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CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Pesquisa documental

A ausência de uma etnografia nos moldes consagrados e tão detalhadamente tratados por Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental não significa o aban- dono de uma metodologia fundamental à Antropologia, mas uma releitura do que seria a observação participante aplicada a fontes documentais. Malinowski privile-

giava um estudo sincrônico das culturas, um registro do momento vivido. A valo- rização do “presente etnográfico” estava na ordem do dia da Escola Funcionalista, sendo fundamental a observação do funcionamento social em tempo real e sua des- crição minuciosa. Era necessário vivenciar o cotidiano tribal para então cumprir o objetivo principal da pesquisa etnográfica que, segundo Malinowski seria: “(...) o de apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão do seu mundo” (MALINOWSKI, 1984, pp. 33-34).

Giumbelli, ao questionar a indispensabilidade do trabalho de campo para a estruturação da Antropologia, ressalta que “(...) ‘o objetivo fundamental da pes- quisa etnográfica’ deve ser buscado a partir de uma variedade de fontes, cuja perti- nência é avaliada pelo acesso que propiciam aos ‘mecanismos sociais’ e aos ‘pontos de vista’ em suas ‘manifestações concretas’”. O autor defende a tese de que a análise documental pode vir a ser mais importante que o trabalho de campo à medida que, em determinadas situações, documentos dizem mais ao antropólogo que a experiên- cia in loco. Assim, ao explicitar as razões que o levaram a privilegiar a pesquisa do- cumental em detrimento da pesquisa de campo em determinado trabalho, justifica sua escolha: “a fonte textual não ganha privilégio por oposição ao trabalho de cam- po, mas pela razão de estarem nela inscritas as informações metodologicamente re- levantes e socialmente significativas” (GIUMBELLI, 2002, p. 102).

Ainda para Giumbelli, “se na observação participante, o pesquisador deve deixar seus ‘nativos’ falarem, no uso das fontes textuais ele deve lidar com o que já foi dito” (GIUMBELLI, 2002, p. 102). Nesse sentido, parte-se do pressuposto que para a Antropologia, como para a História e as demais Ciências Sociais, um documento não possui status de verdade, mas é passível de interpretação e de avaliação, dado que é uma produção humana, datada e inserida em um determinado contexto social, que certamente reflete aquilo oficialmente registrado. Dessa forma, o documento adquire o status de um informante que, de alguma maneira, dialoga com o pesquisador, per- mitindo antes uma relação de interpretação e apreciação crítica que uma mera cons- tatação de fatos oficiais. A análise documental, nesses termos, pode ser considerada uma meta-análise, pela qual se observa algo que é fruto de reflexões anteriores.

A pesquisa de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Sortilégio de Saberes: curan- deiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990) é um exemplo de pesquisa docu- mental em Antropologia que transita entre as Ciências Sociais e o Direito, na qual há uma meta-análise de acórdãos que versam sobre o crime de curandeirismo no Bra- sil. A autora, ao introduzir a metodologia utilizada em sua pesquisa, ressalta que:

valemo-nos, para tanto, da tradicional postura antropológica que observa o outro para conhecê-lo e conhece-o para entender a lógica pela qual ele dá sentido ao mundo. Deslo- camos, porém, a experiência do trabalho de campo antropológico, que põe frente a fren- te observador e observado, para uma experiência de trabalho documental, que distancia carnalmente o estudioso de seu objeto, mas o aproxima de suas representações escritas e de seus ‘rastros’ oficiais (SCHRITZMEYER, 2004, p. 15).

Ao refletir acerca do trabalho realizado pela antropóloga Ruth Landes ao longo dos seus últimos vinte anos de vida, durante os quais organizou minuciosa- mente os seus arquivos pessoais, Olívia da Cunha analisou a relação entre a Antro- pologia e os arquivos documentais. A autora ressalta o menosprezo que a Antropo- logia apresentou em diferentes momentos de sua trajetória para com outros tipos de pesquisa que não aquelas que envolvessem pesquisadores e pesquisados em relações sincrônicas, interpessoais e participativas. Em suas palavras,

(...) apesar da familiaridade da Antropologia com os arquivos, a relação entre ambos este- ve sujeita a diferentes apropriações. A identificação da pesquisa em arquivos com as práti- cas antropológicas, entre elas a pesquisa de campo e a produção de etnografias, permanece sendo alvo de tensão. Tem sido associada à impossibilidade de estar lá e a formas secun- dárias de contato entre observadores e ‘nativos’ mediadas por camadas de interpretação intransponíveis e contaminadas. Descrever e interpretar a partir de informações contidas em documentos caracterizaria uma atividade periférica, complementar e distinta da pes- quisa de campo e suas modalidades narrativas. Assim, a presença do arquivo na prática antropológica ou está afastada temporalmente daquilo que os antropólogos de fato fazem

caracterizando a prática dos chamados antropólogos de gabinete — ou constitui marcado- res fronteiriços da Antropologia com outras disciplinas — uma vez vinculados à prática dos historiadores, museólogos e arquivistas (CUNHA, 2004, pp. 292 e 293).

De fato, etnografar arquivos é estabelecer um diálogo necessário entre a his- toriografia e a etnografia, permitindo trânsitos presentes, mas menos evidentes, na observação participante. Se nas sociedades ocidentais a cronologia seria “nossa cos- mologia particular” (SCHWARCZ, 2005, p. 126), pesquisar registros de tempos passados seria uma forma de colocar tempos em diálogo, contrastando passado e presente. Se, como ressaltou Lévi-Strauss, somos uma sociedade a favor da História e a temos como categoria explicativa, a análise de fatos passados serve como ponte para compreensão de fatos presentes (SCHWARCZ, 2005, p. 120). Estabelecer di- álogos com a História é dialogar com o nosso próprio tempo.

Os arquivos são espaços privilegiados de registro em uma sociedade cuja cos- mologia está centrada em uma perspectiva cronológica. Considerando que a Antro- pologia deve ser utilizada para problematizar conceitos e “verdades” que estão natu- ralizados, em uma pesquisa documental isso significa, mais uma vez, dialogar com fontes para conseguir identificar o que elas omitem, ressaltam e apresentam como dados oficiais.

A pesquisa documental pode ter diferentes propósitos, evidentemente, se- gundo os objetivos do trabalho que se pretende realizar. Dentre eles é possível que o pesquisador busque averiguar quem são os principais atores que encabeçam determi- nado processo oficializado nos documentos institucionais. Considerando que a ins- tituição é formada por pessoas, possíveis pistas e respostas sobre quem são os sujei- tos-chave e qual a sua contribuição para determinado processo oficial podem estar presentes nos documentos pesquisados. Na pesquisa documental, o olhar antropo- lógico permite que o documento seja tratado como um interlocutor, ao qual per- guntas são feitas.

Assim, no caso da pesquisa em curso, alguns atores são de extrema relevância para a recomposição do cenário punitivo nacional e para a análise do que estava em

jogo na edificação e no dia a dia dos presídios femininos brasileiros nos seus primei- ros anos. Não só os juristas e penitenciaristas da época são interlocutores privilegia- dos, mas também criminólogos com os quais dialogavam e as Irmãs da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers, responsáveis pela adminis- tração de alguns estabelecimentos prisionais femininos em suas primeiras décadas.

Investigar esses atores é importante para compreender partes significativas do processo de edificação dos presídios femininos no país, afinal as instituições são for- madas por pessoas que pensam, decidem, comandam e as vivenciam. Quem eram, o que liam, qual a sua formação educacional, quais cargos ocupavam, o que produziram oficialmente, se transitavam ou não pelas academias da época, com quais escolas dia- logavam – são questões que devem ser levantadas, para que seja possível mapeá-los.

Segundo Lilia Schwarcz14 é importante fazer boa Antropologia sem fazer

má História, sendo fundamental transitar pelas disciplinas utilizando o que cada uma tem de melhor a oferecer – incluindo não somente as discussões teóricas pro- duzidas em cada campo, mas também os métodos e técnicas de pesquisa. Se cada disciplina “conquistasse” territórios metodológicos ou temáticos como sendo seus, as investigações seriam cada vez mais limitadas e menos reflexivas. Imagine as análi- ses de fontes documentais pertencendo apenas à História, a observação participan- te à Antropologia, o método quantitativo à Sociologia? Haveria, indubitavelmente, uma grande perda no potencial analítico e crítico das ciências humanas. Esse trânsi- to por disciplinas e pelas fronteiras disciplinares não significa negar suas delimitações próprias, pelo contrário, a existência das disciplinas depende dos objetos de estudos, de sua delimitação e do referencial analítico e teórico utilizado. Significa, isso sim, assumir que os temas e os métodos podem ser compartilhados e (re) significados.