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T ELEVISÃO E F UTEBOL

DUPLA DE CORAGEM

Após a conquista brasileira em 1970, ficou claro para a indústria cultural que o futebol era importante demais para atuar como coadjuvante na formação de um mercado consumidor amplo e nacional. A criação das Redes de Televisão se dá numa ainda incipiente ideia de identidade nacional em um País prenhe de transformações culturais, comerciais, industriais e demográficas por um viés modernizante em que as contradições serão cada vez mais ressaltadas. É nesse contexto que a criação das Redes de Televisão pode ter provocado mesmo a criação de uma nova cultura ou, ao menos, de um novo modelo social. A rápida industrialização de São Paulo e de grande parte do sudeste do Brasil, o crescimento veloz dos grandes centros urbanos, o peso da Ditadura que se dizia moderna no discurso — mas que, em essência, representava os interesses conservadores da elite brasileira — formavam o caldeirão político e social deste início dos anos 1970.

Desde o início da presente pesquisa, temos procurado apresentar a tese da existência de um centro e diversas margens/periferias no futebol brasileiro. Este centro está representado pelas cidades do Rio e de São Paulo. As margens e as periferias, por sua vez, estão representadas pelo restante do País. É na constituição do centro e de suas margens que se dá a formação desse modo de pensar o futebol no País. É na construção do centro e de suas margens que se dá a posterior cristalização ou sedimentação, no imaginário coletivo, da ideologia originária do centro; ou do que convencionamos chamar de uma cultura do futebol brasileiro. O papel da imprensa escrita e do rádio já foi destacado em seções anteriores e a televisão tem ocupado o centro de nossa preocupação neste momento. Contudo, não podemos perder de vista que o futebol é uma manifestação social, de caráter político, esportivo e cultural e que nunca esteve imune ou pairando

36“Ao longo dos últimos trinta e seis anos (1969-2005), a programação ficcional da Rede Globo vem se

afirmando como agente de construção de identidade nacional, em meio a um processo realizado de forma diferenciada segundo os diferentes contextos históricos, os formatos de suas programações e os seus autores. [...] Essa afirmação da nacionalidade se realiza de diferentes formas: pela linguagem, pela difusão de comportamentos e de hábitos, pelas referências culturais e históricas e pelo direcionamento do consumo. Em última análise, constituem-se como poderosos meios de criação e recriação de formas de percepção da nação que, em última instância, se tornam responsáveis pela própria organização social e sua construção imaginária” (KORNIS, 2011, p. 97).

sobre as histórias e os espaços onde ele se inseriu ao longo do tempo. Desta forma, a importância de acompanhar também o desenrolar de diversos fatos políticos, econômicos e sociais do Brasil, que não o futebol, facilita nosso trabalho de compreensão de sua popularização no País, bem como a interiorização de costumes, cultura e hábitos e dos clubes daquelas duas grandes cidades no imaginário coletivo de toda uma nação. A busca por um mercado nacional consumidor integrado passou, obviamente, pela tentativa bem sucedida de homogeneizar diversas dimensões da vida social, transportando os ideais das metrópoles para todos os lugares possíveis, em especial, através da televisão e de um programa atualmente bastante arraigado na família brasileira: a telenovela ou simplesmente novela37. Ela tem papel fundamental na formação cultural brasileira, bem como a popularização e interiorização dos clubes cariocas e paulistas de futebol através de suas históricas ficcionais, o que nos interessa sobremaneira, neste momento.

8 de junho de 1970. A torcida que lota o Maracanã prepara-se para assistir à final do campeonato carioca: Flamengo versus Botafogo. Duda (Claudio Marzo) vestia a camisa 10, a grande esperança de gol da equipe rubro-negra, entra em campo saudado pela assistência. Mesmo com os parcos recursos técnicos da época (se comparados aos atuais), a emoção é latente, graças à boa edição, às belas imagens e ao empolgante frevo de Renato Luís Lobo (Flamengo, Flamengo), interpretado por Maria Creuza: “Vamos descendo a ladeira, que a tarde é sol sobre a bola, esqueça o trabalho e a escola, vou ver meu Flamengo jogar, Maracanã em delírio, o drible me envolve, me arrasta, arquibancada me basta, o jogo já vai começar”. Como era esperado, o craque, um dos irmãos Coragem, decide a partida para o orgulho da sua cidade natal, Coroado, de onde saiu jovem para tentar a carreira de jogador (MELO, 2012, p. 554).

Estas cenas marcaram o início da novela Irmãos Coragem, da Rede Globo, inaugurando o futebol como tema de narrativas ficcionais. Além do mais, a televisão a partir desta época transforma-se, de certa maneira, em ponto de referência na constituição de um sistema simbólico por meio do qual a sociedade perceberá e elaborará uma cultura

37 Existem numerosos trabalhos acadêmicos preocupados em situar histórica e socialmente as produções

ficcionais da TV brasileira e do cinema. Para além dos autores referenciados aqui, sugerimos ainda: ALENCAR, Mauro. A Hollywood brasileira: panorama da telenovela no Brasil. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2002. COSTA, Alcir H. et al. A história da TV brasileira em três canais. São Paulo: Brasiliense/FUNARTE, 1986. HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ORTIZ, Renato. et al.

Telenovela: história e produção. São Paulo: Brasiliense, 1991. PEREIRA, Carlos A.; MIRANDA, Ricardo. Televisão

política. Escrita por Janete Clair, a novela teve assessoria de diversas pessoas ligadas ao esporte, como João Saldanha, que fazia a cobertura da Copa do Mundo de 1970 pela televisão. Essa produção procurou enfatizar diversos aspectos da sociedade brasileira da época. O roteiro lidou com temas como a migração do campo para a cidade — vivenciada, inclusive, pelo ator principal, que representava o rapaz que deixou a sua atrasada cidade no interior de Minas Gerais para viver os percalços de uma vida moderna e diferente na cidade grande, primeiro no Rio de Janeiro e depois em São Paulo. O roteiro também aborda a célula mater da sociedade, a insolúvel família patriarcal brasileira e todos os conflitos que daí surgem. Supõe-se que a ideia de incluir o futebol como tema resida no fato de se tratar de algo de interesse generalizado, como forma de buscar também a audiência masculina para o folhetim, mas sem tocar em assuntos, de certa forma, considerados tabus, como a emancipação feminina38:

[...] o fato é que a abordagem do esporte reforça os papéis sociais tradicionais. Trata-se de um mundo masculino, de negócios, rude, no qual as mulheres só entram numa condição subalterna. Se é esposa, deve se conformar com o espaço do lar e com a ausência do marido, sempre envolvido com seus compromissos profissionais (MELO, 2012, p. 560).

Ora, estamos diante da construção e manutenção de valores sociais, estéticos e culturais através da televisão e, neste caso, por meio do seu programa de maior audiência. A criação das redes de televisão pelo Brasil afora e a massificação da produção39 carioca ou paulista para o restante do Brasil nos leva a crer que a interiorização dos clubes destas cidades, em especial Flamengo-RJ e Corinthians-SP, também pode ser colocada no mesmo processo. Na obra ficcional citada, o personagem principal faz menção a fatos reais, acontecidos com jogadores de verdade que foram amplamente divulgados pela imprensa. A transferência, a venda do jogador Duda, do Flamengo-RJ, para o Corinthians-SP deveu- se a fatores reais, de dificuldade de gravação de cenas no centro de treinamentos do

38 “Outra hipótese aventada para explicar a introdução do futebol na trama de Janete Clair seria sua

preocupação com a temática rural da novela: o público se sentiria atraído? Assim, ao redor do velho esporte bretão constituiu-se um núcleo urbano, que, a propósito, servia bem para marcar os choques entre o moderno e o tradicional, [...] um tema candente no país daquela década. Como de costume desde o século XIX, uma vez mais o esporte foi mobilizado para expressar urbanidade, progresso, modernidade” (MELO, 2012, p. 560).

39 Produção jornalística ou ficcional, não importa, haja vista que ambas se misturam e se confundem na

Flamengo-RJ. Entretanto, no âmbito da novela, é evidente que histórias foram criadas: o que se explorou foi a tentativa de ganhar dinheiro com um jogador sem condições físicas de exercer a profissão, fato comum nas constantes transações do futebol envolvendo compra e venda de jogadores profissionais.

Irmãos Coragem não foi a única: depois dela tivemos diversos casos da participação do futebol em telenovelas, umas mais explícitas, outras menos, mas em algumas delas, como Vereda Tropical (1984) e Suave Veneno (1999), cabe o seguinte registro40:

No caso do futebol, não poucas vezes os personagens se confundiram com a “vida real”. Nos momentos que antecederam uma partida entre o Flamengo e o Paraná, pelo Campeonato Brasileiro de 1999, quando foram gravadas algumas cenas de Suave Veneno (de autoria de Aguinaldo Silva), Rodrigo Faro, representando o jogador Renildo, percebendo a empolgação dos torcedores (que gritavam o nome do personagem), de forma improvisada entrou em campo e chutou uma bola ao gol, sendo efusivamente saudado. Ao final, o clube carioca foi derrotado, os rubro- negros, de forma provocativa, pediram a entrada do “craque da novela” no time. Caso semelhante já ocorrera antes com o personagem Luca, interpretado por Mário Gomes em Vereda Tropical (Carlos Lombardi, 1984/1985). Algumas cenas foram gravadas numa partida do Campeonato Brasileiro (Corinthians x Vasco). Na ocasião, quando Serginho Chulapa marcou o segundo gol do clube paulistano, o ator/personagem invadiu o campo, comemorando com os jogadores, recebendo, surpreendentemente, um cartão vermelho do controverso árbitro José de Assis Aragão (MELO, 2012, p. 557).

É interessante notar a mobilização dos torcedores/telespectadores com os rumos dos personagens. Cria-se um universo mágico com atores e atrizes, mas a trama se desenrola de modo a criar uma falsa sensação de realismo e dificultando a este público

40 Bem recentemente a obra intitulada Avenida Brasil, que conseguiu recordes de audiência por parte da Rede

Globo também contava a vida de um ex-jogador de futebol do... Flamengo: “Tufão (Murilo Benício), ‘cria do bairro’, cuja carreira começou no clube local, tornou-se a grande esperança de vitória do Flamengo no Campeonato Carioca de 1999. A final do campeonato será disputada no mítico Maracanã, contra o Real Cruz, mobilizando os habitantes do [bairro] Divino, que de alguma forma se sentem representados pelo craque. Essa partida, inclusive os tensos momentos que a antecedem, atravessa o primeiro capítulo de Avenida Brasil [...]. As belas imagens (dos jogadores, da torcida, do estádio e da imprensa), os recursos de edição (alternando o que se passa no Maracanã, o que ocorre no bairro e outras tramas da novela que está sendo apresentada) e o uso da sonoplastia (inclusive há trechos narrados por Cléber Machado, um dos locutores esportivos da Rede Globo) contribuem para a construção de uma narrativa épica, uma estratégia comum nas iniciativas audiovisuais que incorporam/abordam o esporte” (MELO, 2012, p. 553).

uma percepção clara de onde começa e onde termina a ficção. Personagens leem jornais e comentam a situação política do Brasil ou fazem menção a fatos ocorridos e noticiados pela imprensa. Ainda há a edição de imagens de partidas envolvendo clubes cariocas para que se adequem a construção das partidas imaginárias jogadas pelos personagens. Tudo isso eleva o grau de fantasia na construção de sentidos, práticas e hábitos no cotidiano das pessoas em sua vida nos lugares. Ao admitirmos que a televisão criou um mercado consumidor nacional, na medida em que padronizou hábitos de consumo e necessidades, também podemos crer que ela fortaleceu a imagem dos times do centro do futebol brasileiro, na medida em que os tornou times nacionais, mesmo tendo características eminentemente locais, em especial, metropolitanas. O centro do futebol brasileiro, que não por coincidência também pode ser chamado de centro econômico e político do Brasil foi aqui devidamente cristalizado no imaginário popular e na cultura do futebol do país. A força deste processo é facilmente confirmada quando a TV Globo — há muitos anos detentora do monopólio de geração e transmissão das partidas do futebol nacional — preferencialmente transmite partidas do Flamengo-RJ ou do Corinthians-SP em cadeia nacional, em detrimento de outras partidas com potencial de importância maior.

Nos dias de hoje, é comum termos diversos jogos nos mesmos horários e a TV Globo escolhe qual irá transmitir em escala nacional e quais terão cobertura regional, através de sua rede de afiliadas. A alegação de que estes dois times capitalizam as duas maiores torcidas do Brasil e, portanto, a Rede Globo atenderia ao interesse da maioria, inverte a alegoria: transforma o resultado em processo, como se o fato de existirem mais torcedores destes times não tivesse nada a ver com as decisões — históricas e propositais — do próprio canal de televisão que, ao longo dos anos, sempre os tenham privilegiado em sua programação, em detrimento de quaisquer outros clubes. Além disso, a referida alegação opera outra transformação: a de simpatizante em torcedor.41

Mas ainda não terminamos neste ponto: como veremos em seguida, a televisão é responsável, também, pela naturalização destas disparidades de tratamento, na medida em que, frequentemente, escava o abismo econômico reforçado pelas absurdas diferenças de valores que são pagos pela transmissão dos jogos de Flamengo-RJ e Corinthians-SP em

41 Já é comum, no Brasil, de outras grandes emissoras de TV, a fabricação/transformação de brasileiros em

relação às outras agremiações, no caso do Brasil. Entretanto, também poderíamos nos referir aos super/clubes europeus como Barcelona, Bayern München, Real Madrid, Manchester United, dentre outros e seus primos pobres, de expressão mais local: Atlhletic

de Bilbao, La Coruña, West Ham United, Napoli.

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COMERCIALIZAÇÃO E A ERA MODERNA DO FUTEBOL

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NA TELEVISÃO E