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A década de 1940 e a primeira metade da década de 1950 representaram um período de grande ebulição do debate e da prática penitenciária no país e a criação dos estabelecimentos para encarceramento feminino fez parte desse contexto. Em ou- tras palavras, os anos mencionados foram de grande atividade dos Conselhos Peniten- ciários, tanto dos estados quanto do Distrito Federal. Houve construções e reformas penitenciárias em todo o país visando a implementação de um modelo de cárcere res- socializador e voltado para a educação moral dos encarcerados; elaboraram-se grandes críticas a modelos penais ultrapassados, que imputavam sofrimento físico e moral aos presos; e foi intensa a produção legislativa no âmbito penal. Será por acaso que os pri- meiros presídios femininos saíram do papel nessa época, ou é possível inseri-los nes- se movimento mais amplo que marca a teoria e a prática punitiva em questão? Cer- tamente a segunda hipótese é mais plausível, dado que as instituições são socialmente construídas e fazem parte de cenários sociais muito mais amplos que elas próprias.

Assim, para compreender o momento de criação dos presídios femininos no país, fez-se necessário contextualizá-lo, traçando, ainda que brevemente, um pano- rama histórico do exercício prisional e da legislação criminal brasileira, efetuando o resgate da ideologia carcerária e dos projetos punitivos então em prática. Conside- rando que a História não é linear, mas formada por permanências e rupturas, transi- tar por seus momentos significa buscar entender os contextos nos quais as categorias e as instituições foram produzidas, para que então seja possível compreender, ainda que parcialmente, o que permanece e o que muda. Assim, no primeiro capítulo, fez- -se uma breve recuperação dos debates prisionais, pautando-os, principalmente, nas legislações punitivas de cada período, bem como nas teorias filosóficas e criminoló- gicas em voga no momento.

Optou-se por expor o cenário punitivo brasileiro do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX de modo a compreender qual era o contexto criminológico e penitenciário no qual surgiu, no final da década de 1930, a primei- ra unidade prisional feminina brasileira. Para tanto, retoma-se alguns pontos rele- vantes desse cenário, desembocando no contexto punitivo e legislativo da década de

1940, momento de investimento em reformas prisionais e da promulgação do Có- digo Penal e do Código de Processo Penal. Igualmente analisou-se a influência de teorias criminológicas como o Iluminismo Penal, ou Escola Clássica do Direito Pe- nal – oriunda principalmente da França e da Inglaterra do final do século XVIII – e a Antropologia Criminal, também chamada Criminologia – advinda principalmen- te da Itália da segunda metade do século XIX – sobre o pensamento criminológico nacional nos seus primeiros tempos, de modo a compreender em que medida essas escolas estiveram presentes na estruturação dos cárceres femininos nacionais e na de- limitação das figuras das delinquentes.

Em seguida, ainda no primeiro capítulo, foram considerados alguns atores relevantes para o cenário punitivo do período, em especial aqueles que participaram da estruturação dos presídios femininos no país, os quais estão apresentados no item denominado penitenciaristas. Juristas em sua maioria, os penitenciaristas exerceram papel importante no cenário punitivo nacional do período, e o fato de serem algu- mas das principais vozes analisadas ao longo do texto justifica sua introdução neste primeiro momento. Por fim, tratou-se especificamente das práticas prisionais nacio- nais e do investimento na humanização carcerária como lema das reformas peniten- ciárias pretendidas a partir da década de 1930.

O segundo capítulo, intitulado “Dever ser” e “não ser” femininos, apresen- ta aspectos do que era esperado das mulheres em meados do século XX, e aponta quais eram as figuras desviantes desse “dever ser”. Buscou-se identificar, por meio de pesquisas que denotam os papéis sociais femininos do período e a partir de auto- res da época, quais eram os modelos ideais de mulheres, quais os espaços sociais re- servados às representantes do sexo feminino, qual o papel da mulher na sociedade e na família, para, em seguida, delimitar quais eram as figuras que representavam os desvios desses modelos. A dicotomia “mulheres honestas” versus “mulheres desvian- tes”, que tanto aparece nas falas dos penitenciaristas, foi explorada neste capítulo de modo a verificar, adiante, até que ponto esses moldes foram usados para a classifica- ção das figuras delinquentes e para a prática de ressocialização e recomposição mo- ral das mulheres nos cárceres femininos brasileiros.

Ainda no segundo capítulo, o item Agentes do desvio e o Sistema de Justi- ça Criminal traz dados do aprisionamento feminino na década de 1940 e 1950 que ilustram quais eram as características das mulheres sentenciadas e detidas no perío- do analisado. Tais dados, presentes nos anuários do Serviço de Estatística Policial do Estado de São Paulo e apontados em um artigo do periódico Arquivos da Socieda- de de Medicina Legal e Criminologia possibilitaram traçar o perfil daquelas a quem o sistema de justiça criminal estava voltado. Por fim, algumas fotografias de regis- tro criminal do Presídio de Mulheres de São Paulo, seguidas de uma breve análise, fecham o capítulo.

Classificando a mulher delinquente foi o título escolhido para o terceiro ca- pítulo, que trata da maneira como penitenciaristas e outros atores do período classi- ficaram as mulheres criminosas. Partindo do pressuposto de que não existe o crimi- noso a priori, mas que tal categoria é socialmente construída, buscou-se identificar se nas falas e textos desses autores era possível delimitar “tipos criminosos femininos” e, em caso positivo, de que maneira esses tipos dialogavam com os modelos de cri- minalidade feminina traçados na época, em especial pelo principal teórico do tema, o já mencionado médico italiano Cesare Lombroso. Buscou-se, ainda, apontar em que medida os modelos de “dever ser” e “não ser” femininos, apresentados no segun- do capítulo, pautaram tais classificações.

Finalmente, o quarto capítulo, denominado Projetos e práticas do cárcere femi-

nino, trata das prisões femininas no Brasil – espaços destinados às figuras criminosas

explicitadas no terceiro capítulo. Aborda elementos centrais que permitem compreen- der qual foi o projeto eleito para o aprisionamento de mulheres. Além da necessida- de de separação de homens e mulheres de forma a impedir o contato entre presos de diferentes sexos e de garantir a ordem nos estabelecimentos prisionais, defendida por juristas desde o final do século XIX, outros elementos passaram a ser justificadores da separação. Dentre eles o fato de alguns países latino americanos, os Estados Uni- dos e países europeus terem seus presídios femininos desde meados do século XIX e de haver um investimento brasileiro para fazer parte do movimento de humaniza- ção penitenciária, que incluía a separação entre instituições femininas e masculinas.

Nas décadas de 1940 e 1950, o cárcere tinha como funções alegadas a de- fesa social, ou seja, a retirada, da sociedade, de indivíduos considerados perigosos e uma função ressocializadora, capaz de recolocar os indivíduos reabilitados na socie- dade. O trabalho era visto como elemento capaz de exercer essa função, mas era ne- cessário assegurar que as tarefas exercidas na prisão pudessem ser reproduzidas fora dela, permitindo a ressocialização. Nesse sentido, às mulheres deveriam ser garanti- dos meios de reprodução de uma vida ideal feminina, em consonância com um mo- delo de “dever ser” mulher. Além disso, os penitenciaristas se perguntavam de que maneira deveria ser estruturado esse espaço de modo a garantir um tratamento pró- prio para mulheres, sem, contudo, tratá-las com privilégios e regalias não disponibi- lizados para os homens presos.

Outra questão relevante marcou a origem dos cárceres femininos no país: a quem caberia o cuidado cotidiano com as detentas? A escolha pela Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers revela elementos importantes da forma como a delinquência feminina era vista no período, levanta questões so- bre a laicidade estatal, bem como sobre a prática prisional. Assim, o quarto capítu- lo aborda esses elementos, ressaltando brevemente o histórico e a “vocação” da Con- gregação de Nossa Senhora da Caridade do bom Pastor d’Angers, alguns elementos sobre sua presença nos cárceres femininos chilenos, argentinos e, logicamente, brasi- leiros, bem como dados referentes ao cotidiano prisional estabelecido pelas Irmãs e à relação entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica. Ainda nesse capítulo, trata-se da arquitetura dos cárceres e do trabalho prisional nos estabelecimentos femininos. Fotografias retiradas dos periódicos e de personagens do Presídio de Mulheres de São Paulo compõem, igualmente, este capítulo. Por fim, nas considerações finais, no item Corpos e almas das detentas à luz de alguns teóricos clássicos, recorre-se a conceitos e análises feitas por Marcel Mauss, Erving Goffman e Michel Foucault para exami- nar, em diálogo com esses autores, elementos relevantes dos cárceres para mulheres. Um epílogo composto por uma narrativa de imagens e texto fecha esta dissertação.