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CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM NAS DÚVIDAS E INDAGAÇÕES

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 82-90)

2 VERTENTES DE ESTUDOS DAS AÇÕES E FLUXOS NAS SOCIEDADES

3.1. CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM NAS DÚVIDAS E INDAGAÇÕES

A perspectiva de elaborar aqui uma composição de fatores buscando perceber a dinâmica de catadores de materiais recicláveis em uma cidade específica, Passo Fundo (Mapa 1), localidade do interior do estado do Rio Grande do Sul (RS), pareceu-nos de grande importância. Isso porque, ao elegermos um espaço específico de trabalho, buscamos inserir-nos em determinado contexto e observar sujeitos concretos como mote de nosso trabalho de investigação. Assim,

mais do que qualquer outro aspecto, nossa atenção será desmistificar o caráter meramente dependente, residual e normativo que possa caracterizar os catadores no desenvolvimento de seus trabalhos vinculados aos rejeitos urbanos da cidade em destaque.

MAPA 1 – Localização do município de Passo Fundo no Estado do Rio Grande do Sul e na Microrregião de Passo Fundo

Fonte: IBGE, 2010.

Nesse momento da reflexão, o que desponta em nossa capacidade de raciocínio é, justamente, perceber in loco a dinâmica dos atores sociais, buscando, conforme destacado anteriormente, compor com originalidade uma análise que se estrutura a partir das ações e narrativas dos indivíduos, mediante suas experiências de vida e de trabalho. Diante dessa proposta, nossa percepção de pesquisador na confabulação das relações teóricas e empíricas estará em jogo por meio de nossas próprias disposições e experiências no campo de estudo, visto termos por perspectiva questionar as aparências e condicionarmos nosso olhar crítico na ordem da desconstrução do senso comum atrelado às trajetórias e aos trabalhos dos catadores.

Num primeiro momento, pode-se avaliar que a escolha da pesquisa se dê de forma aleatória ou sinalize apenas nossa intenção em otimizar recursos para sua investigação, visto que o campo de pesquisa se circunscreve a um determinado local em que habitamos, proporcionando maior acesso e constância à implementação do trabalho de investigação. Esse tipo de observação, porém, não alude às facetas, aos desafios e às armadilhas epistemológicas a que possamos estar sujeitos ao fazermos uma escolha por um objeto de investigação apenas de forma aleatória ou para melhor otimizar os recursos de pesquisa.7 No caso deste estudo, é muito importante entender os nexos entre nós (pesquisador), nossa história e nosso ambiente atual. Esses fatores, que podem ser encarados como singelas circunstâncias de uma pesquisa, são elementos que, em verdade, delineiam a abordagem da investigação, pois promovem a reflexão constante de uma pessoa que se coloca dentro de um processo social, participante nos diferentes âmbitos e relações que compõem a vida cotidiana em um município brasileiro, muito embora investigue um segmento social que não integra diretamente, mas que, por intermédio deste trabalho, busca compreender metodologicamente as relações que estabelecem mutuamente e na interface com a sociedade abrangente.

O estar longe e ao mesmo tempo perto do objeto investigado não é apenas um jogo de palavras lançadas ao acaso, mas uma possibilidade de intuição dos processos, ensejando de forma diferenciada a construção do conhecimento e o rompimento, na medida do possível, das pré-noções.

Embora Passo Fundo não seja nossa cidade de origem, vivemos nela um pouco mais de uma década, foi onde amadureceu nossa percepção em relação aos catadores de materiais recicláveis, percebendo neles aspectos importantes e relevantes ligados ao local em que se movimentam, principalmente na observação das formas expressivas vinculadas ao jeito de trabalhar, de ser e estar envolvido com a atividade da reciclagem, seja em sua forma integral ou esporádica. Aspectos esses, tratados mais adiante nesta tese, e que nos instigam a perceber como os

7 Pode parecer bastante cômodo investigar o local onde se vive. Realmente, algumas facilidades de observação e constância na atividade são elementos importantes para um pesquisador sempre atento aos fenômenos que o cerca. Porém, não esqueçamos da necessidade de afastamento e estranhamento que o pesquisador deve passar a ter, do cuidado que deve observar para implementar e focar sua análise, dirimindo sua atenção a ideias pré-concebidas ou a eventuais processos normatizadores. Isso envolve a necessidade do pesquisador se colocar perante e entre os fatos, buscando questionar-se permanentemente a respeito de suas ideias preconcebidas e formas de interpretação da realidade, o que sempre deve gerar o máximo cuidado epistemológico na análise dos fenômenos observados.

sujeitos se tornam heterogêneos e merecem ser levados em consideração a partir dos processos por eles incorporados e por eles dinamizados.

Nesse ponto, a cidade é um elemento de suma importância por possibilitar a esta pesquisa social uma visão mais integradora do universo dos catadores em suas vidas cotidianas e nos trabalhos que desenvolvem. Os catadores são atores em seus domínios mais restritos, no ambiente familiar e na comunidade onde moram. Mas também são sujeitos ativos que rompem suas fronteiras comunitárias e se articulam a outros espaços da localidade em que vivem, percorrendo as vias e artérias de um complexo estrutural e viário que podemos definir como espaço urbano. Em verdade, nosso propósito, desde o início da elaboração deste trabalho, foi romper a dicotomia entre espaço de moradia e trabalho, comunidade e sociedade. Âmbitos, caso divididos, cindem o ator em vez de promovê-lo em sua integralidade.

Nas vias desse urbano, enfim, é que nos reencontramos com a figura do catador e percebemos como esse ator emblemático, que transita nessa e em outras diferentes cidades do Brasil, torna-se um sujeito complexo e atento ao seu tempo e às circunstâncias das quais participa efetivamente.

Percebemos, dessa forma, mediante nossas vivências no local em que foi implementada esta pesquisa, uma gama de aspectos interessantes para serem analisados em relação aos catadores. Aspectos que talvez já tenham sido tratados de diferentes formas em outros trabalhos, relacionados a determinados grupos de catadores, inclusive. Porém, este trabalho, por sua perspectiva, busca articular seu interesse de pesquisa social envolvendo catadores de forma a endossar questões mais amplas relativas à própria história desses sujeitos em um determinado território de atuação, estabelecendo, por conseguinte, relações que digam respeito à própria origem social desses indivíduos. Estabelece, assim, uma articulação que retrata, por exemplo, a influência da cultura rural no meio urbano, a relação comunitária dos diversos grupos de catadores, bem como a relação dinâmica de ser catador ou estar provisoriamente exercendo esta profissão em um período determinado ou indeterminado de tempo. Ou seja, buscamos com este trabalho, essencialmente, construir uma análise das disposições dos atores catadores que tenha como pressuposto a compreensão de suas práticas locais, definidas culturalmente a partir de estruturas, fatos, circunstâncias, gostos, crenças, relações de gênero e gerações; enfim, mediante os aspectos que digam respeito às experiências sociais e

características apreendidas, sem buscar traçar um entendimento com tendência a homogeneizar a figura do trabalhador da catação nessa cidade. Como se poderá perceber, o estudo atravessa várias questões sem se fixar exclusivamente a uma delas, mas faz um recorte multifacetado, buscando entender suas articulações na composição das vivências dos atores envolvidos.

Um aspecto importante de nossa análise foi ressaltar os próprios aspectos que constituem e particularizam as múltiplas territorialidades de relações desenvolvidas pelos catadores, o que, sem dúvida, pode ainda possibilitar futuras comparações com outras realidades de trabalho dos catadores. Isso nos faz supor a importância de perceber-se a diversidade dos espaços, ambientes e, obviamente, dos próprios atores em contextos semelhantes e distintos. Assim nos parece ser possível entender como sujeitos se constituem parte das relações mais íntimas, por um lado, e mais abrangentes, por outro, em suas múltiplas modulações de relacionamentos.

Evitamos, outrossim, formular grandes generalizações quando nos reportamos às características dos catadores na localidade de Passo Fundo.8 Apesar deque elas possam existir, os catadores, evidentemente, pertencem a uma categoria de trabalhadores, principalmente urbana, que nos enseja a traçar elos que os qualifiquem e nos permitam entender seu trabalho e o rol de atividades executadas por eles. O que propomos aqui, todavia, é uma análise que vá além das grandes generalizações e nos diga algo a mais a respeito dessa categoria de trabalhadores, saindo das equações meramente estatísticas ou descrições abstratas, embora essas sejam, muitas vezes, fundamentais para estabelecer certas percepções a respeito dos sujeitos em destaque.

Nesse sentido, o trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável (2013), já nos traz uma importante sistematização de dados e informações a respeito dos catadores no Brasil e em regiões.9 Dentre os dados e informações reunidas, pontua-se, através dos dados censitários de 2010 (IBGE), a

8 Características do município de Passo Fundo, particularidades e especificidades, serão melhores descritas e analisadas no Capítulo 4.

9 O trabalho do IPEA estrutura-se em três eixos básicos para demonstrar a situação de catadores e catadoras de materiais recicláveis e reutilizáveis, assim divididos: 1. A cadeia da reciclagem e os desafios da coleta seletiva; 2. Os catadores de material reciclável no Brasil: organização econômica, mobilização social e políticas públicas; 3. Situação social dos catadores no Brasil.

existência de 387.910 catadores no Brasil, embora este dado seja autorreferenciado pelos entrevistados no Censo e, segundo o próprio estudo, pode expressar parcialmente a realidade, haja vista que os catadores podem omitir tal atividades pelo fato de não considerarem esta profissão como sendo a principal atividade que executam, por possuírem formalmente outra profissão, embora não a exerçam efetivamente, ou, até mesmo, por trabalharem de forma sazonal ou esporádica na atividade de catação, não a incluindo como atividade profissional regular.

Um aspecto importante do estudo do IPEA, que se baseia também em estudos de outros autores que trabalham com a temática, é frisar a heterogeneidade dos catadores, observar as regiões onde existem maior fluxo de catadores e as formas associativas e cooperativas que os reúnem. Perceber a heterogeneidade desses atores é um aspecto fundamental para qualquer trabalho que tente explorar esta temática, pois traz a possibilidade de ver os catadores como reflexos e como protagonistas das mais diferenciadas possibilidades de relacionamentos em contextos que os integram as suas atividades.

Igualmente, o trabalho do IPEA demonstra ser de suma importância ao destacar outros dados e informações. Traça um importante histórico dos principais processos e políticas implementadas no País que buscam reconhecer o trabalho dos catadores e sua distribuição em diferentes regiões da Federação. O caráter das questões levantadas pelo trabalho é bastante sintético e resumido, o que cumpre o propósito da equipe, pois situa de forma ampla o espectro da participação desse público e das suas principais problemáticas ligadas à questão ambiental e aos valores da sociedade ampla em que estão inseridos.

Por outro lado, embora tenhamos consciência de que o propósito do estudo e a sistematização de trabalhos incorporados por este quadro traçado pela Situação dos Catadores não visa aprofundar detidamente as particularidades, muito menos as singularidades das condições dos catadores, algumas afirmações nos parecem demasiadas pelo pouco aprofundamento do levantamento empírico empregado por esta pesquisa. Como exemplo, a pesquisa ratifica outro estudo do IPEA (2012) que declara que os motivos para a baixa adesão ao trabalho coletivo (associativo) dos catadores deveria ser creditado aos seguintes fatores: suposta autonomia daqueles que preferem trabalhar de forma individual, independentemente do trabalho em grupo; a desinformação quanto às exigências para constituírem uma cooperativa de trabalho; a falta de conhecimento técnico especializado; e por enxergar as

cooperativas como um agente externo a sua própria condição de catador. Inclui nesses aspectos a falta de relação de confiança e reciprocidade entre participantes de associações de trabalho, além da falta de tempo para esperar a maturação do empreendimento e de seus resultados econômicos. Isso porque os catadores passam por condições de extrema vulnerabilidade social e suas necessidades econômicas são muito prementes, devendo ser resolvidas de forma imediata.10

Acreditamos que esses são aspectos indicativos e possíveis de serem analisados e colocados em pauta; todavia, também acreditamos que tais aspectos respaldam apenas parcialmente a questão, não explicando definitiva e completamente a falta de uma maior disseminação e aderência ao trabalho cooperativado por parte dos catadores. O que nos dá margem para que sejam encontradas maiores explicações sobre esses fenômenos.

Acreditamos que é importante problematizar algumas indagações em relação a essas afirmativas, para que possamos compreender de forma mais substantiva estes e outros processos de organização do trabalho dos catadores, sejam eles associados a grupos de trabalho ou que exerçam atividades de forma independente a qualquer estrutura formal associativa.

Alguns questionamentos por nós formulados relacionam-se às explicações ratificadas pelo IPEA ou são de cunho próprio e original que vão se somando e problematizando as primeiras indagações: será que a autonomia da gestão do tempo e do resultado do trabalho do catador é apenas uma suposição que o faz manter-se apartado de experiências associativas ou é algo relativo às próprias exigências de vida e de trabalho? Ou seja, vincular-se a uma estrutura de trabalho, em certo momento de sua trajetória, não seria algo demasiado e impróprio ao seu estilo de vida, mesmo que estejam vinculados a uma cadeia produtiva de trabalho que os explore de forma aviltante individualmente? O que pode gerar esta percepção de autonomia, mesmo que restrita, e que leva a maioria dos catadores a trabalharem de forma independente, desligados de ações associativas? Ou melhor, será mesmo que, independentemente do trabalho associado formal, o catador trabalha sozinho, isolado de outros catadores e de uma lógica voltada ao trabalho coletivo? Como o catador divide o seu tempo de trabalho em relação aos demais

10 Segundo a fonte, apenas 10% de catadores trabalham de forma associada no Brasil, ou seja, 30.390 associados (IPEA, 2011), em 1.175 Cooperativas / Associações em todo o território nacional (PNSB, 2008).

aspectos de sua vida cotidiana e obrigações familiares? A família pode integrar-se ao trabalho de catação e existir certa divisão de atividades de trabalho a partir das características dos seus participantes? Quais os vínculos e as formas de trabalhos alternativos que os catadores executam e conjugam com o trabalho da catação? Os catadores são pessoas desinformadas quanto às exigências para integrar uma cooperativa / associação de trabalho? Por outro lado, quais os principais aspectos que podem influenciar os catadores a procurarem realizar o trabalho de forma associada? Como se relacionam e usam de suas táticas e estratégias para aproveitar ou determinar oportunidades nas ruas da cidade e nos grupos de trabalho associados? Como se desenvolve a noção de liberdade e de status social no lugar onde vivem e executam atividades laborais? Os catadores realmente não possuem conhecimento técnico e especializado para lidar com materiais recicláveis de forma mais organizada, dentro dos padrões exigidos pelas indústrias? Como se relacionam e buscam vantagens econômicas perante seus pares e aqueles que vendem o produto de seus trabalhos? Quais são suas dificuldades e facilidades para lidar e desenvolver a forma de atividade que executam? Falta mesmo tempo para os catadores articularem-se e desenvolverem uma atividade comum ou este tempo é fracionado com outras atividades que executam, além da catação? Não existem canais de confiança e reciprocidade entre os catadores ou são mínimos esses canais? O trabalho em família não estabelece relações de confiança e reciprocidade no trabalho? Qual a importância da família e das relações parentais para constituir- se um grupo de trabalho, formal ou informal?

Essas são algumas questões que destacamos a partir do estudo do IPEA e, de forma mais sistemática, com as quais pretendemos questionar certos pressupostos mediante nossas observações junto aos catadores em diferentes momentos de nossas experiências com este público. O que sempre nos faz pensar sobre o quanto é complexa a dimensão das relações humanas e de que não há explicações fáceis e infalíveis para entender determinados fenômenos sociais, muito menos que essas explicações estão desarticuladas entre si e de seus contextos.

Ligada a essas indagações, enfim, buscamos compreender, de forma mais sistemática, como estes sujeitos catadores se constituem e se movimentam no fluxo urbano e em suas relações. Por essa perspectiva, temos como prioridade estudar os fatores e as disposições dos quais os sujeitos se utilizam para buscar sua integração no espaço social que, geralmente, os renega e os estigmatiza por serem pessoas

que trabalham no lixo (MIURA, 2004). Por nossa ênfase, também buscamos compreender suas capacidades reflexivas, táticas e estratégicas, bem como interpretar suas lógicas subjetivas, plasmadas em seus contornos culturais construídos ao longo de suas experiências sociais. Podemos adiantar que grande parte dos catadores do município de Passo Fundo tem forte influência do meio rural, baixo nível de ensino formal (à semelhança do estudo do IPEA nesse quesito) e busca adaptar-se ao espaço urbano de uma cidade que possui um histórico bastante conflituoso ao lidar com seus dejetos e com a forma como eles são descartados em diferentes circunstâncias e épocas.

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 82-90)