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A COMERCIALIZAÇÃO E A ERA MODERNA DO FUTEBOL : NA TELEVISÃO E FORA DELA

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A COMERCIALIZAÇÃO E A ERA MODERNA DO FUTEBOL : NA TELEVISÃO E FORA DELA

O negócio futebol é de uma magnitude que surpreende e apresenta contradições e semelhanças, numa dialética própria de funcionamento ao redor do mundo. Se sobrepusermos o mapa mundial das economias mais ricas ao mapa com a localização dos clubes mais poderosos, rentáveis e lucrativos, enxergaremos diversos pontos de convergência. Entretanto, a cartografia utilizada, nesta escala, também esconderia muitas contradições e diferenças que geram, no limite, diversas situações em que os territórios das periferias do futebol escapariam ao nosso olhar globalizado. Generalizar uma situação que pode parecer óbvia a princípio, como a centralidade da Europa e, às suas margens, a América Latina, tende a confundir mais do que nos ajudar a compreender o fenômeno atual do futebol comercial. A começar pela organização interna de cada país e as claras diferenças culturais que separam um continente de outro, principalmente em face das diversas revoluções políticas e econômicas pelas quais passaram a Europa e o restante do mundo ocidental em fins dos anos 1980 e início dos 1990. Se o futebol tem uma história quase tão longa quanto o capitalismo — quando nos referirmos a Grã Bretanha em especial — ao mesmo tempo ele não permaneceu imune aos acontecimentos sociais durante o século XX e início do XXI: as transformações no leste europeu, no sudeste asiático, a redemocratização de boa parte da América Latina, tem impactos que também transformaram o futebol e intensificaram sua mercantilização. Poderíamos colocar de um lado a organização do futebol europeu e de outro a da América Latina como exemplos importantes de como suas estruturas internas contribuem diretamente para uma inserção maior ou menor no mercado da bola, aliadas, evidentemente, a questões próprias de nações

desenvolvidas economicamente e daquelas em desenvolvimento. Neste exercício, poderemos aprofundar nossas discussões a respeito da formação cultural e política do centro do futebol brasileiro, fundamentalmente porque, de certa maneira, se vincula ao que aconteceu e acontece ao redor do mundo ocidental que efetivamente joga bola. Como nos explica Richard Giulianotti (2002):

Na maioria das nações europeias, os clubes de futebol são organizações de propriedade privada, em que um pequeno número de grandes acionistas controla a diretoria. No entanto, na Península Ibérica e na América Latina, os clubes são organizados como associações de esportes privadas, controladas pelos sócios que pagam uma mensalidade ou anuidade. Com isso, os clubes mantêm uma forte, ainda que arcaica, tradição de democracia econômica e política. Os sócios elegem os diretores do clube (inclusive o presidente) anualmente ou de dois em dois anos [depende do estatuto de cada clube em particular], e destituem os que relutam em satisfazer suas demandas. Por isso os clubes raramente beneficiam-se de grandes investimentos pessoais, feitos por proprietários em outros sistemas. Em vez disso, os diretores eleitos frequentemente usam sua posição no clube como trampolim para eleições políticas mais convencionais (GIULIANOTTI, 2002, p. 117).

No Reino Unido, “[...] o futebol foi uma das últimas indústrias a passar por uma mudança no modelo de ‘negócios familiares’ do século XIX [...] em que os proprietários e controladores são a mesma pessoa [...] para o modelo de ‘acionistas’” (GIULIANOTTI, 2002, p. 117). Desta forma, clubes com essa estrutura organizacional negociam suas ações em bolsa de valores e podem ser vendidos e comprados à revelia de seus torcedores que não detêm nenhum tipo de controle administrativo sobre os destinos da empresa para a qual torcem. Milionários árabes do petróleo ou novos ricos surgidos no leste europeu, de fortunas construídas sobre negócios muitas vezes nebulosos, adquirem clubes da Inglaterra, Ucrânia, Rússia, Itália, dentre outros, sem que precisem da anuência de nenhum torcedor ou fã de futebol42. No caso do Brasil, não existe essa possibilidade;

42 Talvez o caso mais conhecido seja o de Silvio Berlusconi, na Itália, proprietário do Milan, um dos clubes de

futebol mais tradicionais e conhecidos da Europa. Segundo Franklin Foer (2005, p. 162-163), “Embora já fosse um grande magnata da mídia antes de se tornar também do esporte, foi a compra do clube de futebol em 1986 que lançou Berlusconi à atual proeminência. Quando entrou na política em 1994, concorrendo a primeiro- ministro, foi em torno do futebol que ele construiu sua estratégia eleitoral. Em questão de meses, a Publitalia, empresa de publicidade de que é proprietário (parte de um conjunto impressionante de holdings), dedicou-se à tarefa de construir um partido para ele. Como base partidária, começou com os milhões de torcedores do

contudo, os clubes acumulam dívidas na casa de centenas de milhões de reais, principalmente fiscais e tributárias, e não há, ainda, como acionar seus antigos e atuais presidentes e controladores na Justiça, criando irresponsabilidades e desastres financeiros que se perpetuam nos clubes.

A globalização do capital e a queda de tipos alternativos de sistema social significam que é cada vez mais difícil resistir à “privatização” dos clubes de futebol no mercado aberto. [...] A globalização do futebol televisionado é refletida no alcance do Eurosport, o canal pan-europeu, que transmitiu em 12 línguas para mais de 170 milhões de telespectadores em 43 países durante os Campeonatos Europeus de 1996 (GIULIANOTTI, 2002, p. 118).

De continente a continente, praticamente o mundo inteiro e até em países isolados do restante do mundo por questões políticas, como a Coréia do Norte ou o Irã, mantém equipes de futebol profissional, mesmo que seja apenas a seleção local, nas disputas por vagas nas Copas do Mundo. A linguagem do futebol é surpreendentemente universal e globalizada, mesmo que suas origens tenham fortes raízes em culturas locais, reunidas, muitas vezes, em torno de comunidades pequenas e médias que cresceram muito com o passar do tempo (como veremos oportunamente, quando tratarmos dos lugares dos clubes ou os clubes dos lugares). O que não é surpresa é sua utilização em larga escala como um negócio absurdamente lucrativo, dentro e fora dos campos.

A escalada no volume de dinheiro envolvido com o futebol de meados dos anos 1980 para cá foi monumental. Para ter como referência o caso brasileiro, daqueles já citados sete milhões de dólares recebidos pela FIFA — por um contrato de quatro anos em 1978 —, passamos valores de mais de cem milhões de reais, por ano, apenas como cota de TV, pagos pela Rede Globo, para Flamengo-RJ e Corinthians-SP, pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de 2012 a 2017. Mas, antes disso, já em 1992 na

Milan. Converteu clubes de torcedores em sedes locais do partido”. No Brasil o ex-deputado Federal e ex- presidente do Vasco da Gama-RJ, Eurico Miranda, também fazia das suas, já que está afastado da diretoria do clube desde a eleição de Roberto Dinamite, ex-jogador do clube, para presidente: “[...] uma investigação promovida pelo Congresso tem documentado os delitos de Eurico Miranda. Em 1998, o Vasco recebeu 34 milhões de dólares em dinheiro do Nations Bank (atual Bank of America). [...] Dentro de dois anos, porém, essa quantia havia praticamente desaparecido. Cerca de 124 mil dólares tinham sido usados na compra de camisetas e material de propaganda para a última campanha eleitoral de Eurico Miranda. Doze milhões foram parar em contas de uma empresa das Bahamas” (FOER, 2005, p.106-107).

Inglaterra, a British Sky Broadcasting — BSkyB — empresa de comunicações com diversos canais dedicados ao esporte e de propriedade de Rupert Murdoch, recentemente envolvido em diversos escândalos de grampos e espionagens de seus jornais em Londres — pagou 191,5 milhões de libras esterlinas para transmitir sessenta partidas daquela temporada (GIULIANOTTI, 2005, p. 123)43.

Esse modelo mundial que envolve o negócio futebol recebe, obviamente, diversas críticas. A mais constante é a de que a TV controla tanto o tempo quanto o horário dos jogos — facilitando a inserção de intervalos comerciais e diversas partidas fragmentadas — bem como uma transformação (perfeitamente visível, já por agora!) dos torcedores em consumidores. As próprias competições têm o nome do patrocinador44 e a conquista do título, da taça de campeão se tornou, em si mesma, causa e efeito, atividade fim de qualquer clube de futebol, numa verdadeira adoração ao bezerro de ouro mercantilizado e reificado no troféu (com a excelente vantagem de valer apenas por um intervalo de tempo, já que as competições repetem-se ano a ano, quase que irrevogavelmente). Conforme nos explica Gilberto Agostino:

Com tal escalada frenética, não foram poucos os especialistas que apontaram para os perigos desse processo ininterrupto de espetacularização do futebol. Talvez o mais evidente de todos seja a transformação do esporte não só em exercício de produtividade— cronometrado, ranqueado, tabelado —, como também em um manufaturado tecnológico e, portanto, mero produto de propaganda, exigindo-se dele e de seu público respostas que já não estão no jogo em si, mas no mercado, na televisão ou na rede (AGOSTINO, 2002, p. 267).

Diversas são as empresas de consultoria e até mesmo jornalistas esportivos que entendem que o futebol deve se tornar, do início ao fim, um negócio como qualquer outro e o torcedor deve ser tratado como cliente, invocando, inclusive, o Estatuto do Torcedor.

43 “A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) anunciou nesta quarta-feira que assinou contrato de patrocínio

com o banco Itaú para a seleção principal e também as categorias de base, além do time feminino. O compromisso terá seis anos de duração, segundo o site oficial da entidade, e cobrirá o período da Copa do Mundo de 2014, que será realizada no Brasil. O valor total, não declarado, deve chegar a US$ 90 milhões (cerca de R$ 197,5 milhões)”. http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u459031.shtml. Acesso em 22/10/2008.

44 Temos a Copa Bridgestone Libertadores; a Copa Toyota de Clubes; o Campeonato Mineiro Chevrolet; a

Desta forma, é o que se diz: todos sairiam ganhando: os clubes, pois teriam gestões empresariais e arrojadas, transparentes, atraindo patrocinadores; os torcedores — ou sócio torcedores ou clientes torcedores — porque teriam benefícios, como assentos marcados nos estádios, conforto e segurança e os títulos que sua equipe certamente conquistaria. Um desses estudos aponta os caminhos necessários à transformação do futebol brasileiro e os clubes em super/clubes globalizados, conforme se vê na Figura 04.

O que não parece ser um problema para todas estas consultorias e diversos especialistas é uma questão ética muito simples: poderia um patrocinador interferir nas competições fazendo com que seu clube seja beneficiado45? Ou, ainda, o patrocinador poderia interferir diretamente nas escolhas e no gerenciamento dos clubes e do futebol, em geral? Em outros países isso comprovadamente ocorreu, conforme relata Richard Giulianotti (2002, p. 128):

No México, a Televisa dominou os jogos internos desde 1969 e teve papel importante na atração das finais da Copa do Mundo de 1986 para lá. A Televisa controla três grandes clubes da nação, mantém os direitos das partidas da seleção nacional e é dona do estádio Azteca. Em meados da década de 1990, considerou-se que a seleção foi manipulada pela empresa. O manager do time mexicano, Bora Milutinovic, foi favorecido pela Televisa; a simpatia foi retribuída em parte por sua curiosa recusa de selecionar o principal artilheiro da nação (Hermosillo), que jogava por um clube de propriedade de uma rede concorrente.

Recentemente, o futebol brasileiro assistiu a uma grande disputa pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro, no período de 2012-2017. A Rede Globo, detentora dos direitos há bastante tempo protagonizou um dos maiores ataques a independência financeira e autonomia de pensamento dos clubes no Brasil, forçando-os, todos, a ficarem de joelhos frente ao seu poderio econômico. O caso é grande e muitas vezes confuso, mas resumidamente podemos dizer que a televisão — leia-se Rede Globo — já se especializou na cobertura das competições nacionais de clubes, como o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil e os Campeonatos Estaduais. Ela paga um valor definido em contrato, para cada

45 “Inegavelmente, Juventus e Milan obtêm mais benefícios de arbitragens amigáveis que quaisquer outros

clubes italianos. E, de certa forma, isso não choca. Os clubes grandes, historicamente dominantes, parecem gozar universalmente do benefício da dúvida. [...] O Juventus é um brinquedo da família Agnelli, proprietária da Fiat e de uma percentagem substancial da bolsa de valores de Milão” (FOER, 2005, p. 151).

clube envolvido nas competições, pelo direito de gerar a imagem, transmiti-la e retransmiti-la para qualquer parte do território nacional, com exclusividade — eventualmente ela pode repassar uma ou outra partida para outras emissoras, como é o caso da Rede Bandeirantes, que transmite alguns jogos após negociá-los junto à TV Globo.

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