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Capital branca

CAPITAL MULHERES NO

INTERIOR CONDENAÇÃO 21 27 FLAGRANTE 3 9 PREVENTIVA 1 32 PRONÚNCIA 1 9 TOTAL DE PRESAS 26 77

que não permite, a seu ver, a sobrevivência da população, e a leva ao cometimento de delitos, possibilitando, igualmente, a flexibilização moral e o afrouxamento dos laços. Em suas palavras:

as situações econômicas anormais, como a que atravessamos há cinco anos, têm geralmen- te influência sensível no aumento dos crimes. Mais do que o abuso do álcool, do que as taras e o analfabetismo, elas favorecem o progresso da moral negativa, por agravarem as dificuldades da vida, principalmente nas camadas inferiores da sociedade, onde os esta- dos de miserabilidade são assaz comuns. Aliás, tais estados de miséria constituem uma das graves falhas da nossa organização social; possuem caráter permanente e são atenuados pela caridade pública, quando deviam, antes, ser extirpados pela reeducação, ou melhor, pela regeneração dos elementos que neles vivem por meio de higiene, alimentação ade- quada e do ensino primário e profissional. Um povo só será verdadeiramente forte e feliz nos casos de perfeito equilíbrio entre o custo de vida e o poder aquisitivo; não poderá ha- ver felicidade relativa enquanto o homem for um escravo do trabalho, enquanto seus es- forços não visarem mais do que o alimento para si e para os seus (EPCSP, 1944, p.195). À criminalidade feminina, o relator igualmente atribuía a miséria social como fator preponderante. Era necessário melhorar o nível de vida da população e higienizar a classe baixa, antro da degenerescência, pois assim se evitaria a crimi- nalidade. O útero sadio geraria a nação sadia, sendo este um ponto importante no qual, segundo o redator, deveriam ser investidas energias estatais. De acordo com o relatório:

pelos dados das apurações do Serviço de Estatística Policial desde 1937, conclue-se que as delinquentes pertencem em sua grande maioria às camadas inferiores da sociedade. São indivíduos de baixa formação moral, analfabetos, cheios de vícios, e trazendo muitas ve- zes os estigmas da degenerecência alcoólica, a gerar, por sua vez, entes que, futuramente, irão figurar destacadamente nas estatísticas policiais e criminais. Entretanto, essa crimi- nalidade feminina e suas conseqüências são perfeitamente extirpáveis, pela melhoria do

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padrão de vida, pelo ensino obrigatório das primeiras letras e pelos cuidados higiênicos, completamente desconhecidos nos lares paupérrimos – abrigam geralmente os germens dos vícios, da prostituição e do crime (EPCSP, 1944, p. 197).

Além das prisões correcionais e policiais e da tarefa de prevenção do crime, a polícia também exercia a função de recolher, em asilos e hospitais, pessoas consi- deradas dementes, ação praticada tanto na capital quanto no interior, e que tinha um claro objetivo de manutenção da ordem social e de promoção da higiene men- tal dos recolhidos. Aqueles que se enquadravam como loucos, viciados e dementes poderiam sofrer intervenções diferentes das prisões policiais e correcionais, uma vez que, por vezes, eram levados a centros de tratamento médico, por serem considera- dos doentes sociais. Os dados, contidos no Anuário, relativos aos recolhimentos em asilos e manicômios mostram o número de homens e mulheres recolhidos entre os anos de 1938 a 1943, conforme pode ser verificado na tabela a seguir:

TABELA 7. DISTRIBUIÇÃO DE HOMENS E MULHERES RECOLHIDOS EM ASILOS E MANICÔMIOS (1938 -1943)

A possibilidade de recolhimento em manicômio judiciário, por meio da aplicação de medida de segurança, era prevista tanto na lei das Contravenções Pe-

nais, de 1941, quanto no Código Penal60. Para tanto, era necessário que fosse com-

60 Conforme artigo 13 e seguintes da Lei das Contravenções Penais e 75 e seguintes do Código Penal.

 

ANO   Nº HOMENS CAPITAL Nº HOMENS INTERIOR Nº MULHERES CAPITAL Nº MULHERES INTERIOR   1938   489   -­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐   294   -­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐   1939   428   1604   222   688   1940   655   1380   259   527   1941   518   1153   219   387   1942   598   927   228   365   1943   516   996   247   454  

provada a periculosidade do agente do crime ou da contravenção, sendo considera- dos perigosos, dentre outros, os reincidentes, aqueles com doença mental e reduzida capacidade de discernimento, o reincidente em casos de mendicância e vadiagem, o reincidente em prática de jogos de azar e aqueles condenados por crimes cometidos em estado de embriaguez. O recolhimento deveria se dar em momento posterior ao cometimento do delito ou contravenção. Os degenerados mereciam o isolamento asilar, estando, dentre eles, os ébrios, os vadios, os mendigos e os viciados em geral.

A associação do alcoolismo à degenerescência era uma constante nas déca- das de 1930 e 1940. Fruto do pensamento higienista, a necessidade de combate ao vício tornara-se uma questão de saúde pública que deveria urgentemente ser contro- lada e resolvida. A historiadora Maria Clementina Pereira Cunha, em pesquisa sobre a história do Asilo Juqueri, em São Paulo, ressalta que a preocupação com o alcoo- lismo ia além da ordem médica, uma vez que se julgava que os alcoólatras rendiam menos no trabalho e estavam mais expostos a acidentes de trabalho, sendo um “mal coletivo” que atingia o operariado, aproximando-o da criminalidade, do ócio e da va- diagem (CUNHA, 1988, pp. 196 e 197). Nesse cenário o lugar privilegiado de in- ternação dos viciados e degenerados era aquele que não só o retirava do seio social, mas que tinha uma proposta de intervenção terapêutica.

Espaço destinado à regeneração e cura, o asilo do Juqueri, por exemplo, era referência, desde o início do século XX, de local de tratamento de desviantes. De acordo com Cunha:

joio no meio do trigo social, estes indivíduos nocivos são, no entanto, na maioria das ve- zes, intocáveis pelas malhas da polícia ou da justiça em seus comportamentos nem sem- pre criminalizáveis. Necessário assim, para a “defesa da sociedade”, definir para os mesmos uma instância legal e legitimada de exclusão e controle: a medicina mental se encarrega de ocupar esse espaço (CUNHA, 1988, p. 112).

As classes perigosas, aqueles em desacordo com os papéis sociais deles es- perados, os que causavam transtornos na ordem da cidade tinham como possíveis

destinos o cárcere, as casas de correção e/ou os manicômios e asilos. Relegados aos últimos, os considerados degenerados sociais eram encaminhados para longe do con- vívio social. De acordo com Cunha:

ao lado dos negros outros setores da população perdem, na cidade que cresce e altera as rotinas da vida cotidiana, os seus espaços tradicionais. Setores improdutivos, como a ve- lhice e os menores, certo tipo de doentes, débeis mentais, deficientes de várias qualidades terão reinventado o seu lugar. Na cidade eles tenderão a deixar de ser uma questão que afeta ao grupo familiar ou social mais diretamente concernido, para constituírem um pro- blema efetivo para a administração pública. Alguns desses setores encontrarão no hospí- cio, ao lado dos loucos, o seu definitivo ‘lugar de repouso’ (CUNHA, 1988, pp. 31 e 32). Apesar de Cunha tratar especificamente do início do século XX, a prática de recolhimento daqueles considerados dementes continuava em voga nos anos de 1940 e era considerada importante pelos responsáveis pela ordem pública. O posicionamen- to do relator do Anuário em relação ao “problema da demência” evidencia uma preo- cupação antes profilática que repressiva, uma vez que, em suas palavras tal problema:

(...) é sem dúvida consequência da pobreza, responsável pelo analfabetismo, pela alimen- tação deficiente, pelo abuso do álcool e por outros vícios, em que milhares de desgraça- dos se afogam, para esquecer, provavelmente, a sua impossibilidade de reação. Assim, se é importante a construção de manicômios ou a ampliação dos já existentes, mais importa ainda dar a esses infelizes meios para fugir às suas atuais condições de vida, evitar que os filhos deles encontrem as mesmas dificuldades e as mesmas misérias, preservando-se, des- se modo, as gerações futuras dos estigmas da degenerescência alcoólica, das conseqüên- cias terríveis da sífilis. Certo, o problema é bem complexo, pois exige, antes de tudo, um equilíbrio real entre o poder aquisitivo do povo e o custo de vida, mas também não é me- nos verdade que esse equilíbrio viria, por outro lado, facilitar o progresso do país, além de concorrer para a diminuição do crime e de outras manifestações moralmente negati- vas, como o suicídio (EPCSP, 1942, p. 75).

No que se refere às mulheres dementes o relator apontava o menor núme- ro de recolhidas, quando comparadas aos homens, fato que justificava como sendo “(...) natural, pois a mulher, mesmo nas classes mais humildes da sociedade, leva uma vida mais higiênica ou menos viciosa que os homens, que, nesse setor social se desta- cam sobremaneira em todas as modalidades de vícios, muito especialmente no abuso do álcool e da bebida” (EPCSP, 1944, p. 87). Assim, as degeneradas representavam as desviantes no universo de suspeitos que compunham a classe baixa. Àquelas que não levavam a vida higiênica que delas era esperada, eram atribuídos os estigmas da demência e da alienação, e receitadas as internações asilares.

* * * *

Além dos dados apresentados pelos anuários do Serviço de Estatística Po- licial do Estado de São Paulo, para que seja possível identificar quais os principais motivos de encarceramento feminino à época da criação e nos primeiros anos dos presídios femininos optou-se por analisar os dados apresentados por Hilda Mace- do, assistente da cadeira de Introdução à Criminologia da Escola de Polícia, que em 1953 publicou no periódico Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminolo- gia de São Paulo artigo denominado Criminalidade Feminina e sua Prevenção, no qual busca responder quem e como eram as delinqüentes no período. Fruto de uma aula ministrada pela autora na disciplina “Higiene mental e profilaxia criminal”, seu artigo contém números que permitem não só traçar um mapa do aprisionamento de mulheres na cidade de São Paulo e um perfil social das encarceradas no período, como também apontar quais dados interessaram à pesquisadora, ou seja, o que era importante apontar em uma pesquisa sobre encarceramento feminino, de modo que os números se tornassem fundamentos de uma argumentação.

Os dados coletados mostram que havia um total de 179 mulheres presas em 1953 nos estabelecimentos prisionais da cidade, sendo que apenas em um de- les, a Penitenciária do Carandiru, havia um prédio específico para o encarceramen-

to feminino, que era a Penitenciária de Mulheres institucionalizada em 1941. Nes- sa casa havia um total de trinta presas, pois não existiam acomodações para abrigar mais mulheres. Na Casa de Correção estavam recolhidas, dentre sentenciadas e pro- cessadas, sessenta mulheres, e no Presídio do Hipódromo, oitenta e nove mulheres (MACEDO, 1953, p. 287).

Das presas que se encontravam no Presídio de Mulheres, apenas uma delas, condenada por crime de violação de privilégio de invenção e apropriação indébita, havia concluído o ensino secundário, dado que, de acordo com Macedo, é relevan- te, pois explica a complexidade do crime cometido, que exigia “um preparo”. As de- mais vinte e nove mulheres lá estavam por crimes de furto, roubo, homicídio, lesões corporais, infanticídio e incêndio, sendo todas, segundo a autora, provenientes de meio social baixo, sem instrução ou apenas com a educação primária. Em relação à profissão, a pesquisa mostra que todas as vinte e nove eram empregadas domésticas. Destas, ainda, ressalta que nove delas eram reincidentes específicas por crime con- tra o patrimônio, ou seja, cometeram mais de uma vez um crime desse tipo, e apenas uma reincidente genérica, ou seja, cometeu ao menos dois crimes diferentes, sendo eles roubo e ferimentos leves (MACEDO, 1953, p. 287).

Em relação ao estado civil, vinte delas, ou seja, dois terços eram solteiras. Dentre as solteiras a pesquisa aponta que ao menos quinze “foram desviadas” antes dos 18 anos. Das restantes, sete eram casadas e uma viúva, que o era por ter matado seu marido. Além disso, a autora salienta que algumas apresentavam doenças como sífilis, que além da transmissão venérea permite outros tipos de contágio, como o congênito. Outras foram consideradas portadoras de “tendências toxicófilas”, ou seja, com propensão ao uso de drogas. Por fim, aponta que cinco tiveram passagem, em algum momento de suas vidas, pelo asilo de menores (MACEDO, P. 287).

No tangente à Casa de Correção, das sessenta presas, quarenta lá estavam por crime de furto, três por assalto, seis por homicídio, quatro por ferimentos gra- ves e leves, uma por abortamento, quatro por estelionato, uma por adulteração de cédulas e uma por venda de entorpecentes. A maioria, ou seja, quarenta e sete de- las, era empregada doméstica; quatro eram donas de casa; uma era costureira; e uma

exercia cargo de funcionária pública (MACEDO,1953, p. 287). Por fim, os dados apontam que oitenta e nove mulheres estavam no Presídio do Hipódromo por fal- ta de espaço na Casa de Correção. Destas, setenta e cinco mulheres lá estavam por poucos dias para aplicação de medidas corretivas, por terem praticado contravenção penal. As contraventoras eram “vadias nas quais se incluem mendigas, prostitutas e alcoólatras” (MACEDO, 1953, p. 287).

Pelos dados apresentados por Macedo é possível concluir que as mulheres presas na cidade de São Paulo no ano de 1953 o estavam, principalmente, por crimes contra o patrimônio; contravenções penais, especialmente vadiagem; crimes contra a vida, em especial homicídio, infanticídio e aborto. Em relação às profissões, grande parte exercia trabalhos fora de casa, principalmente, como empregadas domésticas. Informações sobre estado civil, apenas consideradas as da penitenciária de mulhe- res, mostram que a maioria delas era solteira. Tais informações, em especial quando cruzadas com os dados sobre trabalho e crimes cometidos, apontam para a crimina- lização de mulheres de classe baixa, que provavelmente estavam mais vulneráveis à intervenção penal que as demais.

Tanto os dados apresentados pelos anuários, quanto por Macedo, denotam uma associação entre os “espaços sociais do desvio” e as condutas consideradas crime ou contravenção. Em especial a vinculação entre mulheres e condutas ilícitas volta- va-se àquelas que não correspondiam ao estereótipo do sexo frágil. Possivelmente as principais vítimas do sistema de justiça criminal eram aquelas que estavam mais ex- postas aos seus olhares e que destoavam na paisagem da cidade moderna.