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M UNDO P ERDIDO E R ECUPERADO

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 191-197)

6.3.2.1 A P RIMEIRA S ÍNTESE

6.3.2.2. O S R OMANCES C IENTÍFICOS

6.3.2.2.2. M UNDO P ERDIDO E R ECUPERADO

O segundo romance científico de Luria foi elaborado a partir dos escritos de Zasetski (Z.), sendo significativa do texto decorrente deste. Luria fez a seleção dos trechos a serem transcritos e inserções para explicar o porquê daqueles acontecimentos, seja para oferecer uma explicação histórica, seja para dar uma explicação neuropsicológica.

O livro narra a história de Z., um jovem estudante de 23 anos, no quarto ano de escola politécnica, com aspirações de obter experiência prática em uma fábrica especializada.

Nesse período, ocorreu a invasão da URSS pela Alemanha nazista, havendo uma interrupção de todas as atividades cotidianas. Z., junto com outros milhares de jovens, foi chamado à defesa da pátria.

Z. tinha muitas habilidades práticas e forte noção espacial e, por isso, entre ouras coisas, logo ganhou posições dentro do exército, comandando um pelotão de lança- chamas. Em uma de suas incursões contra a milícia alemã na cidade de Smolensk, no ano de 1943, após o estouro de uma granada, foi ferido por um de seus estilhaços, que lhe causou uma profunda ferida na cabeça.

O ferido foi prontamente atendido pelos médicos locais, que procuraram estancar a hemorragia, evitando que o soldado morresse. Após a estabilização do quadro, ele foi removido para um dos hospitais de guerra montado nos montes Urais (provavelmente na cidade de Cheliabinsk), onde conheceu Luria, em maio de 1943.

a Quando publicado esse livro nos EUA uma das principais críticas foi a de que Luria não se ateve na

Z. teve diversas perdas cognitivas devido à lesão no cérebro. O primeiro dos sintomas relatados por ele foi a perda da memória, demorando um bom tempo para relembrar seu nome. Após dois meses, começou a recordar algumas palavras, mas como ele mesmo escreve:

“Minha cabeça era então um vazio absoluto. Não fazia mais que dormir, despertar, mas

não podia pensar, concentrar ou recordar nada. Minha memória – como minha vida – dificilmente parecia existir.” (Luria, 1972/2002, p. 09) 94 a

Também como conseqüência da lesão, Z. desaprendeu a ler, escrever e gesticular, não entendia perguntas simples e nem sabia nomear os objetos da realidade ou partes de seu corpo; não sabia mais somar, assim como não possuía mais pensamento reversível e não lembrava mais de atividades diárias, como, por exemplo, ir ao banheiro ou se orientar espacialmente (direita e esquerda, entre outros).

Por fim, Z. teve perda de parte dos movimentos do lado esquerdo de seu corpo e uma grave alteração em sua visão: conseguia enxergar somente com a metade direita da visão.b

A lesão de Z. atingiu a zona parieto-occipital esquerda de seu crânio e ainda devido à problemas de cicatrização e ao pós-cirúrgico houve mais danos em sua estrutura cerebral. Como resultado, desenvolveu-se uma grave lesão local irreversível e uma progressiva atrofia cerebral.

Inicialmente, como forma de reabilitação, tentaram inserir Z. no fabrico de sapatos. Apesar de todas as tentativas do instrutor de explicar a tarefa para Z., este não conseguia entender ou efetuar as operações. Até reconhecia os objetos da sapataria, mas não conseguia nomeá-los; sabia que já utilizara o martelo, mas não havia meios de acertar o prego.

a Todas as citações que aparecerem durante este item foram retiradas do relato de Luria sobre Z.

b É equivalente a uma televisão que na metade direita tem imagem e na metade esquerda não tem; era esse

Em sua volta para casa os problemas continuaram; ele era incapaz de ajudar seus familiares nas tarefas, pois se perdia em seu vilarejo e não sabia mais como fazer nada.

Em síntese, o fragmento de bala que penetrou em seu cérebro devastou seu mundo a tal ponto que já não tem sentido algum de espaço, não pode julgar a respeito das relações entre as coisas e percebe o mundo como quebrado em milhares de partes separadas. (p. 61) 95

Z. não se conformou com essa situação e se negou a continuar como analfabeto, voltando a estudar e aprender a ler e escrever, tendo professor e material especializados para recuperação de lesionados cerebrais.

Ler mostrou-se mais difícil que escrever. Para ler, tinha que ir letra por letra, palavra por palavra, devido ao problema de visão. Se fosse muito devagar não se lembrava do que leu devido aos problemas com a memória.

A área cerebral lesionada era responsável pela habilidade visual-espacial (necessária para leitura) e não oral-motriz, que ficou preservada e é imprescindível para a escrita. E foi com essa capacidade que ocorreu o ponto de viragem.

Para escrever novamente, Z. teve que, inclusive, re-aprender a pegar no lápis. No entanto, Luria, identificando que ele já havia aprendido a escrever e que as áreas oral- motrizes estavam intactas, utilizou o que denominou de “melodias cinéticas”, ou seja, de um caminho neural já estabelecido pelo indivíduo, e assim Z. voltou a escrever utilizando-se de automatismos desenvolvidos pré-lesão. Dessa forma, escrever foi um processo muito mais simples. Palavras curtas eram em geral escritas de uma só vez, enquanto que para as mais longas era necessário a divisão por sílabas. a

a Sobre as teorias e atividades recuperativas de escrita e leitura na URSS, procurar o principal livro de

Para re-aprender a ler com dificuldade e escrever mecanicamente, Z. demorou por volta de seis meses, e após esse período tomou a decisão de escrever um diário, como uma luta para recuperar o que ele havia perdido.

Durante mais de 25 anos Z. trabalhou diariamente em seus escritos, produzindo ao todo por volta de 3000 paginas. Havia vezes que conseguia escrever por volta de dez linhas ou meia página no máximo por dia, tamanha era sua dificuldade. Concomitante ao sofrimento para conseguir escrever, Z. tinha que enfrentar o fato de não conseguir ler o que escrevia, lidar com a dificuldade de se lembrar e com as coisas que ele lembrava, mas que não eram mais possíveis ou então eram indesejáveis.

Escrever para ele era uma atividade polimotivada. Era a chance de conseguir desenvolver novamente sua memória e linguagem, assim como era a própria razão de sua vida, de se sentir útil novamente. Para Z., escrever sobre sua vida e lesão era um auxílio para a própria ciência. “Sei que meu escrito pode também ser de grande ajuda

para homens de ciência que estudam como funciona o cérebro e a memória (psicólogos, neurologistas e outros médicos).” (p. 86) 96

Inicialmente Z. chamaria seu livro de “A história de uma terrível lesão cerebral”, mas decidiu dar outro título, mais representativo de sua trajetória: “Seguirei lutando”. Fica claro assim a construção de novas necessidades e motivos.

O maior problema de Z. foi a desagregação e desintegração de sua memória que inicialmente foi quase que totalmente perdida, mas que com o auxílio da escrita teve alguma melhora, principalmente em sua comunicação. No entanto, apesar de sua memória remota estar preservada e de, por meio da escrita, Z. conseguir evocar parte dessa memória, efetivamente pouco foi alterado, devido à maciça lesão em seu cérebro.

Sua memória não era somente empobrecida; era também limitada. Qual o diagnóstico?

Z., com clareza, responde em seus escritos o nome dado ao tipo de alteração que ele teve. Apesar de um pouco longa a citação é válido observar até onde foi o seu processo de recuperação:

Quando uma pessoa tem uma grave ferida na cabeça ou sofre uma enfermidade cerebral, já não entende ou reconhece em seguida o significado das palavras, nem pode pensar em muitas palavras, quando se trata de falar ou pensar. E vice-versa: não pode formar uma imagem de uma coisa ou um objeto quando o ouve mencionar, ainda que já conheça a palavra.

Devido a sua enfermidade, tampouco pode orientar-se no espaço ou perceber em seguida de onde provém um som. Sempre vacila, vai e vem antes de poder apontar com segurança (...). Como conseqüência de sua lesão e enfermidade, sua memória encontra-se destruída, nada pode recordar. Estas são as conseqüências de uma lesão grave na cabeça.

Tudo isto é o que eu denomino “afasia intelectual”. Uso a expressão para referir-me a tudo o que me impede de recordar e pronunciar palavras, visualizar objetos quando os ouço mencionar e entender um sem número de palavras em russo, que vinculam as idéias entre si e lhes dão sentido. Quando penso em meu passado – nos distintos hospitais a que os médicos me enviaram –, assim entendo minha desgraça. (pp. 137-138) 97

O diagnóstico de Z. foi correto. A afasia intelectual a que ele se refere também é conhecida como afasia mnésica ou nominativa, pois afeta o aspecto interno, semântico, da linguagem e se caracteriza pela dificuldade de recordar palavras, especialmente nomes de objetos.

Dois pontos devem ser destacados desse caso narrado e analisado por Luria:

a. assim como no caso do mnemonista Sherashevski, nesse caso Luria procurou

investigar e compreender o indivíduo em sua totalidade, não centrando somente naquilo que ele perdera, mas principalmente naquilo que ele tinha, que se tornou a pedra angular do processo de reabilitação.

Observe-se também que se buscou reorientar a atividade do indivíduo em sua totalidade, seus motivos, necessidades, emoções e sentimentos, e não somente focar estritamente a lesão. Mas nota-se que isso somente foi possível pelo domínio que Luria

tinha dos aspectos técnicos da estrutura e funcionamento do cérebro, assim como da compreensão de seu funcionamento.

b. o processo de recuperação de Zasetski por meio do trabalho com a linguagem escrita

vem reafirmar a proposição de funcionamento do cérebro e do psiquismo elaborado pela psicologia histórico-cultural, apresentado no capítulo 2 da presente tese, assim como apresenta praticamente o conceito de órgãos funcionais elaborado por Leontiev. Áreas do cérebro de Z. que não podiam ser conectadas “internamente” pelos neurônios, foram interligadas por meio de um estímulo externo, a linguagem escrita, possibilitando a rememoração de informações.

Nós, portanto, concordamos com a visão que a evolução, sob a influência das condições sociais, incumbiu o córtex como um órgão capaz de formar órgãos funcionais e que esta última propriedade é uma das mais importantes características do cérebro humano. (Luria, 1969/1980, p. 33) 98

Isso indica também que a elaboração teórica dos autores deve ser compreendida em seu conjunto e não em suas produções isoladas.

Por fim, nesse momento a conceitualização de memória de forma distinta daquela do momento anterior, observando mais a complexidade do sistema psicológico e dos sistemas funcionais. Para Luria

Aprender e entender significa absorver idéias que a memória conserva em forma sucinta, como uma espécie de resumo ou compêndio. Mais adiante pode- se reviver este conhecimento e ampliá-lo. É claro que é possível esquecer por um tempo alguns princípios de matemática ou da herança, mas esta informação “esquecida” volta com rapidez quando algo refresca as recordações. Os conhecimentos não se acumulam na memória como as mercadorias em um depósito ou os livros em uma biblioteca, senão que se conservam por meio de um sistema abreviado de codificação que cria um marco de idéias. Assim, tudo o que a memória tem retido nesta forma concisa pode ser revivido e desenvolvido. (1972/2002, p. 140) 99

No documento SANDRO HENRIQUE VIEIRA DE ALMEIDA (páginas 191-197)