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não é o crime em si, ou a capacidade de delinqüir das mulheres que interessa ao regime penitenciário, mas o dever de segregá-las da sociedade, quando fo- rem condenadas, dando-lhes a assistência compatível com seu sexo. Não se plei- teia para elas a impunidade, ou o deleite, ou a inércia na prisão, mas um re- gime de execução da pena que se adapte à sua condição de mulheres. Assim, o que se deve fazer não é transformar em paraíso as prisões destinadas às mulhe- res que matam, roubam, injuriam, incendeiam, produzem ferimentos e prati- cam crimes como os homens, tendo a consciência dos seus atos, na medida em que a ciência admite a auto-determinação humana.

Lemos Britto, APB, 1942b, p.311

A citação de Lemos Britto transcrita acima traz elementos importantes para a análise dos primórdios dos estabelecimentos prisionais femininos nas déca- das de 1930 e 1940. Isso porque, apesar de o autor deixar claro que o “regime pe- nitenciário” se preocupava com a necessidade de segregação daquelas sentenciadas

com a privação de liberdade, há preocupação explícita com o tratamento diferen- ciado voltado para as mulheres, que deveria ser “compatível com seu sexo”. A fala oficial do presidente do Conselho Penitenciário remete a uma austeridade institu- cional legal que considera, em primeiro lugar, o cumprimento de uma ordem: re- tirar da sociedade os condenados por crimes. Mas a separação por sexo é uma for- ma de individualizar o cumprimento da pena, o que vai além da mera segregação. Sendo assim, não apenas a segregação estava em jogo, mas a forma como esta se daria. Afinal, o que seria atentar para o sexo e colocar em prática um regime com- patível com este?

Lemos Britto logo refuta as regalias geralmente associadas ao “sexo frágil” – as mulheres não seriam tratadas como delicadas criaturas, recebendo tratamen- to brando e punição pró-forma. Sua colocação denota que não haveria uma leniên- cia institucional, em se tratando de prisioneiras, mas uma adequação das regras pri- sionais às características próprias do sexo feminino. O que seria atentar para o sexo feminino em termos institucionais? Quais providências seriam tomadas pela insti- tuição para abrigar corretamente as mulheres? Quais objetivos deveriam ser perse- guidos nesses espaços? Haveria um projeto de reinserção específico para mulheres? Se sim, em que consistiria? Essa individualização do tratamento destinado às mulhe- res, da qual fala Lemos Britto, deveria ser observada desde a instituição de trabalho adequado para o sexo feminino, à criação de creches para os filhos das sentenciadas, passando pela arquitetura prisional, os uniformes, a administração.

Na revista A Estrela há menção a uma visita surpresa feita pelo vereador Eli- zeu Alves à Penitenciária Central do Distrito Federal. Ao deixar por escrito suas im- pressões, o vereador frisou que as mulheres deveriam ser tratadas de maneira bem mais diferenciada do que pretendiam os penitenciaristas, colocando em xeque a vi- são de igualdade jurídica entre os sexos. A resposta d’ A Estrela ao vereador ressal- ta a igualdade de todos perante a lei, e está afinada com o discurso de Lemos Britto transcrito acima, pois defende o tratamento diferenciado apenas na medida em que for necessário. Segundo a revista:

naturalmente que a mulher, mesmo presa, é mulher! Dá-se-lhe, portanto, o tratamen- to que melhor se adapte ás condições especialíssimas do sexo, dispensando-as de deve- res mais rigorosos exigidos aos condenados do sexo oposto. Somos testemunhas de que a mulher presa, na penitenciária ou no anexo de Bangu, recebe toda a assistência cari- nhosa que sua constituição física e moral condiciona. Não é razoável que o senhor Eli- zeu exija mais, argumentando com a Constituição da República, cuja perfectibilidade é baseada, principalmente, na igualdade de direitos, seja para Eva, seja para Adão... (AE, set/out de 1951, p. 34)

Tanto no discurso de Lemos Britto quanto na resposta de A Estrela é pos- sível notar, também, uma neutralidade que não está presente quando os penitencia- ristas tratam da mulher criminosa. Quando em pauta as novas instituições, as falas de promiscuidade, os escalonamentos de diferentes tipos de criminosas, as menções às corrigíveis e incorrigíveis e às perigosas ou vítimas do acaso desaparecem, ceden- do lugar a um discurso institucional que homogeiniza suas internas, transmitindo a ideia de que, uma vez na instituição, todas são iguais – todas são mulheres.

O crime em si aparece, na citação de Lemos Britto, como um ato preesta- belecido que pode ser cometido tanto por homens quanto por mulheres, sujeitos de suas razões e responsáveis por seus atos. O jurista retoma o paradigma clássico se- gundo o qual o crime seria um ato de livre arbítrio, devendo o agente responder por ele de modo a pagar sua dívida para com a sociedade. A autodeterminação huma- na é um conceito tão metafísico como o próprio livre-arbítrio, e seu uso denota o quanto a escola clássica de Beccaria não havia abandonado de vez a prática prisional e, como ressaltado no primeiro capítulo, a própria legislação penal. Nesse contexto, cabe questionar, se no cárcere para mulheres havia lugar para positivismo crimino- lógico inaugurado por Lombroso, ou se este aparecia com maior potência na deli- neação da figura delinqüente.

É interessante notar que o Direito Penal Clássico e a Antropologia Crimi- nal estavam presentes no CP de 1940, bem como nos discursos de penitenciaristas e operadores do direito, tencionando em pontos chave, como aqueles em torno da

responsabilidade penal do sujeito delinquente, dos contrastes entre o determinismo biológico e o livre-arbítrio metafísico, e das propostas de estabelecimentos adequa- dos para o encarceramento dos sujeitos delinqüentes. Há um paradoxo chave entre as duas Escolas: enquanto o Direito Penal Clássico privilegiava o sujeito como centro decisório, prevalecendo a ideia de que o sujeito é senhor das suas vontades, e quem decide praticar o ato criminoso, a Antropologia Criminal pensava o sujeito como um doente, autor do crime porque vítima de uma patologia.

No entanto, quando em análise a construção dos cárceres femininos no país, é possível apontar uma convivência entre esses pensamentos criminológicos de ma- neira menos paradoxal do que se poderia supor. Isso porque, cada um deles, a seu modo, prevê o cárcere como espaço de cura, seja do corpo, como no caso dos antro- pólogos criminais, seja moral, como no caso dos clássicos. Para o iluminismo a pri- são era um espaço para remissão, expiação da culpa, arrependimento, local para os condenados repensarem suas vidas, seu crime, para “curar suas almas”; para a Antro- pologia Criminal, a pena era a cura da doença, da degenerescência. Fazendo dialoga- rem essas duas propostas cabe a seguinte questão: por que cuidar da alma difere do cuidar do corpo? Até que ponto essas propostas não são mais convergentes que pa- radoxais? Por que é paradoxal pensar a cura moral e a cura física? Cura como algo que deve ser retomado em sua normalidade. A reflexão, a cura, a higiene, a discipli- na parecem não deixar de ser elementos redentores. O espaço da prisão como espa- ço de redenção e recomposição de mulheres para ocupar um lugar social atribuído ao feminino mesclava ensinamentos dessas escolas, em uma peculiar tarefa de curar corpos e almas, normalizando-os dentro de um padrão de feminino.