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C ONSCIENTE H UMANA

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 63-70)

A resolução da problemática da organização cerebral da atividade psíquica sempre foi motivo de debates e discussões entre os autores da psicologia, havendo primordialmente dois grupos, aqueles que defendem um localizacionismo estrito dos processos psicológicos no cérebro (uma determinada função está localizada em determinada área do cérebro) ou aqueles contrários a essa posição, defendendo, portanto, um cérebro como órgão indiferenciado.

Como já escrito, Vigotski iniciou a resolução deste problema com a proposição sobre a formação do sistema psicológico. Um pouco antes de seu falecimento, em 1934, escreveu um artigo especificamente sobre a localização dos processos psicológicos no cérebro afirmando que este é constituído por diversas partes sendo que essas partes estão inter-relacionadas e são inter-funcionais, permitindo assim o funcionamento em conjunto de áreas isoladas.

Isto não é ainda suficiente para explicar o funcionamento fisiológico. Assim, Luria, dando continuidade aos trabalhos vigotskianos, propõe um esquema de funcionamento do psiquismo fundado tanto na proposta vigotskiana de sistema psicológico quanto na proposição fisiológica de Peter Anokhin de sistemas funcionais.

Elaborando sua proposta dentro dos marcos da psicologia histórico-cultural, Luria entende o desenvolvimento dos sistemas funcionais como historicamente determinados em sua origem, resultado da atividade objetiva teleologicamente orientada e da comunicação social, sendo mediatas em sua estrutura e consciente e intencional em seu funcionamento. Destaca também que os sistemas funcionais “(...) se apóiam no

complexo das zonas do córtex cerebral que trabalham conjuntamente.”

(1963;1970/1979a, p. 40) 23

Tendo esses pressupostos como referência, Luria propõe que, para a efetiva resolução da problemática da organização cerebral da atividade consciente (e psíquica em geral), dever-se-ia realizar uma revisão radical da compreensão básica dos termos função, localização e sintoma (ou perda de função).

Iniciando pelo conceito de função, Luria refuta a compreensão de função como função de um órgão (ou parte de) particular. Propõe então – como fizera Anokhin – a investigação de um sistema funcional completo. Essa nova compreensão pode ser entendida como “A presença de uma tarefa constante (invariável), desempenhada por mecanismo diversos (variáveis), que levam o processo a um resultado constante (invariável), é um dos processos básicos que caracterizam a operação de qualquer

‘sistema funcional’” (Luria, 1973/1981, p. 13)

Observa-se, portanto, que a função passa a ser entendida como um sistema de composição complexa (com um conjunto de impulsos aferentes e eferentes) e assim mais caracterizado como um sistema funcional inteiro.

Com essa nova compreensão do conceito função, fez-se necessária a revisão do termo localização que, como já abordado, era compreendido principalmente como uma localização cerebral estrita ou então como não localizada, devido a uma compreensão de cérebro indiferenciado.

Luria propõe que as funções mentais devem ser organizadas em sistemas de zonas funcionais operando em concerto, sendo que cada uma operando em um sistema funcional complexo. O autor claramente remete-se à proposição vigotskiana que postulava que o cérebro funciona a partir de centros isolados interdependentes. Remete- se a seu mestre, quando também afirma que

(...) apoios externos ou artifícios historicamente gerados são elementos

essenciais no estabelecimento de conexões funcionais entre partes individuais do cérebro, e que por meio de sua ajuda, áreas do cérebro que eram previamente

independentes tornam-se os componentes de um sistema funcional único. (Luria, 1973/1981, p. 16)

E à Leontiev, na rica proposição dos “novos órgãos funcionais”

Isto pode ser expresso mais vivamente dizendo-se que medidas historicamente

geradas para a organização do comportamento humano determinam novos vínculos na atividade do cérebro humano, e é a presença desses vínculos

funcionais, ou como alguns denominam “novos órgãos funcionais”, que é uma das características mais importantes à organização funcional do cérebro humano em confronto com o cérebro animal. (Luria, 1973/1981, p. 16)

Explicitando melhor o termo, Vigotski, em seu texto sobre os sistemas psicológicos (1930/1997c), explicita um pouco mais esse processo. Segundo o autor, as funções psicológicas superiores são inicialmente interpsicológicas e caracterizam-se pelo adulto (ou outro indivíduo qualquer) ordenar à criança a ação a ser realizada. Aos poucos a criança começa a ordenar a ela mesma – em geral em voz alta – o que deve fazer, sendo, no entanto, esta ação ainda externa (extrapsicológica). Por fim, as funções

passam a ser intrapsicológicas, ou seja, o indivíduo elabora e comanda suas ações sem precisar exteriorizar seus pensamentos pela linguagem e, portanto, o controle e a regulação da ação são mediatizados pela linguagem internalizada.

O autor ainda diz que as funções intrapsíquicas caracterizam-se “(...) por dois

pontos do cérebro, que são estimulados a partir de fora, tem tendência de atuar dentro de um sistema único.” (Vygotski, 1930/1997c, p. 91)24. Essa proposição vigotskiana teve como uma de suas principais decorrências o conceito desenvolvido por Leontiev, nos anos 1940, de “novos órgãos funcionais”.

Para Leontiev, os órgãos funcionais, entendidos aqui como neoformações tipicamente humanas e ontologicamente sociais, não são fixados morfologicamente no encéfalo, mas necessitam dele para sua efetivação: “As faculdades do homem não estão

virtualmente contidas no cérebro. O que o cérebro encerra virtualmente não são tais ou tais aptidões especificamente humanas, mas apenas a aptidão para a formação de novas

aptidões.” (Leontiev, 1959/1978c, p. 257)

Tal como Vigotski, Leontiev (1959/1978c) ressalta que o cérebro é estimulado de fora, pelo mundo de objetos e fenômenos da realidade do homem, e criado pelo trabalho, fornecendo o que é verdadeiramente humano. Assim sendo, é pela apropriação dos conhecimentos elaborados historicamente pela humanidade que os indivíduos desenvolvem sua atividade psíquica complexa e sua personalidade.

Esse postulado já fora, como ligeira diferença, exposto por Marx nos Manuscritos de 1844, ao discutir a formação dos órgãos da individualidade, assim como nos Grundrisse (1857/2008), ao afirmar que

A natureza não constrói máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, self-acting mules etc. Todos eles são produtos da atividade humana; são materiais naturais transformados em órgãos de poder da vontade humana sobre a natureza ou participação destes na natureza. São órgãos do cérebro

Assim, o processo de investigação da atividade psíquica é o processo de

(...) determinar mediante uma análise cuidadosa que zonas do cérebro

operando em concerto são responsáveis pela efetuação da atividade mental complexa, qual a contribuição de cada uma dessas zonas ao sistema funcional complexo, e como a relação dessas partes do cérebro que operam em concerto na efetivação da atividade mental complexa se modifica nos vários estágios de seu desenvolvimento. (Luria, 1973/1981, pp. 18-19)

Observa-se, portanto, que, se se considerar que a atividade psíquica é um sistema funcional complexo com a participação de um grupo de zonas corticais operando em concerto e baseados numa complexa e dinâmica “constelação” de conexões, o sintoma decorrente da perda de uma função particular não indica sua efetiva localização no cérebro, sendo necessária a análise da totalidade do funcionamento psíquico/cerebral para o correto diagnóstico e entendimento do mesmo.

Realizada essa revisão, que sintetiza uma compreensão totalizante, multideterminada, dinâmica e ativa do cérebro, Luria postula que o encéfalo é constituído por três unidades funcionais, sendo a primeira para regular o tono cerebral e o processos sono-vigília; o segundo para obter, processar e armazenar informações, e o terceiro para programar, regular e verificar a atividade psíquica.

Os processos psicológicos em geral, assim como a consciência são atividades decorrentes (não em sua origem) do funcionamento em concerto dessas três unidades funcionais, sendo que cada uma é responsável por um aspecto do desempenho desses processos.

Cada uma dessas unidades básicas exibe ela própria uma estrutura

hierarquizada e consiste em pelo menos três zonas corticais construídas uma

acima da outra: as áreas primárias (de projeção) que recebem impulsos da periferia ou os enviam para ela; as secundárias (de projeção- associação), onde informações que chegam são processadas ou programas são preparados, e, finalmente, as terciárias (zonas de superposição), os últimos sistemas dos hemisférios cerebrais a se desenvolverem e responsáveis, no homem, pelas formas mais complexas de atividade mental que requerem a participação em concerto de muitas áreas corticais. (Luria, 1973/1981, pp. 27-28)

É relevante ressaltar que parte considerável da obra luriana e de seus orientandos versava sobre a terceira unidade funcional, ou seja, aquela responsável pela ação intencional. Esse terceiro bloco circunscreve praticamente os lóbulos frontais e pré- frontais, estes mais bem desenvolvidos no Homo sapiens sapiens, sendo filo e ontogeneticamente determinados pelo trabalho e pela linguagem, e essenciais para a execução da atividade consciente.

O homem não somente reage passivamente a informações que chegam a ele, como também criam intenções, formam planos e programas para as suas ações, inspeciona a sua realização e regula o seu comportamento de modo a que ele se conforme a esses planos e programas, o homem verifica a sua atividade consciente, comparando os efeitos de suas ações com as intenções originais e corrigindo quaisquer erros que ele tenha cometido. (Luria, 1973/1981, p. 60)

2.3. SÍNTESE

Tem-se, em síntese, que o reflexo psíquico da realidade é a configuração da realidade para o sujeito, sendo o critério de verdade dessa configuração a prática social. Parte essencial dessa configuração é o reflexo psíquico estável, ou a consciência, que permite ao sujeito distinguir a realidade objetiva da subjetiva, assim como avaliar, regular e executar a atividade com conhecimento dos motivos e necessidades que a impulsionam.

Com o desenvolvimento do indivíduo há um maior desenvolvimento e interconexão das funções psicológicas superiores e, conseqüentemente, estruturação do

sistema psicológico, formando um sistema cada vez mais unificado, com essas conexões e relações com o mundo radicadas na vida dos homens.

O desenvolvimento de um sistema unificado é essencial para (e coincide com) a formação da personalidade e, assim sendo, para a própria ação voluntária e autoconsciente do indivíduo no mundo. Esse centro único para todo o sistema é desenvolvido na ontogênese e dá ao indivíduo a percepção totalizante do psiquismo, em seus aspectos biológicos e culturais.

A formação desse sistema dinâmico e o reflexo psíquico consciente da realidade estão relacionados e exigem a formação, no encéfalo, de um conjunto variável de conexões e de sistemas funcionais que operam em concerto, que auxiliam e possibilitam a atividade humana, observando que a qualidade e a complexidade da rede neural são determinadas pelas relações e apropriações que o indivíduo tem e, assim quanto mais rico o corpo inorgânico do homem, mais rica o suporte material (neural) de suas ações.

Não é exagero relembrar também que, como incessantemente afirmam os autores soviéticos fundadores da perspectiva histórico-cultural em psicologia, o cérebro não é o demiurgo do psiquismo; as origens deste devem ser procuradas nas relações que os indivíduos estabelecem com a realidade pela mediação da atividade objetiva e da comunicação social.

Nesses parâmetros que se buscará nos próximos capítulos investigar e elaborar uma psicologia histórico-cultural da memória ou, estendendo essa proposição, investigar as estruturas e desenvolvimento dos processos mnemônicos no conjunto da formação e atividade dos sistemas psicológicos e, para tal, investigar-se-á a produção da psicologia histórico-cultural soviética – suas concepções, formas de investigação e conclusões – sobre a memória.

C

APÍTULO

III. A C

ONSTRUÇÃO DE UMA

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 63-70)