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2. O CABELO DA (O) NEGRA (O) RESSIGNIFICADO: CONSTRUÇÃO

2.2. Dos movimentos negros ao cabelo em foco

Os movimentos da negritude, no século XX, possuem como questão norteadora a racial, tendo algumas características que o diferenciavam. Os grupos organizados lutavam contra o racismo e todas as suas ressonâncias. Essa luta se dava no campo político, social e cultural. Alguns com ênfase na educação, outros na saúde, ou no cultural, entre outros setores, mas todos os movimentos tinham o intuito de solidificar melhores condições de vida para a população negra seja por intermédio da teoria ou prática, construindo estratégias e resistência em diferentes conjunturas sócio-histórica brasileira e internacional. De acordo com Domingues (2009), por volta da década de 20 nos Estados Unidos da América o movimento da Negritude teve como papel norteador romper os valores da cultura eurocêntrica. Com o enfoque marxista, esse movimento buscou desconstruir modelos europeus da cultura e construir ideologias de afirmação de valores e símbolos da cultura na diáspora africana. Nas palavras do autor,

Na sua fase inicial, o movimento da negritude tinha um caráter cultural. A proposta era negar a política de assimilação à cultura (conjunto dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e dos valores transmitidos coletivamente) européia. O dilema para os africanos e negros da diáspora, assevera Franz Fanon deixou de ser “embranquecer ou desaparecer”. Até essa época, considerava-se positivo apenas os modelos culturais brancos que vinham da Europa. Para rejeitar esse processo de alienação, os protagonistas da ideologia da negritude passaram a resgatar e a enaltecer os valores e símbolos culturais de matriz africana. Como salienta Jean Paul Sartre, “trata-se de morrer para a cultura branca a fim de renascer para a alma negra (DOMINGUES, 2005, pp. 197)

Com o tempo, ainda na visão do autor, o objetivo do movimento se ampliou. Os seguidores passaram a protestar contra a hegemonia colonial e lutaram politicamente a favor dos povos da África e das diásporas, tornando-se o movimento da Negritude militante.

Foi nesse cenário que surgiu na década de 60 nos Estados Unidos movimentos políticos e identitários, protagonizados por jovens negros estadunidenses que fundaram o partido dos Panteras Negras. Esses jovens organizaram um movimento chamado de Black Power, que em tradução livre significa Poder Negro para reivindicar o fim das leis

35 segregacionistas. Desde época da escravidão, os negros libertos eram considerados como “cidadãos de segunda classe” e, até então, eram separados e impedidos de frequentar estabelecimentos, escolas, ônibus e até calçadas caso uma pessoa branca estivesse nesses ambientes. Dessa forma, em busca por direito civis, os adeptos do movimento Black Power valorizavam o afro-americano e traziam discurso de ordem, frases que elevavam a autoestima negra e quando havia confronto com a polícia, tinham posturas altivas, punhos cerrados e erguidos, e o cabelo com cortes arredondados que juntos, no qual chamamos na pesquisa de Paradigma Black Power, tornaram-se uma marca de afirmação da identidade e corpo negro.

Dentro desse contexto de reivindicações de direitos, os jovens negros dos Estados Unidos lançaram o movimento de afirmação “ser negro é lindo” com o slogan “Black is beautfull” (COUTINHO, 2010, pp. 53). Este movimento propôs desconstruir o que foi lançado pelo racismo ao afirmar que os fenotípicos negros, cabelo e traços faciais e corporais eram inferiores aos padrões europeus. Nessa perspectiva, bell hooks (2005, p. 2-3) relata que

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a). Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade (HOOKS, 2005, p. 2-3).

Ângela Davis, na figura 1, foi uma das líderes do partido Panteras negras. Por meio da imagem da Davis, permitiu-se analisar que os sujeitos que participaram desse movimento eliminaram as práticas de alisamento, ganhando evidência os penteados capilares. Salientamos, portanto, que esse movimento percussor foi relevante para uma luta antirracista, bem como a valorização da cultura e identidade negra , como também a afirmação dos traços físicos da população negra.

36 Figura 1- Ângela Davis no partido Panteras Negras

Fonte: Site Geledés: in https://www.geledes.org.br/afro-imagens-politica-moda-e-nostalgia-por-angela-davis/. Acessado em 12/02/2018

No contexto brasileiro, na década de 30 já havia movimentos negros organizados. Questões que perpassam pelo social, cultural e político foram nortes fundamentais para os primeiros grupos, entretanto, houve alguns entraves em relação ao movimento da negritude da sociedade abrangente. Por exemplo, em 1931 foi fundado a Frente Negra que difundia o fortalecimento político e cultural dos negros. Essa organização lançou-se como partido político em 1936 e, de acordo com Munanga (1999, pp 97), “estavam preocupados em dar ao negro uma nova imagem, semelhante àquela proposta pela ideologia de "democracia racial". Entretanto, afirma o autor que os adeptos desse movimento foram vítimas do próprio racismo, pois tinham o intuito de se transformar para serem aceitos pelos brancos e ressalta que havia contradições e por isso

[...] a educação, a formação e a assimilação do modelo branco forneceriam as chaves da integração. Até o branco mais limitado não hesitaria em abrir a porta ao negro qualificado, culto e virtuoso. A maioria desses movimentos organizava intensivas campanhas de educação, dando ênfase ao bom comportamento na sociedade. Alguns fizeram até publicidade de cosméticos destinados a alisar os cabelos e excluíram do meio cultural negro qualquer manifestação de origem africana considerada como inferior. A referência era o modelo proposto pela sociedade dominante, isto é, branca. Daí a ambigüidade desses movimentos que, embora protestassem contra os preconceitos raciais e as práticas discriminatórias, alimentaram sentimentos de inferioridade perante sua identidade cultural de origem africana. (MUNANGA, 1999, pp. 97)

37 Já nos anos 40, Domingues (2009) relata que o movimento da negritude ocorreu principalmente através do Teatro Experimental do Negro (TEN), que adquiriu projeção atuando em vários espaços e tinha como questão norteadora a afirmação dos valores negros (DOMINGUES, 2009, p. 204-205). Não obstante, assim como ocorreu com o Frente Negra, Domingues, citando Costa Pinto, expõe que a negritude que ocorreu no Brasil não passava de um mito (DOMINGUES, 2009, p. 206). Apesar de ter ocorrido no solo brasileiro

[...] como expressão de protesto da pequeno-burguesia intelectual negra (artistas, poetas, escritores, acadêmicos, profissionais liberais) à supremacia branca. Em outras palavras, a negritude foi uma resposta dos negros brasileiros, em ascensão social, ao processo de assimilação da ideologia do branqueamento , mas que, [...] jamais deram uma formulação “explícita e sistemática” ao conceito, ou seja, em nenhum instante transformaram a idéia vaga e difusa de negritude em propostas concretas ou, em última instância, traduziram a negritude em um projeto mais geral para resolver o problema do negro brasileiro (DOMINGUES, 2009, p. 205- 206).

Na década de 70, enquanto acontecia nos Estados Unidos o movimento Black Power, no Brasil estava reaparecendo vários movimentos sociais que retomaram a bandeira de luta dos movimentos que mencionamos anteriormente. Com influências internacionais que buscavam direitos, igualdades e valorização do negro, os movimentos negros traziam uma nova forma de se pensar a negritude. O Movimento Negro Unificado (MNU), por exemplo, surgiu no ano de 1978 no intuito de ser uma organização para representar o povo negro em favor de lutas e denúncias da dita “democracia racial”, que oprimia e perseguia o negro.

38 Figura 2 - Carta de princípios do MNU

Fonte: https://movimentonegrounificadoba.wordpress.com/

Na sua fundação, a Carta de princípios do MNU destacada na figura 2, os membros do movimento esperavam, de fato, uma verdadeira democracia racial, diferente da que vigorava no Brasil. Dessa maneira, a MNU reconhecia a discriminação racial e resolveu lutar contra esse mito. O que queremos chamar a atenção nessa Carta seria o enunciado no qual enfatizam que “entendendo como negro todo aquele que possui na cor da pele, no rosto ou nos cabelos, sinais característicos dessa raça”. O MUN escolheu características do fenotípico do negro como forma inicial de luta e de legitimação da identidade negra. Então, por meio desta identificação do sujeito enquanto sujeito negro para positivar o corpo, esse posicionamento almejou desenvolver um sentimento e pertencimento da valorização estética, social e cultural do negro.

39 Todos os movimentos descritos acima foram fundamentais para refletirmos sobre os caminhos percorridos da abordagem dos traços físicos do negro. As lutas contra o racismo, segregações, resíduos da herança escravista levaram de fato para o sujeito negro construir uma autoimagem positiva, sobretudo quanto diz respeito à estética do cabelo crespo. Todavia, como investigaremos no decorrer desse estudo, houve algumas limitações que levaram diversas mulheres a voltar e/ou continuar o alisamento capilar. Hooks (2005, p. 3) tem uma explicação para tal fenômeno

[....]quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.

Com a intenção de suplantar essas limitações, no Brasil, influenciados pelos movimentos sociais internacionais e nacionais, surgiu a revista RB na década de 90 do século XX e tinha como propósito abordar questões raciais, sociais e culturais do negro. A revista assumiu um papel importante no âmbito midiático que reflete sobre a valorização do negro em várias esferas tendo como público-alvo, a comunidade negra, principalmente as mulheres, pois traziam reportagens direcionadas ao público feminino. Dessa forma, no tópico a seguir iremos discutir sobre como a RB se tornou uma das mais relevantes do meio midiático dos anos 90 no Brasil a abordar sobre o cabelo e identidade do negro de forma positiva, trazendo questões que exaltavam a beleza capilar da mulher.