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F UTEBOL BRASILEIRO : UMA LEITURA DAS COMPETIÇÕES

T ORNEIOS E TROFÉUS

Ao longo desta pesquisa, discutimos a formação do centro e de suas margens, desde a implantação e consolidação do rádio até a força atual da TV e do negócio bilionário que se tornou o futebol dito profissional. Além disso, expomos nossa interpretação acerca da utilização de algumas categorias geográficas — lugar, espaço e território — como forma de compreensão deste processo cultural: — o futebol. Encaminhamos, também, a importância do futebol — como temática da qual derivariam diversos objetos de pesquisa — para diversas áreas do conhecimento, na medida em que seu estudo propicia uma perspectiva que, se não nova, ao menos singular de nosso modo de vida na sociedade moderna.

É assim, pois, que ao identificarmos as tentativas de integração nacional através do rádio e da televisão, ao longo do século XX, seja por motivos comerciais ou políticos — e, sempre, o mais comum, a união dos dois — percebemos também a busca por uma identidade nacional, de base carioca e paulista, que tinha no futebol um de seus constituintes elementares. A transposição de valores sociais, advindos em especial da sociedade carioca, cosmopolita e efervescente, para praticamente todos os lugares do território brasileiro, fez com que a cidade do Rio de Janeiro ganhasse relevo no inconsciente coletivo da nação. Tal processo se produziu na mesma velocidade em que diversos territórios do Brasil — ressalvando São Paulo, especialmente —isolados uns dos outros, se tornassem relativamente invisíveis e impossibilitados de se mostrarem, cultural e socialmente, como elementos formadores de uma identidade nacional que se constituía.1 Os processos se davam de forma simultânea: a ampliação da visibilidade de Rio e de São Paulo; o relativo sombreamento de vários espaços do território nacional.

Dentre os valores e traços culturais mais importantes exportados de um lugar para outro, ampliando seu território de domínio (por si só uma redundância, já que a ideia de território se liga ao domínio, à posse), o futebol e, com ele, os clubes, foram bastante

1 Muito da literatura que trata das desigualdades socioeconômicas no Brasil nos diz que os referidos processos

utilizados. Se, de certa forma, podemos dizer que isso já foi devidamente tratado em outras seções desta pesquisa, resta-nos, ainda, uma tarefa: selecionar e discutir diversas competições, ditas nacionais, extintas ou não, que ocorreram principalmente a partir de meados dos anos de 1950 no Brasil e que, em nosso entendimento, vem revelando a supremacia do centro que se expressa através de Rio de Janeiro e de São Paulo. Entretanto, tal supremacia — representada pelo número de títulos conquistados, deve ser criticamente avaliada. É bastante evidente que os clubes de Rio e de São Paulo, ao longo da história — e, particularmente, nesse período sob leitura —, sempre tiveram as melhores condições para a estruturação de times quase sempre — mas, nem sempre — mais bem estruturados e mais competitivos. Mas os motivos das inúmeras conquistas não estão exclusivamente ligados às suas melhores condições. Em grande quantidade, muitas delas carregam a imensa desconfiança de muitos e, para muitos outros, elas são a expressão de que algo, estrangeiro ao mundo do futebol, interferiu favoravelmente aos clubes de São Paulo e Rio de Janeiro. Diante de tantas desconfianças — algumas delas ultrapassam a desconfiança —, existem muitos torcedores de futebol que, de forma convicta expressam algumas ideias que se equivalem aos seguintes dizeres: o poder político e econômico, os interesses de patrocinadores, a atuação dos árbitros: tudo isso faz parte de um jogo de futebol. E ainda acrescentam: os clubes fora de Rio de Janeiro e de São Paulo deverão fazer o mesmo jogo e se preparar para isso. É, por um lado, manifestação da descrença e, por outro, a expressão de um desejo que atinge a todos na sociedade brasileira e que está plenamente integrado à cultura em termos amplos, não apenas à cultura do futebol: é preciso vencer, não importa como, não importa o preço.

Para isso, selecionamos as seguintes competições: Torneio Rio/São Paulo — Roberto Gomes Pedrosa / Robertão (1950-1970); Taça Brasil (1959-1968); Campeonato Brasileiro (1971-2013) e Copa do Brasil (1989-2013). Mais do que simplesmente apontar as irregularidades, seja na confecção e diversas alterações posteriores dos regulamentos de cada competição; erros de arbitragem em determinados jogos; esquemas de corrupção amplamente divulgados por toda a imprensa esportiva, envolvendo alguns jogos e às vezes até mesmo uma competição inteira; busca-se: reafirmar as pressões políticas, econômicas e ideológicas pelas quais passou e ainda passa o futebol brasileiro. Em nosso entendimento, historicamente os clubes exteriores ao centro (eixo Rio/São Paulo) são

sistematicamente prejudicados por arranjos corruptos que se dão fora dos gramados. Não se poderá dizer que se trata de uma leitura que manipula. Do mesmo modo, não se poderá dizer que se trata de um entendimento do mundo do futebol que, contaminado ideologicamente pelo seu lugar de fala, já está predisposto a dizer não ao centro. Afinal, o lugar de fala é o lugar de onde vejo o mundo. Belo Horizonte é central, não apenas do ponto de vista territorial, mas, também, do ponto de vista da própria performance vencedora dos seus clubes que conquistaram vários títulos de âmbito nacional e internacional. O propósito da pesquisa — já enfatizado — é construir uma ampla compreensão espacial da cultura do futebol no âmbito do território brasileiro.

As mencionadas manobras — que se tornaram corriqueiras e variadas — nos ajudam a compreender melhor uma obviedade: o futebol — dentro e fora dos gramados —, enquanto uma dimensão explícita de nossa sociedade, ou ainda um espelho dela própria, é facilmente corrompido na mesma medida em que corrompe. Por sua natureza esportiva, de competição, e pela forma como as pessoas se relacionam com ele, com seus clubes e por toda passionalidade e parcialidade envolvidas, dificilmente sairei ileso após realizar esta discussão, como, aliás, todos — raros — que se aventuram por tentar fugir do senso comum e do linguajar folhetinesco presente na maioria dos textos produzidos. Defendendo diversos interesses, às vezes inconfessáveis, não se admite, sob nenhum aspecto ou circunstância, que os clubes do centro do futebol brasileiro são os maiores beneficiados na história das competições e que muitas de suas conquistas (não todas, evidentemente) foram erigidas sobre as ruínas da dignidade e da honestidade, sem um mínimo de decência. Apontar esquemas de corrupção — ainda que amplamente noticiados — que redundaram em benefício deste ou daquele time, em arbitragens tendenciosas, em julgamentos políticos via justiça desportiva, é ser imediatamente rotulado de tolo e parcial. Não se discute a questão, apenas rejeita-a sumariamente, por vezes através de frases pré-fabricadas: “teoria da conspiração”; “juiz erra para todos os lados”; “todos os clubes aceitaram o regulamento no início da competição”; “só reclama porque perdeu” e por aí fora. Não se pretende aqui testar qualquer hipótese e construir, nos moldes convencionais, qualquer tese convencional, até mesmo porque isso fugiria totalmente ao escopo de um trabalho acadêmico, tal como penso o papel de crítica e de leitura da universidade. Projeta-se, no mínimo, o direito de se discutir e afirmar, com

conhecimento de causa, aquilo que nos propomos a fazer e como isso pode nos ajudar a melhor compreensão de nós mesmos e de nosso papel na sociedade moderna.