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Preocupação constante desde a década de 1920, o encarceramento femini- no estava, por razões diversas, cada vez mais na ordem do dia para os penitenciaris- tas. Inserido em um contexto mais amplo, em uma época de intensa ebulição peni- tenciária, como foram as décadas de 1930 e 1940, quando reformas prisionais eram

pensadas e executadas, o Conselho Penitenciário do Distrito Federal, bem como os Conselhos de alguns estados, tornaram-se órgãos ativos. A institucionalização do país acelerava-se; todo o sistema penal se reformulava haja vista a promulgação do CP em 1940 e do CPP em 1941; havia um projeto de cárcere modelo bem defini- do, que previa a pena individualizada com a função principal de ressocialização. O cárcere para mulheres surgiu, assim, como outras instituições, sob a égide de com- por um novo tempo penitenciário.

O CP de 1940 e os debates anteriores a ele contribuíram especialmente para esse “entusiasmo” penitenciário, uma vez que o texto do Código previa, em diferen- tes momentos, a individualização da pena, bem como a tratava como “defesa social humana, mas eficiente e justaposta, através de sanções reparadoras, porem, intimi- dantes” (APB, 1940, p. 32). Roberto Lyra, membro da comissão revisora do Código Penal, ressalta em artigo dos Arquivos Penitenciários do Brasil que a legislação penal não pode se pautar pelos estados atrasados, mas sim deve “nivelar pelo alto, forçan- do o avanço”. Nas palavras do jurista, “sempre que se cogita a elaboração de um Có- digo Penal digno do Brasil, os descrentes lembram o desaparelhamento penitenciário e a falta de magistratura especializada, sobretudo nos Estados” (APB, 1940, p. 29). Para Lyra uma legislação que forçasse a reforma penitenciária era positiva, a medida que possibilitaria ao Brasil finalmente começar a investir na modernização carcerária. Em especial o parágrafo 2º do artigo 29 do CP de 1940 acelerou a constru- ção de estabelecimentos prisionais para mulheres, uma vez que o texto era taxativo ao afirmar que “as mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada da penitenciária ou prisão comum, ficando sujeita a trabalho interno”. A partir da promulgação do CP, o estado da Federação que não atentas- se para o aprisionamento feminino, criando um novo espaço para reclusas, ou ade- quando um já existente, estaria agindo contra a lei.

Soma-se a isso a pressão dos penitenciaristas e do Conselho Penitenciário do Distrito Federal que, há décadas, chamava a atenção para a situação carcerária fe- minina. As razões dadas para a separação entre homens e mulheres eram inúmeras, sendo as principais a promiscuidade sexual em ambientes nos quais conviviam jun-

tos; a precariedade dos espaços que sobravam para as mulheres nas penitenciárias e cadeias; e a promiscuidade das próprias detentas entre si, pois além dos possíveis envolvimentos sexuais entre elas, e de estarem juntas condenadas e mulheres aguar- dando julgamento, eram presas na mesma cela “mulheres honestas” e as “crimino- sas mais sórdidas”.

O atraso do Brasil em relação a outros países latino-americanos que já ti- nham seus presídios femininos também representava mais uma pressão importan- te: o Chile, desde 1864, delegou o cuidado das primeiras casas de correção voltadas para as mulheres à Congregação do Bom Pastor d’Angers; o Peru o fez em 1871 e a Argentina em meados da década de 1880. A proximidade dos penitenciaristas na- cionais de seus pares latino-americanos permitia um intercâmbio de idéias e de ex- periências sobre a situação prisional dos países, em especial nos congressos de crimi- nologia. No Segundo Congresso Latino-Americano de Criminologia, ocorrido em 1941, por exemplo, temas como reforma prisional atendendo aos princípios demo- cráticos; união criminológica latino-americana; importância do serviço social como colaborador indispensável das ciências penais; adoção de pena de tempo indetermi- nado em casos de periculosidade extrema do apenado; substituição de penas priva- tivas de liberdade de curta duração por outras medidas; tratamento aos perversos conforme sua periculosidade; superação da ideia de descendência criminal; inclusão da psicanálise entre os sistemas de estudo, repressão e profilaxia do delito; e cumpri- mento da pena privativa de liberdade em local higiênico, com possibilidade de tra- balho e disciplina foram centrais nas discussões desse foro. Publicadas no Arquivos Penitenciários do Brasil do 1º trimestre de 1941, tais conclusões são representativas do debate penitenciário latino-americano da época, uma vez que resumem as prin- cipais discussões ocorridas durante a Conferência, ressaltando os arremates comuns aos quais chegaram os países em relação aos assuntos em pauta. É possível notar, pe- los temas, uma preocupação geral em superar práticas e classificações ultrapassadas, e investir em uma modernidade punitiva.

Diante desse cenário, nos últimos anos da década de 1930 e nos primei- ros da década de 1940 surgiram os primeiros estabelecimentos prisionais brasileiros

para o recolhimento exclusivamente de mulheres. Tendo sido alguns estabelecidos em edifícios adaptados para recebê-las, e outros instalados em prédios construídos para tal fim, é possível verificar que as semelhanças entre essas instituições são maio- res que as suas diferenças. A administração das Freiras da Irmandade do Bom Pastor d’Angers, as funções esperadas da pena, o tipo de trabalho realizado pelas detentas e o cotidiano prisional são alguns exemplos de similitude entre os primeiros presí- dios femininos. Nas manifestações de penitenciaristas e visitantes a respeito desses estabelecimentos, é possível apontar impressões muito parecidas mesmo em se tra- tando de presídios distintos, o que aponta para uma sintonia entre essas instituições.

No ano de 1937 foi criado, na cidade de Porto Alegre, o Reformatório de Mulheres Criminosas, que posteriormente passou a ser chamado Instituto Feminino de Readaptação Social, primeira instituição prisional brasileira voltada especificamen-

te para o aprisionamento de mulheres76. Apesar de não ocupar edifício construído

especificamente para abrigar mulheres presas, mas um “prédio senhorial” no centro da cidade, foi a primeira vez que mulheres foram encarceradas no Brasil em espaço totalmente apartado do presídio masculino. Visto como um grande passo no sentido da modernização prisional no estado, o Instituto, de acordo com matéria publicada no jornal gaúcho Correio do Povo, e reproduzida nas páginas dos Arquivos Peniten- ciários do Brasil, permitiu que as “condições de vida na prisão [fossem] mais com- patíveis com os modernos princípios da Criminologia e com a ‘velha’ dignidade hu- mana”. A matéria ressalta, ainda, que:

desde 1937, toda mulher condenada pela justiça do Rio Grande do Sul cumpre a pena que lhe foi imposta nesse Reformatório. Ainda não é a solução, mas foi um largo passo no caminho de obstáculos que se deve percorrer até conseguir-se a integral solução do problema penitenciário do Estado (APB, 1942d, p. 259).

76 No decreto estadual Nº 7601 de 05 de dezembro de 1938, publicado pelo Governo do Rio Grande do Sul, com o objetivo de “dar nova organização à Polícia de Carreira do Estado do Rio Grande do Sul” há menção explícita, em seu artigo 108, ao Reformatório de Mulheres Criminosas, que deveria estar subordinado à Direto- ria de Presídios e Anexos.

Já em 1941 o decreto 12.116 de 11 de agosto instituía o Presídio de Mulhe- res de São Paulo, que nasceu, assim como o Instituto do Rio Grande do Sul, de ma- neira improvisada, pois foi instalado na antiga residência dos diretores no terreno da Penitenciária do Estado, no bairro do Carandiru. Apesar de ocupar casa já exis- tente, o decreto previa que o imóvel fosse “previamente adaptado” de modo a aco- lher apenas “mulheres definitivamente condenadas”.

Em 08 de novembro de 1942 foi inaugurada no Rio de Janeiro a Penitenci- ária de Mulheres do Distrito Federal, criada por meio do decreto 3.971, de 24 de de- zembro de 1941. Construída especialmente para ser um estabelecimento prisional feminino, ergueu-se em terreno que, segundo informação presente nos Arquivos Pe- nitenciários do Brasil um (...) “industrial e capitalista Brasileiro, conhecido por seus gestos de filantropia, doou, como presidente da Companhia Industrial do Brasil, em uma vasta área de terras planas, situada num dos melhores pontos de Bangu, na Ca- pital Federal” (APB, 1940, p.267). Foi construída e inaugurada juntamente com o Sanatório Penal para Tuberculosos. Em discurso proferido na ocasião da inauguração desses dois estabelecimentos, Lemos Britto, então presidente do Conselho Peniten- ciário do Distrito Federal, frisou que, ao abrir

(...) a todos os presentes as portas das penitenciárias de mulheres e do sanatório penal para tuberculosos onde, sem luxo, que seria irritante, e sem demasias incompatíveis com a função social da pena, o Estado poderá aparecer perante a sociedade como uma orga- nização que não foge a seus deveres, e que para cumpri-los não rompe com os sentimen- tos de simpatia e de solidariedade humana (APB, 1942d, p.10)

Ao mencionar a importância das inaugurações da Penitenciária de Mulhe- res e do Sanatório Penal, Lemos Britto retoma o passado para mostrar a “evolução penitenciária” que estava em curso no país e, em especial, na Capital Federal. Em suas palavras:

para dar o significado destes estabelecimentos basta realçar o que era até ontem, dia 08 de novembro de 1942, na capital do Brasil, o alojamento das mulheres criminosas pos- tas sob a tutela e proteção do Estado, e o que tem sido, através de mais de um século da nossa vida como nação soberana, o tratamento dispensado aos condenados; ali, uma de- pendência de rés do chão, acanhada, úmida e mal iluminada de um presídio de homens, em condições tais que todo devotamento e boa vontade dos respectivos diretores pouco podiam fazer para lhes suavisar os sofrimentos, sofrimentos mais para lamentar quando se tratavam de mulheres de boa condição social atiradas à promiscuidade daquela inad- jetivável prisão (APB, 1942d, p.10).

Menções a outros estabelecimentos femininos que deveriam funcionar em um futuro próximo aparecem nos documentos pesquisados. No ano de 1939 o de- creto 11.214, de 06 de Fevereiro, que organizava o serviço penitenciário do Estado da Bahia, previa a criação de um reformatório para mulheres criminosas, que deveria funcionar nos dois primeiros pavilhões de oficinas da própria penitenciária. O bai- xíssimo número de mulheres condenadas no estado da Bahia, bem como a falta de dinheiro, justificavam o aproveitamento de espaço no prédio para o estabelecimen- to do reformatório (APB, 1942d, pp. 309 e 310). A principal exigência era que hou- vesse a certeza de completa separação entre o espaço ocupado pelos homens e pelas mulheres. A solução temporária previa que:

o reformatório de mulheres ficará, pois, sob a mesma direção da detenção, designando-se apenas algumas guardiãs encarregadas dos serviços presentemente a cargo dos homens, na promiscuidade do indefensável presídio em que se encontram juntamente com os cri- minosos do outro sexo. Esta é a única solução viável, dadas as possibilidades financeiras do Estado, a não ser que se pudesse apelar para alguma ordem religiosa, em que as irmãs tomassem aos seus cuidados, como acontece na República Argentina e em outros países, as referidas mulheres, postas sob ação da justiça, mediante certas condições e subvenções pagas pelos cofres públicos (APB, 1941b, p.324).

Já nos Arquivos Penitenciários do Brasil do 2º e 3º trimestre de 1941, apare- ce uma menção à inauguração, no Presídio de Pernambuco, de um pavilhão desti- nado às mulheres criminosas que recebeu o nome de “Prisão de Mulheres” (p. 144). Roberto Lyra, em artigo de 1940, cita inúmeras instituições prisionais em constru- ção no país. Dentre elas, especificamente sobre as femininas, realça, além da já men- cionada Penitenciária de Mulheres, em Bangu, a Penitenciária para Mulheres de San- ta Catarina. Segundo o autor todas essas instituições em construção garantiriam a execução correta do novo CP.

A partir do momento em que os estabelecimentos femininos saem do papel, algumas perguntas devem ser feitas para buscar compreender como estas instituições se encaixavam em um cenário político, criminológico e social específico do momen- to em questão. Como se ergueu o cárcere para mulheres em um período no qual se esperava posturas específicas de acordo com normativas de um “dever ser” femini- no? Em que medida os tipos de criminosa delieneados no período eram contem- plados por um cárcere voltado para a sua correção? Em que consistia essa correção?

A CONGREGAÇÃO DE NOSSA SENHORA