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que é o delito? Que é o crime? Sua definição está condicionada ao tempo e ao espaço. Dentro de um mesmo aglomerado humano, existe uma evolução no plano da sua concepção. Fatos que há um século e meio se achavam completa- mente deslembrados do Código Penal, das leis punitivas, dos regulamentos, das contravenções, podem passar a figurar, mais tarde em artigos dos códigos. (...) a simples circunstância de local, para o mesmo fato, determina a existência de delito, de crime, de contravenção, passíveis de punição criminal.

AEPCSP, 1944, p. 94

Partindo do pressuposto de que crimes são condutas consideradas social- mente negativas bem como situações conflituosas em determinado tempo e espaço, pode-se considerar relativo o conceito de crime, uma vez que adquire diferentes ca- racterísticas em culturas, épocas e locais diversos. Não existe uma realidade ontoló- gica do crime, ou seja, ele não existe naturalmente e por si só. Trata-se de um ato ao qual é conferido contextualmente um significado. Transgressões às regras e leis e a

não observância de condutas socialmente prescritas em relação a tabus e a interdi- ções só podem ser reprimidas em contextos nos quais tais interdições foram criadas, não havendo, portanto, uma universalidade de condutas delituosas. São inúmeros os exemplos etnográficos da relatividade do conceito de crime e de como só é possível

compreender as suas delineações de maneira relacional 61.

Crime é uma conduta estabelecida por lei, e, na sociedade brasileira, por leis escritas. O próprio Código Penal de 1940 prevê a anterioridade da lei para a estipu- lação de uma conduta delitiva, ou seja, ressalta que “não há crime sem lei anterior que o defina”. Se espelho da sociedade e/ou se modelo para a sociedade, a lei penal exerce um papel de enquadramento de condutas consideradas intoleráveis, que aten- tam contra determinados bens escolhidos para terem a proteção penal. Há, portan- to, uma seleção prévia de quais são esses bens e quais atentados a eles são considera- dos transgressões. Vida, patrimônio, costumes, honra, saúde pública, entre outros, são bens tutelados na esfera penal, e determinadas afrontas a eles recebem o nome de “crime”.

Durkheim, em meados do século XIX, já havia alertado para a necessidade de uma avaliação social e contextual do crime que o distanciasse de uma perspecti- va naturalizada. Apesar do reconhecimento da generalidade dos atos criminosos, ou seja, da existência, em todas as comunidades humanas, de “atos que ofendem cer- tos sentimentos coletivos dotados de energia e nitidez particulares” (DURKHEIM, 1963:62), chamando para si a repressão penal, havia uma extensa variação da quali- ficação sobre quais atos adquiriam estas características. A generalidade do fenôme- no criminal, definida por Durkheim (1963, p. 60) como expressão da sua normali- dade social, não deve ser confundida, assim, com a sua naturalização.

61 A literatura etnográfica e etnológica acerca do crime é extremamente ilustrativa dessa característica não ontológica do delito, uma vez que permite a constatação de que aquilo que é considerado crime em determina- da sociedade não o é em outra. Um exemplo de descrição etnográfica que aborda a temática está presente na obra Crime e Costume na Sociedade Selvagem, de Malinowski. O antropólogo Robert Weaver Shirley (Shirley, 1987, pp. 12 e 13) cita exemplo etnográfico, coletado e narrado pelo antropólogo Knud Rasmussen, em 1929, entre os esquimós (Innuit) da Groenlândia. Trata-se do incentivo à morte de pessoas mais velhas no inverno, quando não há alimento para todos os membros do grupo. O que seria considerado pela legislação brasileira homicídio, ou instigação ao suicídio, era, entre eles, prática não só aceita como estimulada.

A normalidade dos atos sociais está inscrita no tipo médio que é próprio a cada agrupamento social e “não pode ser definida in abstrato e nem de maneira ab- soluta” (DURKHEIM, 1963, p. 52). A noção de crime, por essa regra, não poderia ser definida fora da própria sociedade em foco. A caracterização destes atos se daria pelo choque entre o que Durkheim chama de “consciência moral da sociedade” e a diversidade de consciências individuais construídas a partir de referências ao meio social e às influências hereditárias, entre outras. No âmbito destas divergências se en- cubariam os atos criminosos, cuja determinação não poderia advir de uma caracte- rística intrínseca e sim da importância a eles atribuída pela “consciência coletiva” de determinada sociedade em espaço e tempo definidos.

A partir destas avaliações, o criminoso não deveria ser mais visto como um ser totalmente insociável e parasitário ou mesmo como um corpo estranho e inad- missível no ambiente social. Ao contrário, visto como um dado regular da vida em comunidade e não como uma doença, a compreensão sobre o crime e sobre o seu tra- tamento deveria ser repensada. Durkheim chega a afirmar que o crime tem uma im- portante função social ao indicar certa maleabilidade dos “sentimentos coletivos” e, por vezes, sinalizar suas transformações, antecipando “a moral que está por vir”, pre- nunciando mudanças necessárias às sociedades (DURKHEIM, 1963, 65).

Já segundo o antropólogo Robert Weaver Shirley, um axioma fundamental da antropologia legal é o de que as normas são criadas em bases sociais e econômi- cas e precisam ser observadas em seu conteúdo social (SHIRLEY, 1987, p. 12). As- sim, as regras são frutos de contextos específicos e, para que possam ser compreendi- das, devem ser analisadas à luz desses contextos. As leis que estipulam quais condutas são, para determinada sociedade, consideradas delitos, refletem bens e valores essen- ciais a essa sociedade.

Não só há, em todos os agrupamentos humanos, padrões esperados de comportamento, como também previsões de sanções em casos de ruptura com es- ses padrões. O antropólogo Paul Bohannan frisa que “são esses três atos sociais, um após o outro, que criam a conduta legal de qualquer sociedade: primeiro a quebra do padrão; a seguir, a reação, e, finalmente, a correção” (BOHANNAN, 1966, p.

170). Nesse sentido o “dever ser” seria pautado pelo “não dever ser” e vice versa, havendo um binarismo de condutas aceitas e não aceitas que possibilita a existên- cia dos padrões de comportamentos e das rupturas com esses padrões. Os mode- los de comportamento, os atos considerados rupturas com esses modelos, as re- ações possíveis quando há rompimentos e as correções prescritas aos agentes da ação variam de sociedade para sociedade. A lembrança de Bohannan de um pro- vérbio do povo Gola, habitante do interior da Libéria, de que “a lei é como um camaleão – muda de forma em cada lugar e só pode ser controlada pelos que co- nhecem seus costumes” é oportuna para ilustrar a relatividade do conceito de lei (BOHANNAN, 1966, p.165).

Uma vez considerada a não ontologia da lei, pode-se, por analogia, aplicar o mesmo raciocínio às ações que compõem o “crime”, pois estas são definidas por um aparato legal erguido de acordo com os valores morais e sociais de determinada so- ciedade. Se o conteúdo da lei e o que é crime não são categorias universais, o mesmo pode ser dito da categoria “mulher criminosa” uma vez que a criminosa não existe somente a partir do momento em que é julgada e condenada, mas existe antes dis- so, quando há uma delineação de quem pode ser considerada delinquente, de quais são as atitudes, os espaços, os lugares próprios da delinquência. Há uma seleção pré- via do sistema penal que além de apontar condutas consideradas crimes, igualmen- te aponta quem são os sujeitos privilegiados do delito.

Assim como as categorias de crime não são dados que se encontram na “na- tureza”, universais e inquestionáveis, as de criminosas também não o são. Pelo contrá- rio, são construtos sociais elaborados de maneira relacional, sendo importante ques- tionar não apenas quais são os padrões esperados e os desvios intoleráveis, mas quem são considerados os possíveis agentes desses desvios. Há uma associação entre delin- quência e estilos de vida, classe social, tipos de trabalho, localização espacial dos su- jeitos nas cidades, dentre outros. Foucault, em Vigiar e Punir – história da violência nas prisões –, chama a atenção para essa seletividade prévia do indivíduo delinquen- te dentre os pertencentes às classes baixas. Em suas palavras

não há natureza criminosa, mas jogos de forças que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dú- vida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os bem nascidos ‘tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça’ (FOUCAULT, 2004, p. 240).

De acordo com Bohannan a matéria prima do antropólogo do direito são os padrões e as ações que com eles rompem, sendo sua função investigar “(...) os axio- mas éticos que estão por trás desses padrões, concentrando sua atenção, ao mesmo tempo, mais nas instituições de reação do que na lei, ou padrão, em si próprio” (BO- HANNAN, 1966, p. 170). Mapear quem são os sujeitos principais a quem está des- tinado o aparato legal de reação ao crime, ou seja, quem é o agente privilegiado da ruptura com o padrão, permite compreender como as instituições de reação enxer- gam e criam o agente do delito.

Sendo assim, a seguir, será analisada a delineação das categorias “mulheres criminosas” no Brasil, naquele momento específico do surgimento dos primeiros es- tabelecimentos prisionais para mulheres. Como a mulher criminosa é pensada? É possível identificar quem era ela, ou seja, apontar a que classe, a que raça/cor, a que grupo social pertencia? Qual o modelo de criminosa desenhado no Brasil? Será que os penitenciaristas tinham modelos de criminosas em mente? Se sim, esses modelos correspondiam aos estereótipos de criminosas delimitados por grandes teorias cri- minológicas? As criminosas são sempre as protagonistas de desvios de um determi- nado modelo feminino? É possível que mulheres-padrão sejam enquadradas em ca- tegorias de criminosas?