpos negros.

Em relação a esses significados, Lody (2004, p. 14-15) afirma que o cabelo é um identificador da pessoa e da cultura a que pertence. Segundo ele, historicamente, desde a Antiguidade o cabelo foi ressignificado por diversos povos que usavam-no para identificar mulheres e homens em seus diferentes papéis sociais, exigências sagradas e posicionamentos políticos. Nessa mesma direção, Gomes (2008, p. 233) expõe que “o cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo” e está na parte de cima do rosto, que dá visibilidade imediata na identificação do indivíduo. Pode-se perceber, por exemplo, que na Idade Média os homens livres distinguiam-se dos escravizados por usar cabelos longos, mas ao participarem das guerras, tinham que cortar os cabelos para adapta-los aos trajes de guerra. Ou no século XIX, os cabelos faziam base para o chapéu utilizado por mulheres e homens de várias classes sociais (LODY, 2004, p.16).

Para Perrot (2017), o cabelo é uma questão de pilosidade que está relacionado a mulher, a sedução feminina, a carne e a tentação. A autora sinaliza que uma mulher apaixonada pode dar de presente uma mecha de cabelo ao seu amante para ele guardar sobre o coração, como também perder o cabelo seria bastante sensível para as mulheres, pois é um sinal visível da feminilidade. Ainda segundo Perrot, o cabelo se torna objeto de tentação no mundo mediterrâneo e por isso as mulheres tinham que cobri-lo. Entra em ação o uso do véu com funções diversas, religiosas e civis, se tornando um sinal de dependência, pudor e honra (PERROT, 2017, p. 56).

Nos princípios sagrados, a saber, o cabelo está relacionado às rituais a partir de intervenções corporais. De acordo com Borges (2012), na cultura Hinduísta, por exemplo, o cabelo é utilizado em rituais antes do nascimento do indivíduo até a morte. Destacam-se, entre os rituais, aqueles que são feitos durante a gravidez e que são importantes para a definição do sexo do bebê ou para que a mãe possa evitar problemas durante a gestação. Outro rito é o corte do cabelo, que nessa mesma religião, é realizado nas crianças, tanto em menina quanto menino, e está ligado ao ritual de passagem para que a criança tenha um vida prospera, realizada sob minuciosos detalhes, como demonstra Borges (2012):

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31 [...] se realiza aos 3 anos de idade, cortando o cabelo da criança totalmente; pode também ser parcial, deixando-se apenas uma mecha ou tufo de cabelo no alto da cabeça. Note-se que para as meninas prevalecem os mesmos rituais, mas sem a recitação dos mantras. A cerimónia deve ser realizada num dia auspicioso, segundo o calendário hindu. À entrada da casa põem um recipiente com fogo, e na direção dos seguintes pontos cardeais colocam: [...] A mãe cobre o corpo da criança com roupa lavada, senta-se na erva kuśa, olhando de este para oeste do fogo, com as mãos voltadas para norte; o pai preside ao ritual com as quatro oferendas ao fogo; depois pega na vasilha da água com a mão direita e molha os cabelos do filho, olhando para a navalha e para o espelho; enquanto faz isso, vai recitando os mantras próprios, terminando por sentar-se voltado para este; no fim, colocam o cabelo cortado no recipiente do excremento, que por sua vez o pai ou outro membro da família levará para a floresta para ser enterrado. (BORGES, p. 23)

Podemos perceber, portanto, que o cabelo é uma construção simbólica social e importante para intervenções corporais. Entretanto, como já foi mencionado, o símbolo capilar pode significar pertencimento a um determinado grupo social fazendo os sujeitos partilhar de um movimento dinâmico para se reconhecer dentro e fora do grupo. Ou seja, “o cabelo é visto como um demarcador do lugar na escala social”, reitera Figueiredo (2002, p. 05). Nesse contexto, então como é visto o cabelo do negro brasileiro?

Vianna (1979, pp. 136) enumerou vários adjetivos para caracterizar a cabelo do negro como o feio da raça: “cabeça seca, cabeça fria, cabeleira de xoxô, cabelo de romper fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo, cabeleira teimosa, pão de leite, etc.”. Para Vianna, desde o período da escravidão, o cabelo dos homens e mulheres negras podia ser manuseado por diversas maneiras. Nos meninos era preciso cortar ou pelar a cabeça, pois podiam esconder “navalhas” dentro dos cabelos. Caso cortasse o cabelo até o couro cabeludo, eles passavam a ser reconhecidos como ladrões. As meninas teriam que cortar o cabelo por motivo de higiene para não proliferar piolhos, já que eram escravizadas e tinham que trabalhar forçadamente ao lado de outras crianças. Isso porque, segundo Vianna (1979, pp. 137), os seus donos não tinham paciência, tempo e não sabiam lidar com o cabelo duro, pois era um martírio; e apenas consentiam o uso do cabelo grande na adolescência, mas sob o torço a fim de esconder a humilhação de mostrar o cabelo.

Nessa mesma direção, Azevedo (1987) afirma que durante e pós escravidão a população negra continuou a passar por muitas humilhações e restrições por causa dos traços fenotípicos, incluindo o cabelo, numa sociedade dominada por uma pequena elite branca. Os fenótipos sendo marcas do antepassado africano, seriam motivos de exclusão desses sujeitos da sociedade. O corpo do negro continuava a ser tratado como desumano, sem sentimentos,

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32 sem alma, animalizado e o cabelo era identificador do que é ser negro. Azevedo ainda argumenta que

[....] na cor de sua pele, nos seus traços físicos, nos seus cabelos, os negros livres já de ha muitas gerações, mesmo miscigenados, frequentemente traziam impressas as suas origens africanas, as marcas de seus antepassados escravos, e assim ficavam entregues a possibilidade de serem tratados com desprezo e violências. Quanto aos libertos, isto e, os negros alforriados, as restrições a eles eram ainda mais explicitas, constando de vários itens de leis que desta forma contrariavam a disposição da Constituição de 1824 em aceita-los como cidadãos. (AZEVEDO, 1987, pp. 33-34)

A vivência da negação do corpo negro, sobretudo do cabelo, faz necessário dialogar com a vivência do racismo. De acordo com Carlos Moore (2007, pp. 243), o racismo vem desde a origem a história da humanidade, ancoradas nas especificidades fenotípicas. Com o movimento de migrações massivas que culminou em crises das relações humanas a partir de conflitos violentos em busca de territórios, permitiu surgir uma nova ordem da sociedade baseada em conceitos raciológicos. Diante disso, completa o autor, as conquistas pelos territórios e lutas pelos recursos de subsistência opondo duas ou mais populações distintas possibilitou a diferenciação de características reconhecíveis como as feições, a cor da pele e a textura dos cabelos (MOORE, 2007, pp. 246).

Portanto, o racismo foi a base para se pensar na exclusão da população negra. Segundo Gomes (2008), o racismo incide sobre os negros não somente pelo seu pertencimento, mas também pelos seus sinais diacríticos no corpo. Podemos destacar o Branqueamento como um conceito fundamental para analisar o racismo. Nesse sentido, pode-se destacar o branqueamento como uma das modalidades do racismo brasileiro. De acordo com Domingues (2002), o branqueamento foi um projeto de “clareamento fenotípico da população” e um dos aspectos ideológicos desse fenômeno era chamado de branqueamento estético, que constitui no modelo branco que era considerado como padrão regendo o comportamento e atitudes dos negros assimilados12. Com a imposição de um ideal da aparência estética branca, alguns indivíduos negros tentavam eliminar seus traços fenótipos: a cor da pele, afinar o nariz, textura dos cabelos alisados. Isso foi possibilitado, principalmente, a partir de tratamento estéticos, como os produtos de alisar os cabelos.

12 Para Domingues (2002), uma outra vertente da teoria do branqueamento pode ser por ordem moral e/ou social.

Ou seja, “ao assimilarem os valores sociais e/ou morais da ideologia do branqueamento, alguns negros avaliavam-se pelas representações negativas construídas pelos brancos. Era necessário ser “um negro da essência da brancura”. Por isso, desenvolveram um terrível preconceito em relação às raízes da negritude. Aliás, a recusa da herança cultural africana e o isolamento do convívio social com os negros da “plebe” eram duas marcas distintas dos negros “branqueados socialmente” (DOMINGUES, 2002, p. 576).

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33 Por meio da historicidade da imposição dos cabelos lisos e para percebermos as características e predominância dos padrões que influenciaram o cabelo crespo dos sujeitos negros no Brasil, é necessário situar os paradigmas capilares para seguirmos com a análise.

Quadro 1. Variáveis estruturantes dos paradigmas capilares

Cabelo Alisado Black Power Pluralidade Capilar Transição Capilar Surgimento Escravidão Intensificou-se no pós-abolição

Nos anos de 1960 Nos anos de 1980 Nos anos 2008 Predominância Pós-abolição / Contemporanei-dade Décadas de 70 e 80. A partir de 1980 até os dias atuais

A partir de 2008 até os dias atuais

Protagonismo

Mulher Mulher/Homem Mulher Mulher

Elemento de discurso

Semelhança com a textura dos cabelos lisos

Resistência, elevação da autoestima, a conscientização e manifesto. Liberdade Capilar Retorno ao cabelo Crespo Elemento de afirmação Símbolo de modernidade Símbolo de identidade e corpo negro Orgulho e qualidades por meio capilar em várias dimensões Símbolo estético-político entre mulheres negras

Fonte: Quadro elaborado pela autora mediante as análises feitas para a pesquisa, 2018.

Observamos no Quadro 1, que os paradigmas capilares não sobrepõe uns aos outros, entretanto, cada um possui especificidades relacionadas desde ao surgimento como elementos de discurso e afirmação. Dessa forma, a partir do pós-abolição o cabelo crespo foi ressignificado e rompeu com padrões racistas não somente no campo estético, mas também no social, cultural e político, como discutiremos no decorrer dessa pesquisa. Por meio desse contexto, questionamos: como foi a trajetória do cabelo crespo para afirmar positivamente o

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