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Reflexões sobre o contexto de ações e movimentos sociais

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 71-78)

2 VERTENTES DE ESTUDOS DAS AÇÕES E FLUXOS NAS SOCIEDADES

2.3. DIMENSÕES E ESTUDOS SOBRE A ATUAÇÃO DOS CATADORES

2.3.1 Reflexões sobre o contexto de ações e movimentos sociais

A ideia de que novos ou novíssimos movimentos sociais se estruturam e lançam suas estratégias por suas próprias, não exclusivas, capacidades de organização é acolhida por teóricos dos movimentos sociais no Brasil, dos quais se destacam as pesquisadoras Maria da Glória Gohn (2010) e Ilse Scherer-Warren (2011), com uma intensa e interessante produção acadêmica. Tais análises, cada uma enfocando perspectivas teóricas e empíricas próprias, buscam entender o fenômeno de certas ligações e reivindicações que consubstanciam lastros de ações coletivas, formando redes de interação, mais ou menos duradouras, embora diversas e com perspectivas de atuação particulares.

A percepção da existência de novos ou novíssimos movimentos sociais e ações coletivas são possíveis de serem observadas por suas manifestações, a exemplo dos movimentos feministas, indigenistas, ambientalistas, catadores de materiais recicláveis. Incluem-se a esses, a diversificada teia de movimentos comunitários, como os movimentos pela moradia, contra a violência no trânsito, pela melhoria do sistema de atendimento à saúde, contra a corrupção dos agentes públicos, pela melhoria do transporte urbano, entre outros. Por essa tendência, constroem-se, em uma malha de manifestações e formas de expressões, redes de

práticas, ideias e significados que reforçam identidades locais ou, simplesmente, reúnem manifestantes que reivindicam uma solução a um problema conjuntural em âmbito local ou mais abrangente. Algumas vezes o volume das manifestações ganha aporte de importância significativa e conecta-se a outras reivindicações, compondo estratégias mais amplas e de grande monta em suas articulações políticas e sociais; outras vezes os movimentos são transitórios ou desfeitos ao sabor dos fatos ou perda de propósito.

É interessante frisar, então, que o perfil reivindicativo dos movimentos e das manifestações sociais mudou nas últimas décadas, seguindo o patamar da diversidade e do caráter qualitativo dos manifestantes, saindo do círculo eminentemente formulado pelas reivindicações trabalhistas e sindicais de períodos anteriores, que davam certa unidade de classe às reivindicações econômicas e trabalhistas de períodos precedentes.

Na interpretação de Santos (2001), a possibilidade de movimentos contra- hegemônicos, ligados a culturas e a mecanismos identitários, torna-se aspecto em prol da arregimentação de esforços de segmentos muitas vezes abafados pelos poderes do Estado e de grupos privados discricionários, como poderes econômicos e políticos locais. Assim, o ambiente comunitário também ganha nova importância, possibilitando novas dinâmicas e entrecruzamentos de interesses que, em muitos aspectos, não ficam restritos somente ao ambiente comunitário, mas, de forma constante, podem fazer a interface dialógica com outros movimentos e com organizações que atuam nas mesmas ou em outras esferas territoriais.

Importante ressaltar, portanto, que uma maior abertura à interação global possibilita também alavancar a desenvoltura de estratégias contra-hegemônicas locais na direção de se expandirem frente à composição interativa dos encontros e diálogos produzidos em diferentes espaços. Assim, a importância do território, do espaço local, não é enfraquecida pela dinâmica da globalização. Pode-se pensar hoje numa perspectiva que enfoca a multiterritorialidade e a importância da articulação dos espaços em que atuam os atores sociais (HAESBAERT, 2010). Provavelmente os territórios também são reconstruídos mediante novas dinâmicas de interação. Atores sociais justapõem os espaços de seus alcances, interagem com outros planos dimensionais e revigoram-se politicamente ao enfrentarem outras forças que os interpõem, reformulando ações e redefinindo formas expressivas e identitárias.

Dessa forma, como afirma Gohn (2010, p. 124), o território local torna-se um “espaço ambíguo”, fragmentado em determinado ponto de vista pela complexidade dos múltiplos interesses, mas por outro lado reúne saberes e identifica pessoas, possibilitando frequentemente o esforço conjunto voltado à ação:

Consideramos que o território local é uma estrutura que oportuniza aos Sujeitos potencializar suas ações, porque é no território que surgem novas relações sociais, novas estruturas produtivas, alternativas à crise do modelo fabril aliada ao Estado Providência, até então vigentes. O território local das cidades é um espaço ambíguo: de um lado, fragmentado, objeto de disputas políticas, apropriações particularistas; mas, de outro lado, é também espaço de produção de saberes, registro de memórias e locus de identificações. Os movimentos sociais são fontes e processos de construção desses saberes sistematizados.

Observa-se neste contexto globalizado, de novas conectividades ligadas à conformação de novos grupos e movimentos que se estruturam para encaminhar suas demandas e propostas, a possibilidade de reações táticas e estratégicas com vistas à participação no cenário dos confrontos e das decisões políticas. A diversidade da formação e organização de novos grupos e movimentos sociais torna-se saliente, visto a heterogeneidade de formas e variedades de ações que acabam fazendo parte das relações de forças representadas na sociedade.

Algumas questões são realmente fundamentais para se entender esse fenômeno, como o viés relacional dos grupos que se somam para fortalecer ideias visando expressar maior capacidade política frente a outros poderes constituídos. Por outro lado, pode-se perceber que também a busca por segurança e conservação identitária e/ou de poder político podem provocar o confronto de tal maneira que leve certos grupos a se afastarem da própria arena do diálogo. Esse fenômeno provoca, em muitos casos, um relativo isolamento de segmentos sociais, reproduzindo características eminentemente comunitaristas e essencialistas (fundamentalistas) em seu modo de adicionar adeptos e constituir forças discricionárias. Apartados aparentemente do todo, pois, embora ideologicamente demarquem seus territórios restritos, fazem o contraponto a outros grupos, a outros movimentos sociais e/ou à sociedade abrangente, mantendo-se, paradoxalmente, ligados a eles como contraponto e diferenciação (BAUMAN, 2003, 2009; TOURAINE, 2003).

De qualquer forma, o espaço da cultura é estendido em contraposição a certa homogeneidade dos períodos anteriores, de arcabouços políticos e centralidades produzidas por projetos de unidades. Uma das formas desta nova condição é a

possibilidade de maior expressão dos indivíduos para poderem vincular-se a diferentes grupos sociais, podendo suas experiências relacionais se coadunarem a outras ações e atravessarem vários campos e horizontes de manifestações políticas e sociais. Em síntese, perante esse último aspecto, as condições de diálogos e afastamentos vão forjando novas práticas e ideias que se inserem a determinados contextos, dinamizando os relacionamentos e as ações dos atores sociais.

O MNCR, no Brasil, faz parte deste processo de certa divisão do poder do Estado e do apoderamento de um segmento da sociedade que busca reivindicar determinadas condições de trabalho na sociedade. Por essa condição, não podemos declarar que seja um movimento homogêneo e que não se funda a partir de realidades e culturas locais. Consoantes a esses aspectos, o Movimento Social dos Catadores internacionaliza-se e visa construir fóruns de discussão sobre a própria condição social dos catadores pelo mundo, buscando formular cartas de intenções e organizar estratégias de ações para tal segmento.3 Assim, em paralelo a outros movimentos, como o Movimento Ambientalista, nascido na década de 1970, o MNCR busca também margem de manobra e possibilidade de pautar seus interesses no fluxo das relações entre poderes que se entrecruzam, embora, particularmente, suas concepções e algumas práticas sejam diferentes de outros movimentos sociais em suas formas de organização e de atuação política.

Na trajetória deste processo, pode-se entender que a preocupação pelas questões ambientais do planeta também foi um fator desencadeante do próprio Movimento dos Catadores, angariando maior ascendência e legitimidade política por sua relevância ligada ao tema Meio Ambiente. Por conseguinte, os papéis das comunidades científicas e da sociedade civil foram fundamentais para chamar atenção aos gravíssimos problemas oriundos da industrialização acelerada e das ações de mercado desordenadas pelo mundo. Diferentes grupos, de distintas matizes ideológicas, destacam problemas ambientais e grandes desastres ecológicos pelo manuseio e exploração irregular dos ecossistemas, bem como produzem prognósticos quanto às condições futuras do planeta em relação aos seus

3 O Primeiro Congresso Latino-Americano de Catadores(as) aconteceu em Caxias do Sul / RS em 2003; o Segundo Congresso em São Leopoldo / RS, em 2005; e o Terceiro Congresso em 2008 em Bogotá / Colômbia, este último com representantes da Argentina, Chile, Peru, Brasil, Bolívia, México, Porto Rico, Costa Rica, Guatemala, Equador, Paraguai, Venezuela, Nicarágua, Haiti e Colômbia. Disponível em: <http://www.mncr.org.br/sobre-o-mncr/sua-historia>. Acesso em: 20 abr. 2015.

limites e prazos de regeneração dos sistemas ecológicos já abalados pela ação antrópica (FERREIRA, 2006).

A possibilidade de mudar o paradigma do desenvolvimento, levando em consideração as alterações e os limites dos ecossistemas do planeta, conservando o meio ambiente para as gerações futuras, pautou os discursos e ajudou a cunhar a concepção de Desenvolvimento Sustentável (LENZI, 2006), embora as concepções e os discursos tenham seus limites para generalizar práticas realmente eficazes.4

O processo de aplicação da proposta por um desenvolvimento sustentável, de certo modo, embora ainda se ressinta de maior efetividade, provoca ações e tem repercutido na sociedade. Alguns avanços das políticas públicas são visíveis, bem como algumas práticas são observadas nas sociedades. Um dos elementos importantes que chama atenção é a discussão da problemática do lixo urbano, algo que nos remete novamente a quem depende e trabalha selecionando e vendendo produtos descartados pela população em geral. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), no Brasil, através da Lei nº 12.305/10, vem contribuir para disseminar práticas e promover uma melhor equação de um dos grandes problemas da humanidade, o descarte de rejeitos (WALDMAN, 2010). A Lei “desafia” a todos os agentes da sociedade a pensarem na questão do descarte de materiais sólidos e a promoverem ações nesse sentido. Em relação aos municípios, a Lei institui em suas resoluções que eles deverão possuir um plano de gerenciamento (manejo) dos seus resíduos (prazo constantemente prorrogado para a sua implantação), sob pena dos municípios perderem repasses de recursos financeiros do governo federal. Observa a Política, também, que a inclusão de catadores nesse processo é fundamental, buscando, com isso, promover maior igualdade e melhoria nas condições de vida desse segmento da população que já trabalha diretamente com materiais descartáveis de forma precária do ponto de vista logístico e material.

Essa reflexão que concatena globalização, movimentos sociais, maior diálogo e abertura à participação social, organização política de atores em diferentes modulações relacionais e políticas públicas multiterritoriais, indica-nos maior espaço

4 A expressão Desenvolvimento Sustentável irá aparecer com maior ênfase, inserindo um teor moral e ético, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida também como ECO-92, Rio-92, Cúpula da Terra. O Evento, realizado em junho de 1992, na cidade do Rio de Janeiro / Brasil, reuniu mais de 100 chefes de Estado, além de representantes da Sociedade Civil, visava buscar meios de conciliar desenvolvimento socioeconômico com conservação e proteção dos ecossistemas existentes.

de liberdade e autonomia dos indivíduos vivendo em um panorama mais expandido e de novas possibilidades de interação. Panorama que reflete experiências múltiplas dos indivíduos que se tornam sujeitos frente a um mundo mais interativo, com novas ofertas e demandas, prazeres e desafios, muito embora eles já tragam em si atributos de subjetivação e participações sociais oriundos de seus meios culturais mais restritos, de seus valores e aprendizados talhados na história local e particular, ou seja, em suas experiências cotidianas.

Realça-se aqui, mais uma vez, a possibilidade de perceber os catadores de materiais recicláveis como atores sociais dinâmicos. Dessa forma, rechaçamos a perspectiva de observá-los apenas como elementos passivos em suas condições de excluídos socialmente e empobrecidos economicamente. Visto que o próprio conceito de exclusão social se torna algo muito relativo, pois é um conceito produzido na própria sociedade e que guarda uma série de ambiguidades e interpretações. Temos por perspectiva entender a exclusão como um elemento em permanente definição, ligado à própria ideia de inclusão, visto que determinados atores ora são incluídos e ora excluídos das relações que participamos direta ou indiretamente. Segundo Sawaia (2010, p.9),

[...] a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.

Entenda-se, aqui, “produto do funcionamento do sistema” como produto das interações que envolvem ações e estruturas sociais, aspectos complementares e relacionais que constituem uma realidade dinâmica e em permanente mudança. Não como uma ordem “calcificada”, monolítica ou natural.

A complexidade das relações entre atores sociais, de forma geral, e as dinâmicas por eles circunscritas e expandidas se dá, assim, pelo

[...] feixe de códigos, de procedimentos e protocolos, não normativos, não categoriais, sempre situacionais, práticos, relacionais e dos quais depende a passagem por essas fronteiras incertas, ao mesmo tempo em que, em cada situação, se negociam, se definem e redefinem os critérios do “certo” e do “errado”, do justo e injusto, os parâmetros do aceitável e os limites do tolerável (TELLES, 2010, p. 31).

Pelas linhas teóricas aqui salientadas e pelas observações que tivemos oportunidade de empreender no campo de pesquisa e que serão melhor sistematizadas nos capítulos posteriores, salientamos o quanto as práticas de catadores podem ser heterogêneas, seja em suas formas pontuais de trabalho e vida cotidiana ou naquilo que aspiram e idealizam. Uma questão importante que pode nos ajudar a entender determinadas lógicas e condições de trabalho dos catadores é a própria divisão entre aqueles que trabalham de forma individual (ou organizam a divisão do trabalho na esfera das relações domésticas) e aqueles que congregam esforços e se organizam formalmente em caráter associativo (cooperativas de trabalho). Esses dois âmbitos de organização do trabalho certamente podem ser relacionados a uma gama de outros elementos que dizem respeito a fatores que há algum tempo vêm recebendo atenção de pesquisas sociais, envolvendo aspectos que dizem respeito, direta ou indiretamente, às crenças religiosas, às relações de gênero, ao clientelismo, às origens e ao status de classes sociais (BRITES, 2000; MENAFRA, 2011), não se resumindo apenas ao caráter técnico do aprendizado e da importância do que seja o cooperativismo em sua forma clássica. Por si mesmo esta divisão já nos mostra um montante de questões que se relacionam às capacidades de trabalho e aos referenciais táticos/estratégicos, culturais e ideológicos das camadas populares. Assim como pode nos ajudar a perceber as manifestações e políticas públicas que intercedem nas ações e nas necessidades dos trabalhadores.

Evidentemente, nem tudo é distinção no âmbito da categoria social dos catadores. Os sujeitos, de uma forma geral, não são socializados de forma absolutamente igual, conforme buscamos deixar entendido anteriormente. Todavia, também podem ser classificados como um estrato social que possui características comuns, sendo uma delas a baixa formação escolar que os desqualifica para o mercado de trabalho formal, além do estigma que carregam, de forma muitas vezes não tão velada, de serem sujeitos de segunda classe, serem tachados como pessoas que trabalham com o lixo, com aquilo que outros sujeitos descartam e que não tem o menor valor de uso ou de troca.

Este é um espaço de trabalho que pode ser considerado aberto e ativo às capacidades dos atores em promoverem suas ações e construírem aportes sociais que lhes revertam em um maior respeito e importância no espaço social em que vivem. Por outro lado, também pode tratar-se de um espaço potencial de fragilização

do indivíduo, de maior opressão e estigma (GOFFMAN, 1988), de desigualdades multiplicadas (DUBET, 2003). Os caminhos nunca são de mão única, mas ambíguos, como já destacamos e como ficará mais reforçado ao longo deste trabalho de pesquisa, o que faz os atores serem, de certa forma, mais maleáveis do que possamos imaginar para suportar abalos relacionais e esboçar reações.

Dentro desse arcabouço teórico, somos levados a crer na heterogeneidade dos atores sociais em seus relacionamentos. E chamamos a atenção sobre a existência de fluxos e tramas relacionais variáveis que diversificam as ações sociais dos sujeitos mediante suas experiências, em suas trajetórias de vida cotidiana e de trabalho. Tal perspectiva é tratada também por um longo debate sociológico que busca entender a relação entre atores, sociedade e Estado (CORTES; LIMA, 2012). Particularmente, o Estado também deve ser visto como uma estrutura organizacional multifacetada e composta por sujeitos diversos, compondo um campo de conflitos de interesses e de fluxos dinâmicos de convergências e divergências. É por esta mesma fórmula que atores constroem redes de relacionamentos formais e informais, trazendo consigo seus hábitos sociais, perpassados ao longo de suas vivências, nas diferentes posições que assumem em lugares e fluxos sociais distintos em que atuam, construindo e reconstruindo práticas ao longo do tempo.

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 71-78)