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3. SOLTO, ARMADO E NATURAL: OS PARADIGMAS DOS CABELOS

3.4 Breve reflexão sobre o contexto histórico

Era início do ano 2000. Para a população negra, o início do século XXI foi marcado por implementações das Políticas de Ações Afirmativas no Brasil. As Ações visavam oferecer igualdades para os grupos que eram excluídos e em processo de discriminação na educação, no sistema de saúde e no mercado de trabalho. As ações afirmativas constituíram como uma das estratégias para combater a desigualdade racial e visava ser uma ponte para inserção de determinadas populações em setores da vida social, igualdades de direitos e oportunidades (DOMINGUES, 1998).

Para a população negra do Brasil, foram projetadas medidas de curto, médio e longo prazo, por exemplo, na educação como as Cotas na Universidade, emprego na quantidade de contratação nas empresas, entre outras. Mesmo com o auge no início no século XXI, as ações afirmativas tem um extenso histórico de reivindicações pelos movimentos sociais. Segundo Medeiros, na década de 40, por exemplo, por meio da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, Abdias Nascimento reivindicava no Manifesto à Nação Brasileira,

Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares (MEDEIROS, 2005, p. 125)

Nos anos 80, Abdias Nascimento na Câmara Legislativa propôs um Projeto de Lei no 1.332, que dispunha de uma ação compensatória na qual visava implementar o princípio da isonomia social do negro. De acordo com Medeiros, o projeto não chegou a ser aprovado, mas as medidas direcionadas para os negros no emprego público e privado e para a educação foram contempladas e criadas no Governo Fernando Henrique, e posteriormente também instituídas pelo Governo Lula (MEDEIROS, 2005, p. 127).

93 A pesquisadora Ribeiro (2013) ressalta que na conjuntura das aplicações das políticas publicas vieram para contestar todo o abandono e violência em relação a história dos negros desde a escravidão brasileira, sobretudo com a e coisificação e invisibilização das histórias e heranças africanas. Ribeiro (2013) ainda afirma que o Movimento Negro e a organização de mulheres negras lutaram para colocar a questão racial na esfera pública para colocar a história dos negros como cidadãos em um sentido diversificado no conjunto amplo da sociedade. Para a autora,

[...] não restam dúvidas de que nessas três décadas houve um processo de institucionalização das políticas de igualdade racial no Brasil, análises críticas são feitas em relação ao alcance e à consolidação das mesmas. Mas, o Movimento Negro e a organização de mulheres negras, a partir de suas formulações e proposições para o desenvolvimento das políticas de promoção da igualdade racial, ao defender os direitos e uma efetiva democracia racial, aproximam-se das formulações de Nancy Fraser, ao considerar o reconhecimento e a redistribuição como estratégias para conquista de democracia e justiça social e racial (RIBEIRO, 2013, p. 238).

Nessa perspectiva, Ribeiro (2013) destaca a importância sobre a trajetória da Organização das mulheres negras brasileiras desde os anos 1980 nas articulações autônomas, governamentais e multilaterais que traçou um conjunto de propostas e formulações que visavam instituir políticas, programas e ações de enfrentamento do racismo e sexismo que incorporavam a perspectiva de raça de políticas públicas direcionadas às mulheres. E essa luta influenciou, segundo Ribeiro (2013), os jovens negros na atualidade que reagiram a invisibilidade e afirmaram-se racialmente como protagonismo social, cultural e político na sociedade.

Portanto, é no cenário das Ações afirmativas, em especial por meio das Cotas que muitos sujeitos negros enxergaram a si e aos outros, com características positivas. Ou seja, de acordo com Braga (2008), as ações afirmativas assumiriam um papel importante no Brasil que para identidades que ratificava positivamente as diferenças e combateu o racismo por meio de um discurso de orgulho negro (BRAGA, 2008). É o que presenciamos por meio da narrativa de Angélica,

Eu lembro também que quando eu cheguei na Universidade, a da Sergipe, foi pela cota. Eu lembro que foi pela cota de estudantes oriundos de escolas públicas e tinham que ser “não-brancos”(risos). Ou seja, tinha que ser negros. Eu marquei essa opção. Ao entrar por essa opção, e tomar conhecimento do contexto social do negro e desse negro dentro na Universidade, muita coisa mudou em mim. Além disso, nessa época eu não tinha feito a transição. Ao entrar na Universidade, eu comecei a perceber pessoas querendo a se assumir. Eram poucas pessoas, mas tinham. Isso foi em 2010 né. De 2010 até 2012 ocorreram várias inquietações em mim. Eu comecei a entender o que seria ser negra e a me enxergar como negra, tanto mim, quanto em outras pessoas. Optar pelas cotas, entender nosso contexto e me enxergar como tal, foi um passo importante. Só que teria que ir além. Estava faltando algo, ou melhor, faltava em mim algo para me enxergar como negra. E a primeira coisa a me

94 incomodar, foi o cabelo. Em 2012, além de estar cansada de usar química no meu cabelo, decidi começar a minha transição. 6 meses antes eu já havia feito uma tentativa e não consegui né, porque o processo da transição é muito doloroso . Por você se sente feia, fica com duas texturas de cabelo. Eu só estava acostumada com uma. Fica insegura. 6 meses depois eu estava passando pela transição, isso em setembro de 2012. [...] Aqui na Universidade foi um ambiente em que não me senti estranha. Foi um ambiente em que me senti a vontade para poder assumir meu cabelo. Na Universidade existia uma diversidade de pessoas. A Universidade foi um ambiente propicio e não lembro de ter me sentido mal, ou de ter sofrido racismo por causa do cabelo e se aconteceu, foi algo bem velado. Por isso eu digo, que a opção das cotas me fez inquietar e voltar ao cabelo natural me deixou mais eu mesma (Angélica O. Nascimento, entrevista concedida em 16/11/2017).

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O primeiro ponto que observamos no relato de Angélica a opção pelas cotas foi relevante para começar a pensar em sua negritude, e esse primeiro passo deu-se a partir da mudança capilar. Olhar-se enquanto negra era ter seu cabelo natural. A entrevistada reconhece que entrar na Universidade e optar pelo sistema de cotas foi o primeiro passo a sua autoafirmação. O cabelo, portanto, foi colocado com símbolo de reconhecimento da negritude, surgido por meio das cotas.

Esse fator foi recorrente nas análises abordadas por Santos (2005). Ao analisar o projeto chamado Passagem do Meio, ação afirmativa desenvolvida na Universidade Federal de Goiás que visava estimular a permanência e incentivo aos estudantes de graduação, percebeu as discussões sobre as relações raciais e desigualdades, proporcionaram mudanças profundas na vida acadêmica e pessoal dos alunos. Antes de ingressarem apenas três alunos se autodeclararam negros, isso devido à militância no movimento negro antes da Universidade. Contudo, na metade do curso, o projeto já havia proporcionado aos estudantes uma mudança radical na percepção histórica social e racial, e afirmavam-se como negros e enxergando seus traços fenótipos. Percebe-se então que o reconhecimento oriundo das ações afirmativas perpassam sempre pelas a apreensão dos traços físicos, cor da pele, nariz, cabelo (SANTOS, 2005).

95 Figura 29 - Mulher negra e as cotas

FONTE: Facebook/CCSaa

Dois pontos chamam atenção no relato da integrante do grupo CCSaa, na figura 29, o primeiro é sobre a necessidade de mulheres negras adentrar a Universidade. A mesma afirma que apesar de ter dificuldade da ocupação desse espaço, oriundo do racismo, é necessário ocupar a Academia e um dos caminhos seria cotas raciais. O segundo é que ao começar sua mensagem “ser negra, crespa e mulher”, a interlocutora faz uma espécie de “convocação” no grupo ao associar que além de ser mulher, negra, ter a característica do cabelo crespo seria relevante para se pensar as mulheres negras na Universidade.

Para Bernandinho (2000), falar das ações afirmativas é abranger para uma constituição de identidade negra no Brasil. Para o autor, essa constituição se dá para além do perceber os referenciais positivos, a construção da identidade negra se faz necessário quando o outro- diferente não a reconheça de forma negativa e não isoladamente. Dessa forma, as ações afirmativas permitiram, sobretudo por meio das Cotas na Universidade, redefinir a imagem do

96 grupo em questão. Nesse sentido, o cabelo torna-se, nesse processo de efetivação das ações afirmativas no Brasil, um ponto significativo na construção positiva enquanto reconhecimento da negritude.

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