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A CONGREGAÇÃO DE NOSSA SENHORA DA CARIDADE DO BOM PASTOR D’ ANGERS

Compreender a história, a missão e o funcionamento da Irmandade Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers, responsável pela administração dos primeiros presídios femininos no Brasil, é de suma importância para entender não só a estruturação do cárcere para mulheres no país e o papel dele esperado, mas tam- bém para compreender o lugar por ele ocupado no período. O material de pesquisa coletado sobre a Irmandade se resume principalmente a textos publicados pela pró-

pria Congregação, informações contidas em sites77 da Congregação de diferentes pa-

íses e entrevista realizada com a Irmã Zulma do Amaral Goulart. O conteúdo reuni-

77 Sites consultados: www.goodshepherdsisters.org; http://catholique-angers.cef.fr; http://www.buonpas- toreint.org/

do nesses documentos e entrevista traz a história que suas autoras selecionaram para contar, sendo uma expressão da maneira como a própria Instituição se vê e quer ser vista. O modo como a Instituição se mostra foi a forma encontrada de contar a sua história e destacar o que há de mais interessante para a presente pesquisa.

Marie Dominique Poinsenet – autora de livros religiosos e biógrafa de per- sonagens da história católica, como Santa Tereza d’ Ávila – em seu livro Nada Im- possível ao Amor, traduzido do francês para o português pela Irmã Margarida de Mo- raes Campos, conta a história das origens da Irmandade Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers por meio da biografia de sua fundadora, Madre Maria Eu- frásia Pelletier. A autora utiliza como fonte bibliográfica, dentre outras, atas do Ins- tituito de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers, escritos e partes do processo de canonização da Madre fundadora. Já a obra da Irmã Margarida de Mo- raes Campos intitulada A Congregação do Bom Pastor na Província Sul do Brasil – pinceladas históricas, conta a história da Congregação no país, e apresenta versões das Irmãs que mostram outro lado dos convênios firmados com os estados para a admi- nistração dos presídios de mulheres, bem como apontam conflitos não explicitados nos periódicos e outros documentos pesquisados.

Apesar do tom romanceado e da parcialidade de suas autoras, os trabalhos, além de apresentar dados históricos importantes sobre a Congregação, mostram seu ethos, fundado na doação ao próximo, no enfrentamento de dificuldades, no sacrifí- cio para a salvação, na superação dos obstáculos e na ideia de que a misericórdia di- vina se obtém por meio do sacrifício, da doação e do desapego. O tom destes tra- balhos, muito tem a dizer sobre a filosofia da Congregação e a maneira de vida das ordenadas. As repetições incansáveis, nas duas obras, de algumas máximas proferi- das pela fundadora da Congregação, como “nosso instituto fundou-se sobre a cruz” e “nada impossível ao amor”, são exemplos dos lemas de sacrifício e auto doação pri- vilegiados pela Ordem. Com a lente das irmãs e de simpatizantes da Congregação foram redigidos os documentos pesquisados e, é a partir deles que se buscará recons- tituir partes dessa história e analisar, juntamente com dados sobre os presídios bra- sileiros, a presença das Irmãs nesses estabelecimentos.

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O Instituto Bom Pastor de Angers foi fundado na cidade de Angers na Fran- ça, em 1829, com o objetivo de cuidar de “jovens, que o mundo, de alguma forma, seduziu” (POINSENET, 1968, p. 73). Resultado do “empréstimo” de irmãs do Ins- tituto Nossa Senhora da Caridade, estabelecido em diversas cidades francesas, a nova ordem, que nasceu em Angers, teve como fundadora a Madre Maria Eufrásia Pel- letier, oriunda da Congregação de Nossa Senhora da Caridade da cidade de Tours. No ano de 1838, a Ordem recebeu o nome definitivo de Nossa Senhora da Carida- de do Bom Pastor d’ Angers, uma junção das alcunhas do Instituto recém fundado e da Congregação de origem de sua fundadora. Nascida no ano de 1796, a Irmã foi a principal mentora e incentivadora da Congregação d’ Angers, sendo responsável pela disseminação dessa Ordem pelos cinco continentes (POINSENET, 1968).

A principal missão do Instituto Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers é a “salvação das almas” e a “cura moral” de meninas e mulheres em estado de abandono material e moral. “Cooperar com Deus na salvação das almas” é a vo- cação primeira das Irmãs que fazem voto de pobreza ao vestir o hábito e prometem se dedicar à reeducação e reabilitação das “desafortunadas” por meio da moral cris- tã. As palavras de Jesus de que “os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os doentes” são reiteradas desde a fundação da Congregação, de modo a justificar e es- clarecer o trabalho realizado pelas Irmãs.

Passagens bíblicas nas quais Jesus perdoa mulheres pecadoras servem como metáforas para o trabalho realizado pela Congregação Nossa Senhora da Caridade e posteriormente pelas Irmãs de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers, de levar mulheres pecadoras ou perdidas ao encontro de Deus (POINSENET, 1968, p. 36). No Evangelho de Lucas 7-8 (p. 1810), há uma parábola chamada A pecado- ra perdoada e que ama, que narra passagem na qual Jesus perdoa os pecados de uma mulher pecadora que demonstrou seu profundo amor e seu respeito por ele. A fun- ção das Irmãs de permitir o encontro de suas “reeducandas” com Deus é explicitada, algumas vezes, por meio desta metáfora. Apesar de não serem elas responsáveis pelo

perdão, elas proporcionam e facilitam o encontro dessas meninas e mulheres “mo- ralmente abandonadas” com Deus para que este possa perdoá-las. Se todas as pesso- as têm em si, de acordo com a doutrina católica, o potencial do arrependimento e Deus o perdão ilimitado, as Irmãs do Bom Pastor d’Angers buscam promover o ar- rependimento das que pecaram, de modo que elas possam obter o perdão divino.

Não são apenas aquelas em conflito com a lei as “ovelhas” da Irmandade, mas, mulheres desamparadas socialmente, sem família, sem trabalho honesto, sem proteção, prostituídas e perdidas. Em entrevista realizada em janeiro de 2011 com a Irmã Zulma do Amaral Goulart – que foi diretora da Penitenciária Feminina de Tremembé, fundada na década de 1960, e diretora das presas na Penitenciária de Mulheres de Porto Alegre – ela ressaltou que o Carisma da Congregação é de mise- ricórdia, para auxiliar aquelas que mais precisam. Usou a seguinte metáfora para ca- racterizar o público alvo e o trabalho: “sabe um vestido usado, gasto, que ninguém quer mais? Pois é, nós o costuramos, o consertamos, o aceitamos”.

De acordo com Poinsenet, o Padre Breton, um dos responsáveis pela fun- dação da Congregação, no dia da chegada das Irmãs de Nossa Senhora da Caridade à cidade de Angers, no ano de 1829, bradava pelas ruas decadentes, ao lado das Ir- mãs: “venham com estas senhoras todos os que vivem afastados de Deus!” (POIN- SENET, 1968, p. 71). A ideia de que Jesus veio à terra para chamar que se juntassem a ele não os justos, mas os pecadores é ressaltada constantemente nas obras pesqui- sadas.

Poinsenet narra a ocasião da chegada, em 1853, de trinta e oito jovens trans- feridas do Quarteirão Correcional da Casa Central de Rennes à Colônia Agrícola das Jovens Detidas de Angers, dirigida pelas Irmãs, ressaltando as palavras de Madre Pel- letier, segundo a qual:

no princípio pareciam tristes e tímidas. Logo, porém, que se viram diante do fogo de le- nha que crepitava no grande fogão da cozinha, nossos passarinhos puseram-se a gorjear. Servimo-lhes sopa bem quente, carne, vinho etc., etc. Então seus corações se expandiram: havia muito tempo que não tinham semelhante festim! No dia seguinte nova surpresa: