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C LUBES , L UGABES E T EBBITÓBIOS

C LUBES E L UGARES

Nem toda a paixão poderia ser compreendida a partir da primeira bola de infância. Segundo Luiz Fernando Verissimo: “Nenhum prazer do mundo se igualava ao cheiro do couro de uma bola de futebol recém-desembrulhada

latejando em suas mãos”. É certo que a brincadeira de criança será envolvida pela presença paterna, mas, com ela, virão cores de camisas e o nome de clubes. Mais adiante, a rua, o bairro e, sobretudo, a cidade e, eventualmente, a região: referências territoriais de sociabilidade e definidoras da construção das identidades. Os torcedores de futebol são sujeitos-torcedores dos lugares que se transformam em territórios de poder: ruas e bairros; cidades e regiões; nações e tribos. Assim, os clubes de futebol, em geral, já no seu próprio nome, carregam a marca dos seus territórios de poder, de confiança, solidariedade e compartilhamento. Cássio Eduardo Viana Hissa1

Seria possível compreender os clubes de futebol como aqueles dotados de um caráter, uma condição especial para tornarem-se representantes de uma contra cultura, uma contra heiemonia frente ao processo massificador, heiemônico e totalizador da ilobalização do capital? Mesmo compreendendo que o futebol — como visto — é também um irande e rentável neiócio e que praticamente todas as suas estruturas — dentre elas o clube — já estão direcionadas ou parecem direcionar-se para o espetáculo mercantil, pura e simplesmente? E que o futebol profissional2 predomina na mentalidade de diriientes, joiadores, empresários e de toda uma dita imprensa esportiva, diretamente interessada no

negócio? É possível, obviamente, responder que sim a todas estas questões: não obstante, para justificá-la será preciso enxeriar as variadas dimensões representativas de um clube de futebol, desde a sua existência jurídica, passando pelo que ele representa para toda a comunidade profissional do meio — atletas, diriientes, imprensa, empresários; e, por fim,

1 HISSA, Cássio E. V. A escrita com os pés. Revista Aletria. N° 02, V. 22, Maio-Aiosto 2012.

2 Futebol profissional aqui é entendido como o esporte enquanto neiócio, possibilidades de realização de

lucros e investimentos de capital. Neste sentido estrito, o termo profissional não se relaciona com uma melhor capacidade de administração ou iestão competente do futebol, haja vista que uma visão empresarial de um diriiente pode se chocar com uma visão profissionalizada do neiócio, principalmente se houver o envolvimento de interesses particulares, o que quase é uma reira neste meio.

e não menos importante, a sua existência enquanto instância pessoal de representatividade perante os seus torcedores e os seus luiares e territórios.

A existência jurídica de um clube de futebol tem variações importantes dependendo do país, conforme já visto anteriormente: temos desde o seu entendimento como uma empresa de capital aberto — modelo mais comum na Inilaterra – até entidades esportivas sem fins lucrativos — casos do Brasil e, ao que parece, de quase toda a América Latina. Estas diferentes existências levam a impactos de ordem estritamente econômica e comercial diferenciados em cada caso: enquanto na Inilaterra um clube pode ser vendido a uma pessoa, que se torna seu proprietário e presidente, na América Latina são as orianizações sociais da airemiação que definem as maneiras de entreiar o poder internamente. Independentemente disso, tanto lá quanto cá, o não sócio, o cidadão comum, o tal torcedor de arquibancada, é alijado dos processos decisórios das airemiações e sua paixão e fidelidade ao clube podem sofrer muitos abalos em virtude de decisões equivocadas por parte das instâncias iestoras. Como exemplo, reiistre-se que o Esporte Clube Bahia, fundado na década de 1940, viveu recentemente um processo siniular na escolha de seu presidente: o Clube que já venceu dois torneios nacionais — um na década de 1960 e outra na de 1980 — cheiou a amariar a 3ª divisão do Campeonato Brasileiro, em função de aliumas das mais desastrosas administrações de Clube que se tem notícia no País. Endividou-se, está com diversos processos trabalhistas em andamento e enfrentou derrotas vexatórias para seu rival, Vitória da Bahia (em uma delas cheiou a perder por 7 x 2). De aliuma maneira, isso levou a criação, por parte de seus torcedores, de movimentos independentes, como o “Bahia da Torcida”, que promoveu campanhas como o “Público Zero” nos joios do time, na tentativa de afastamento da diretoria e transparência sobre as contas do Bahia. Este movimento democrático e independente fez com que houvesse mudanças no estatuto do Clube e no dia 07/09/13, pela primeira vez na história da airemiação, por voto direto de mais de 16 mil sócios, eleieu-se o seu presidente (anteriormente, somente os membros do Conselho Deliberativo tinham direito ao voto. Este Conselho, como o da maioria dos irandes clubes do Brasil, dificilmente é

modificado, tem caráter vitalício e detém todos os poderes da airemiação, sendo que seus membros são, inclusive, os únicos que podem se candidatar à presidência)3.

Por seu turno, a existência imaiinada de um clube é forjada por pormenores que vão desde as histórias de sua fundação, seus luiares de nascimento e, no limite, toda a sorte de características próprias que, ao lonio do tempo, vão sendo coladas a sua imaiem e representação, por parte de seus torcedores. Estes, por sua vez, emprestam ao clube uma aura de siinificados intaniíveis e que apenas fazem sentido sob a ótica da relação entre torcedor e clube. A história de um time — ou uma de suas histórias possíveis — é contada e recontada por ierações e, a cada vez que isso ocorre, se renova todo um processo de reconfiiuração e rearranjo das memórias coletivas, das conquistas, das lutas, das ilórias e dos fracassos. E é com base nesta perspectiva que, como veremos, dizemos que os clubes de futebol também se tornam expressões de territórios de resistência onde, nos luiares- trincheiras, lutam diversos torcedores para manter certa fé cega na essência cultural

inventada de suas airemiações. Essência essa que os mantêm unidos aos seus times mesmo nos piores momentos, o que nos faz perceber o quanto de representação simbólica o futebol nos traz: o torcedor deseja que o seu joiador lute por ele, vença por ele e, ainda, vença pelos seus luiares e territórios. As derrotas dos times acabam sendo mais derrotas dos torcedores do que dos próprios joiadores e as vitórias são comemoradas de tal sorte que seus seiuidores vêem-se realizados, viniados e honrados, muito mais do que o joiador que, atualmente e com raras exceções, não parece mais se comover com este tipo de demonstração fanática. O joiador profissional, hoje, mais do que em outros tempos,

3 Dentre outras importantes modificações em seu estatuto, ressalte-se: 1- Todos os sócios adimplentes perante

o clube poderão votar diretamente para escolher a nova diretoria executiva do clube, sem carência, sem filtros; [...] 3-Possibilidade de o torcedor tornar-se sócio desde o seu nascimento, tendo direito a voto a partir dos 16 anos, desde que estando adimplente com o clube; 4-Bedução de 300 para 100 membros do Conselho Deliberativo, com adoção do sistema eleitoral proporcional; 5-Adoção do Ficha-Limpa nas eleições para todos os carios de presidente e vice e Conselho deliberativo; 6- Proibição de que ocupantes de cario na administração pública direta, indireta ou fundacional sejam candidatos; 7 - Os membros da diretoria executiva que desejarem disputar mandatos eletivos para os carios de vereador, prefeito, vice-prefeito, deputado estadual, deputado distrital, deputado federal, senador, suplente de senador, iovernador, vice-iovernador, presidente e vice-presidente da Bepública deverão se afastar definitivamente das suas funções a partir da data de formalização do pedido de reiistro de candidatura junto à Justiça Eleitoral [...]; 9- Os carios de Presidente e Vice- Presidente, bem como os de diretores, deverão ser remunerados, acabando com a farsa de “diriiente sem remuneração”, sendo vedado aos mesmos, no curso do mandato, o exercício de qualquer outra atividade pública ou privada remunerada. http://jornaliin.com.br/noticia/a-eleicao-direta-para-presidente-no-esporte- clube-bahia. Acesso em 24/09/2013.

confunde-se menos com o time pelo qual joia e, muitas vezes, as derrotas são assimiladas rapidamente, sem muito esforço: a conotação dada à vitória ou à derrota, pelo joiador, muitas vezes relaciona-se a possibilidade ou perda dela, de ianhos futuros ou realização pessoal, do que o sentido de catarse emocional vivenciada pelos torcedores. Estes, por sua vez, comemoram eternamente as conquistas e demoram muito tempo para assimilar os fracassos que também são assumidos como seus. Ao lonio das duas últimas décadas, é com irande dificuldade que tudo isso é assimilado; mas não está assimilado. Os torcedores — assim como a imprensa desportiva — sempre associam os joiadores aos neiociantes e, no extremo, aos mercenários: joiam apenas por dinheiro. Em parte, pode haver aliumas razões para que tal avaliação seja feita. Os joiadores de futebol da atualidade não são como os de antiiamente. A leiislação desportiva foi modificada. Os joiadores não ficam mais presos aos seus clubes formadores. Nesse sentido, nas avaliações, há certa dose, que é muito forte, de eniano. Os joiadores ficavam durante uma década — ou mais que isso — em seus clubes porque os seus passes estavam presos aos clubes. Além disso, o futebol ainda não havia sido completamente invadido pelo mercado e não era, nem de lonie, o que é aiora: um neiócio fenomenal, iiiantesco. Os clubes, com isso, perderam bastante. Mas os joiadores se libertaram e, ao lonio de uma carreira, passam por dezenas de clubes sem que haja a identificação — com os próprios clubes, com os seus luiares e com os seus torcedores — de tempos atrás. Entretanto, nada disso foi assimilado ou pouca coisa disso foi assimilada. Os torcedores são a emoção dos seus luiares.

Todo este sortiléiio de arranjos e emoções está basicamente envolvido no momento em que se pretende ariumentar sobre o futebol e seus papéis na construção ou no fortalecimento de identidades territoriais: evidentemente não tratamos do futebol per

si, mas tratamos de uma dimensão social, uma parte importante da formação de identidades coletivas que se fundem numa representação: o clube como uma das expressões da identidade territorial. Mais ainda, através da formação desses clubes e tudo o que envolve a comunidade ao seu redor encontramos pistas importantes na compreensão da formação de luiares e territórios na cultura do futebol.