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U MA V ASTA M EMÓRIA

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 187-191)

6.3.2.1 A P RIMEIRA S ÍNTESE

6.3.2.2. O S R OMANCES C IENTÍFICOS

6.3.2.2.1. U MA V ASTA M EMÓRIA

Sherashevski (S.) tinha já mais de trinta anos quando seu chefe, intrigado com a prodigiosa memória de seu repórter, sugeriu que fosse ao laboratório de psicologia na Universidade de Moscou para que sua memória fosse investigada. Foi nesse momento que Luria o encontrou.

Seguindo o padrão investigativo sobre memória, Luria aplicou diversos testes de memorização nos quais incluiu testes com números, palavras com e sem sentido, textos curtos e longos, e em todos eles S. memorizava todos os itens sem nenhuma dificuldade. Alguns desses testes foram replicados dias, meses e até anos depois de ter sido realizado e S. continuava lembrando de todos os itens.b Como conclusão das baterias de testes, Luria chegou à primeira conclusão: a memória de S. era praticamente ilimitada.

a Os títulos originais são respectivamente “Um pequeno livro sobre uma vasta memória” e “Mundo

perdido e recuperado”. Este segundo sem tradução em português.

b Há relatos que Leontiev e Luria também realizaram testes e investigações com S., assim como o cineasta

O próximo passo era investigar como ele fazia para memorizar tão facilmente e com tanta estabilidade as informações a ele passadas. Após várias sessões, Luria chegou à conclusão de que S. tinha um tipo complexo de memória, do tipo eidético-sinestésico. Cada palavra ou sensação era convertida por S. em imagens ópticas intimamente relacionadas a cores, cheiros, gostos ou sons característicos. Como, por exemplo, a voz de Vigotski era amarela e crocante e a de Eisenstein como um buquê tão belo que S. não conseguia prestar atenção no conteúdo de sua fala; ou o caminho para o laboratório de Orbeli tinha uma cerca que tinha gosto salgado e era áspera, com som agudo e penetrante.a

Era por meio dessa constituição sinestésica das informações que ele tinha do mundo que ele podia memorizar tão bem as coisas. Ele elaborava uma seqüência de imagens visuais que representava cada uma das palavras que ele ouvia ou lia e distribuía essa seqüência numa rodovia ou rua e então visualizava o material ordenadamente. Para evocar essas informações, ele então “caminhava” pela rua visualizando cada uma das imagens associadas às palavras enunciadas.

Quando ocorria uma reprodução errônea das memórias era devido a falhas na percepção dos elementos e não falhas em sua memória. S., nesses casos, visualizava um objeto erroneamente seja porque não ouviu ou leu claramente a palavra, seja porque dispôs a imagem em um lugar da rua de difícil visualização.

Ter uma memória como a de S., no entanto, têm suas desvantagens, tão grandes quanto sua capacidade mnemônica.

Durante o trabalho que desenvolvia com Luria, S. começou a trabalhar como mnemonista em shows pela URSS, sendo essa agora sua nova atividade e sua habilidade em memorizar estavelmente as coisas por longo tempo começou a lhe trazer

a Um rico relato sobre as impressões de Eisenstein sobre S. pode ser encontrado no livro “O sentido do

preocupações (e até mesmo tormentos), pois temia confundir as listas a ser memorizadas nas diversas apresentações.

S. não sabia esquecer.

Assim, foi necessário o desenvolvimento de estratégias para intencionalmente apagar as informações indesejadas da memória de S. A primeira delas foi apagar como se fosse uma lousa, mas esta técnica não deu certo, pois, segundo S., era possível ver as marcas do escrito anterior apagadas, o que o confundia ainda mais. Tentou ainda escrever as informações para não precisar memorizá-las; tentou ainda queimá-las depois para visualizar melhor que as estava apagando. Também não deu certo, o que gerava ainda mais angústia.

Por fim, ele encontrou uma forma de esquecer. S. se auto-sugestionava dizendo que o material desapareceria porque ele queria. E assim acontecia. S. intencionalmente desejava que o material sumisse e seu controle sobre suas percepções e memórias era de tal grau que elas simplesmente sumiam.

Mas S. tinha problemas mais graves que esse. Devido a sua memorização ser estritamente gráfico-visual tinha sérias dificuldades em trabalhar com conceitos abstratos. Luria narra que S. ficava bastante perturbado quando tinha que visualizar conceitos não visualizáveis, como infinito e nada; a transição do pensamento gráfico- visual para o abstrato usual na passagem da infância para a adolescência não foi vivenciada por S, o que lhe trazia sérios problemas para o entendimento da realidade.

Outro obstáculo que tinha e que lutava para superar era o próprio entendimento de frases ou períodos longos. Se lidos rapidamente, não era possível lidar com as visualizações e não obtinha o entendimento do todo da frase, pois as palavras colidiam umas com as outras; se lidos mais vagarosamente, ele começava a estabelecer relações entre as palavras (como conflitos entre as percepções de cada uma) que

impossibilitavam também perceber o todo. Era assim muito sofrido e desgastante para S. se concentrar e se apropriar das essências de leituras (orais ou escritas).

S também conseguia controlar os processos involuntários de seu corpo, como aumentar a temperatura da mão, pois imaginava que segurava um copo de água quente, ou esfriar, porque segurava um gelo; podia controlar batimentos cardíacos e coisas análogas. No entanto, se algum fator da realidade fosse diferente ou conflitante com aquilo que imaginava ficava sem ação.

Investigar a memória de S. era impossível sem estudar o impacto dessa memória em sua personalidade. Nessa situação foi possível observar o quão difícil deveria ser a compreensão da realidade por S. e o quanto sua vivência era conflituosa.

No último capítulo do livro, Luria analisa a personalidade de S. ou o impacto de sua memória em sua vida. Escreve Luria:

Era muito comum que as impressionantes imagens de S. não coincidissem com a realidade; com muita freqüência, tendo confiado nelas, descobria-se incapaz de lidar com as circunstâncias. (...) Era precisamente seu desamparo nessas ocasiões que, como tantas vezes ele se queixou, levava as pessoas a verem-no como um indivíduo estúpido, desastrado e um tanto desligado.

Contudo, sua compreensão instável da realidade e as implicações realistas de suas fantasias tinham um efeito ainda mais profundo sobre o desenvolvimento de sua personalidade. Pois ele vivia a espera de algo que, tinha certeza, cruzaria seu caminho, entregando-se, portanto, muito mais a devaneios e “visões” do que à praticidade da vida. (...)

Portanto, ele continuou desorganizado, mudando de empregos dezenas de vezes – todos eles “temporários”. (...)

Com efeito, seria difícil dizer o que era mais real para ele: o mundo da imaginação no qual vivia, ou o mundo da realidade no qual não passava de um hóspede temporário. (Luria, 1968/1999, pp.137-140)

Luria, mais do que investigar a memória de S., investigou sua personalidade, como ela se desenvolveu e o impacto de sua memória prodigiosa (e ao mesmo tempo tão fragilizada) em sua vida. Luria não analisou um processo psicológico isoladamente, buscando suas leis, assim como não buscou entender o sujeito holisticamente sem

apreender desse caso, informações relevantes para o conhecimento dos processos mnemônicos e do desenvolvimento da personalidade.a

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 187-191)