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Fotografias das primeiras presidiárias do Presídio de Mulheres de São Paulo, encontradas nos arquivos do Museu Penitenciário Paulista durante a coleta de ma- teriais para a presente pesquisa, retratam traços sociais que aparecem nos anuários estatísticos: há uma continuidade entre os tipos sociais identificados nos anuários e aqueles presentes nos álbuns que contém fotografias de identificação criminal das

mulheres presas. Mulheres imigrantes, negras e pardas, em sua maioria jovens, com- põem o universo das 52 fotografadas registradas nos álbuns encontrados. Não há, além das fotografias, e de poucas informações dos funcionários do Museu outros re- gistros que as expliquem. Sabe-se que são álbuns oriundos do Presídio de Mulheres, instalada em 1941 nos terrenos da Penitenciária do Estado. A disposição das foto- grafias, a maneira como as fotografadas se apresentam, os uniformes que usam e ou- tros detalhes, como o número atrelado a suas roupas, permitem concluir que são re- gistros das primeiras mulheres presas daquele estabelecimento.

Em geral os registros aparecem da seguinte maneira nos álbuns: quatro fotografias de cada uma das mulheres, sendo as duas primeiras de frente e perfil com roupas próprias e as duas seguintes de frente e perfil com o uniforme da pe- nitenciária. Nas duas fotografias de perfil aparece um número identificatório atre- lado à roupa, ou desenhado na fotografia. Estes números são específicos para cada uma das mulheres, ou seja, não se repetem, e vão do número dois ao número 60, com algumas lacunas. Em geral as fotografias dispostas nos álbuns respeitam a or- dem numérica. O número possivelmente corresponde ao número de registro ins- titucional de cada uma delas.

FOTOGRAFIAS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO PRESÍDIO DE MULHERES DE SÃO PAULO

FOTOGRAFIAS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO PRESÍDIO DE MULHERES DE SÃO PAULO

FOTOGRAFIAS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO PRESÍDIO DE MULHERES DE SÃO PAULO

FOTOGRAFIAS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO PRESÍDIO DE MULHERES DE SÃO PAULO

FOTOGRAFIAS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO PRESÍDIO DE MULHERES DE SÃO PAULO

Desenvolvido pelo antropólogo e criminólogo francês Alphonse Bertillon, em 1879, o método de registro criminal, que envolvia a fotografia de frente e per- fil, medidas antropométricas dos suspeitos ou condenados e maneiras específicas de arquivar essas medidas – o Bertillonage, como ficou conhecido – foi utiliza- do pela polícia brasileira a partir dos últimos anos do século XIX de modo a fi- char aqueles que passavam pelas delegacias, buscando mapear os tipos criminosos, facilitar as investigações e evitar a reincidência. Bertillon propunha produzir um “mapa da pessoa” submetida à averiguação. De acordo com a antropóloga Olívia Maria Gomes da Cunha, o método de Bertillon e o datiloscópico, de análise de impressões digitais, criado pelo argentino Juan Vucetich, eram utilizados no Bra- sil no início do século XX. Há notícias da utilização desses métodos na identi- ficação de mulheres presas na casa de detenção do Rio de Janeiro em 1906, ano em que houve um grande debate em torno da utilização da fotografia e da antro- pometria como método de identificação criminal (Cunha, 2002, p. 17). Segundo Cunha, até 1906:

todos os presos identificados deveriam ser fotografados de frente e perfil. E seriam esses rostos, faces compungidas e olhares cabisbaixos, de um indisfarçado constrangimento, que a partir da popularização do uso da fotografia judiciária passariam a fazer parte das colunas policiais dos vários jornais da cidade, embora a legislação prescrevesse o caráter sigiloso de tal prática (CUNHA, 2002, p. 18).

Para alguns atores do cenário político-jurídico nacional, como o senador Ba- rata Ribeiro, o método de Bertillon era inadequado, pois expunha os presos a situ- ações embaraçosas, como as medidas antropométricas, além de considerar os regis- tros fotográficos uma invasão, pela sua inadequada veiculação na mídia, bem como pelo próprio registro. De acordo com Cunha

a fotografia judiciária povoaria um território cujo contato seria capaz de contaminar a imagem da pessoa, transformando-se no que Barata Ribeiro chamou de ‘estigma da de-

sonra’. A desonra resultaria da transposição das fronteiras de uma memória, cujo domínio era privativo, contaminando o corpo de um cidadão. (CUNHA, 2002, p.20).

Sobre as imagens de frente e perfil, o especialista em fotografia foren- se Archibald Rudolph Reiss advertia, segundo Cunha, que “porque tinham total consciência da sua condição de incriminados, os fotografados faziam tudo para dar a esses retratos um ar diferente daquele que se imaginava possuir um crimi- noso”. Era importante, de acordo com o especialista, que as fotos fossem o mais natural possível (CUNHA, 2002, p. 24). Não é possível dizer até que ponto que no dia a dia penitenciário brasileiro as instruções de Archibald Rudolph Reiss e Bertillon eram seguidas, mas a detida análise das fotografias presentes nos ál- buns do Presídio de Mulheres de São Paulo permite identificar algumas constan- tes nas expressões e posturas das fotografadas: corpo ereto, olhar direto para a lente, seriedade expressa nos lábios. Algumas, no entanto, subvertem a serieda- de. As presas de número 2, 59 e 60 esboçam sorrisos, rompendo com a neutrali- dade possivelmente almejada pelo fotógrafo. A advertência de Archibald Rudol- ph Reiss parece fazer sentido.

Ainda, as fotografias permitem verificar a despersonalização provocada pe- los uniformes, uma vez que a maioria das séries contém registros das mesmas mulhe- res com roupas pessoais e com as vestimentas institucionais. Os enfeites das roupas e dos cabelos desaparecem no padronizado uniforme, que lembra os hábitos simples e largos de algumas congregações religiosas. O pano que cobre a cabeça não só des- personaliza, pois encobre as particularidades dos cabelos, mas imprime às fotografa- das ares de subserviência.

Tanto a ordem numérica, quanto a disposição nos álbuns e a identicidade dos uniformes permitem concluir que estas mulheres foram presas em um período semelhante, e que, durante um tempo, possivelmente cumpriram pena conjuntamen- te, formando o universo carcerário do Presídio de Mulheres de São Paulo nos seus primeiros tempos. É possível identificar, dentre as fotografadas, uma alta porcenta- gem de mulheres pretas e pardas – aproximadamente 50% do total –, bem como de

imigrantes, considerando “fenótipos” germânicos, ibéricos, asiáticos e mediterrâne- os – registros que dialogam com as estatísticas do período.

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O exame desses dados permite levantar algumas hipóteses sobre o perfil das mulheres aprisionadas no período pesquisado, em especial a vinculação entre os desvios do “dever ser” feminino e a criminalidade. No entanto, nas análises de pe- nitenciaristas e estudiosos da época é possível encontrar argumentos que justificam a perseguição a determinado perfil, bem como a necessidade de criminalizar grupos específicos de mulheres. Os estereótipos da criminosa presentes em textos e falas de especialistas do período auxiliam na delineação da figura da mulher criminosa nes- ses primórdios dos estabelecimentos prisionais femininos do país. Para que seja pos- sível identificar e entender a função atribuída pelos seus idealizadores aos cárceres para mulheres, é mister, antes, pontuar a quem esses estabelecimentos deveria servir. Algumas questões nesse sentido serão trabalhadas no próximo capítulo.