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LIXO COMO FENÔMENO SOCIAL

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 90-99)

2 VERTENTES DE ESTUDOS DAS AÇÕES E FLUXOS NAS SOCIEDADES

3.2. LIXO COMO FENÔMENO SOCIAL

Conforme tivemos a oportunidade de observar, o problema da má gestão do lixo e seu gerenciamento na cidade de Passo Fundo é bastante antigo, atravessando décadas, tendo em vista os descartes irregulares pela cidade e serviços públicos deficientes constatados na linha do tempo. Observamos e exemplificamos isso realizando pesquisa no Arquivo Histórico da Universidade de Passo Fundo (UPF), em jornal comercial de grande circulação pela cidade, mediante reportagens realizadas a respeito da limpeza urbana das ruas centrais do município, no início dos anos 70 (ruas Morom e Bento Gonçalves), como ilustram as manchetes jornalísticas das figuras 1 e 2. Tal problemática aludida em reportagens através de décadas ainda perduram até hoje, como também pudemos visualizar e retratar pessoalmente, conforme foto (Fotografia 1) produzida na Av. Independência, também no Centro da cidade.11

11 A Av. Independência é uma importante via da cidade de Passo Fundo, paralela à rua Moron até certo ponto e em posição perpendicular à rua Bento Gonçalves no Centro da cidade, locais de grande fluxo de pessoas, onde comporta edifícios residenciais e comerciais, além bares, restaurantes, lojas de diferentes portes e uma completa rede bancária e demais serviços.

Figura 1 - Prefeitura não recolhe lixo em rua de área central de Passo Fundo, ano de 1970

Fonte: Jornal O Nacional, 13 de janeiro de 1970.

Figura 2 - Moradores da Rua Morom reclamam da sujeira em via pública – ano de 1970

Fotografia 1 - Sujeira na Av. Independência / Centro de Passo Fundo – abril de 2015

Fonte: acervo do autor – 3 de abril de 2015.

Observamos manifestações de indignação, protestos e reivindicações de segmentos da população de forma recorrente ao longo de décadas em relação à poluição sonora e à destinação de forma irregular do lixo urbano, inclusive como mote para impetrar pedidos de esclarecimentos e ações do Ministério Público, visando regular determinadas práticas no Centro da cidade, local onde há maior capacidade de articulação política dos moradores para tratar dessas e de outras questões que dizem respeito ao ordenamento urbano, como a alta incidência sonora e lixo disposto a céu aberto diante da intensa vida noturna em determinados espaços da cidade (ver ata de audiência pública no Anexo A).

Diante desse aspecto, os catadores dividem um espaço urbano que tem aflorado discussões sobre o regramento ambiental da cidade, principalmente no que concerne ao descarte de materiais jogados irregularmente nas vias públicas e de seus recolhimentos pelo poder público. Embora possamos avaliar que tais discussões possuam ainda um poder relativo em sua efetividade, pois perdura ao longo do tempo uma baixa preocupação por parte de uma variada gama de indivíduos que são descomprometidos com a limpeza e o ordenamento da cidade e de suas vias públicas, podemos verificar, ao transitar pela localidade e em seu

entorno, muitos descartes irregulares, seja de lixo orgânico ou de utensílios domésticos, como móveis, camas e eletrodomésticos (Fotografia 2). Da mesma forma, restos de materiais originários da construção civil, principalmente descartados em zonas mais afastadas dos bairros centrais da cidade (terrenos baldios, margens de cursos d’água, várzeas, etc.), abandonados provavelmente por empresas e profissionais do ramo da própria construção civil (Fotografia 3).

Alguns reflexos importantes dessa situação são a degradação ambiental de algumas áreas da cidade e o desconforto da própria população por esse impacto ambiental, tanto pela poluição dos cursos d’água como pelo lixo mal acondicionado ou espalhado de forma irregular em vias públicas.12

Fotografia 2 – Sofá e estrados de cama jogados na calçada no Centro da cidade de Passo Fundo

Fonte: acervo do autor – 3 de abril de 2015.

12Alguns depoimentos dos catadores registram que já encontraram aparelhos eletrônicos com plena possibilidade de funcionamento nas lixeiras da cidade, como notebooks, assim como roupas novas (com a etiqueta da loja), sapatos, utensílios para a casa. Esses materiais achados nas lixeiras ou largados nas ruas são, geralmente, aproveitados pelos catadores ou vendidos por eles, compondo, sistematicamente, a renda familiar do trabalhador. Uma catadora nos contou que abriu um brechó de roupas usadas encontradas no lixo ou doadas a ela para que uma de suas filhas trabalhe em casa, já que cuida dos filhos pequenos e não pode ausentar-se do lar. Ou seja, com o seu trabalho na rua, a catadora emprega sua filha em outra atividade, sem que essa deixe de dar atenção a seus próprios dependentes.

Fotografia 3 - Entulho de material da construção civil descartados em mata ciliar próxima do rio Passo Fundo

Fonte: acervo do autor – 27 de março de 2015.

Assinalamos, com isso, a possibilidade de pensar-se o quanto é ambíguo o processo de descartes de materiais numa cidade, da degradação ambiental à reutilização dos materiais descartados pelas pessoas, da valorização, desvalorização e revalorização das coisas (produção-uso-descarte-reuso).13 O que nos faz repensar a respeito do valor da materialidade econômica dos objetos e o quanto possa existir desperdício e aproveitamento dos recursos em função das práticas dos sujeitos e dos órgãos públicos. Percebemos, por parte dos poderes públicos atuantes no município e até mesmo por parte de instituições privadas e ONGs, um teor de propostas meramente reativas, paliativas e descontínuas frente aos problemas ambientais da localidade, principalmente no que diz respeito diretamente aos catadores de materiais recicláveis e o que envolve o gerenciamento do lixo urbano da cidade.

13 Entre outras possíveis fórmulas que estabelecem níveis de importância diferenciadas que dizem respeito às relações consoantes ao valor de uso e troca em sociedades e culturas distintas, sejam elas com maior viés no trato dos objetos pela dimensão mercadológica ou concernente a relações que prezam âmbitos de reciprocidade e distribuição de produtos e materiais disponíveis. Para este debate, dentro de um ponto de vista cultural, ver APPADURAI (2008).

Participando de alguns encontros e algumas reuniões de trabalho, na UPF, no Ministério Público (MP) e no Conselho do Meio Ambiente Municipal, observamos, por parte de representantes da Sociedade Civil e do Estado, um discurso que classifica, de uma forma geral, o segmento dos catadores como um contingente “problema” que deve ser “tratado” de forma específica e técnica pelas políticas públicas. Esses discursos trazem implícita uma noção de assepsia, de purificação do local, além de uma concepção assistencialista e de tutela com os segmentos mais fragilizados da população, inclusive de punição a determinadas práticas dos catadores.14 Para alguns segmentos da população ou representantes institucionais que atuam na cidade, os catadores deveriam ser retirados das ruas e tratados como elementos meramente residuais do modelo ideal de trabalho (empresa / funcionário). Tornar as ruas mais limpas e com fluxo dinâmico maior de veículos e pedestres deve compor a lógica do desenvolvimento econômico e social da municipalidade.

Nesse sentido, os catadores são resíduos de uma sociedade que produz resíduos. Essa é a lógica e a origem das práticas que os poderes públicos configuram junto com determinados segmentos da sociedade civil que pensam a cidade.

Diversas manifestações com esse teor de análise preconcebida homogeneízam a figura daqueles que trabalham com a catação na cidade, com pouca preocupação para buscar entender as circunstâncias que levam a maioria dos catadores a trabalhar nas ruas, pois se contextualizam parcialmente as condições e necessidades das pessoas. Os órgãos públicos da administração municipal desenvolvem, em seus atributos, o tratamento do “problema” sempre em caráter emergencial.

14 Há um debate direcionado na cidade quanto ao uso, por parte de catadores e outros profissionais, de carroças puxadas por tração animal para o transporte de materiais. Inclusive, segundo depoimentos de alguns catadores, já houve apreensão de carroças na cidade pela Prefeitura Municipal. Hoje os cavalos são observados e usam um chip inserido em seu corpo para identifica- los. Outra questão muito em voga é o acumulo de “lixo” por parte dos catadores em suas residências. Isso é identificado pelos órgãos municipais como uma prática irregular, ou seja, de produção de pequenas áreas de lixo. Usando a rádio da UPF, a Prefeitura pede para que a população denuncie o lixo irregular acumulado nas áreas do município, tal chamada tem apoio do Ministério Público Especial e do Grupo Ecológico Sentinela dos Pampas. Evidentemente que esta preocupação da Prefeitura transcende o acúmulo daqueles materiais reunidos e guardados pelos catadores em suas residências para a sua posterior venda, mas pelos discursos proferidos em reuniões, há uma preocupação bastante específica em relação a estas práticas, por aquilo que denominam “pequenos depósitos de lixo espalhados pela cidade”, o que, de certa forma, culpa os catadores por esta ação irregular, devendo serem denunciados quando a esta prática.

Percebemos, em síntese, desde o início de nossa inserção no campo de estudo, a composição de dois grandes universos representacionais da realidade em voga: o dos catadores e daqueles que se acham atingidos pelas práticas “irregulares” da catação. O que nos possibilita pensar nas relações entre poderes formuladas por esferas conceituais e valorativas diversas, que se configuram nas relações sociais, práticas e no jogo enunciativo que se constrói entre os sujeitos em suas alusões e enfrentamentos cotidianos, na base das sociedades.

A referência à questão do lixo urbano e do trabalho relacionado ao próprio lixo enseja, assim, duas posições de argumentação que ora se tensionam, ora se complementam, criando em determinados momentos um terceiro lugar de negociação, pois não há uma única dimensão expressiva de poder, seja ela física ou simbólica. Nesse sentido, as referências a Gilberto Velho (2013) também são sempre importantes a partir de seus estudos antropológicos pelas cidades, observando as relações entre poderes e dinâmicas particulares entre grupos com os quai manteve contato. Ao tratar de entender as trajetórias e vivências específicas por parte de indivíduos urbanos, Velho (2013, 82-83) afirma:

A possibilidade de partilharmos patrimônios culturais com os membros de nossa sociedade não nos deve iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e diferenças provindas de trajetórias, experiências e vivências específicas. Isto fica particularmente nítido quando fazemos pesquisa em grandes cidades e metrópoles onde a heterogeneidade provinda da divisão social do trabalho, a complexidade institucional e a coexistência de numerosas tradições culturais expressam-se em visões de mundo diferenciadas e até contraditórias. Sob uma perspectiva mais tradicional poder-se-ia mesmo dizer que é exatamente isto que permite ao antropólogo realizar investigações na sua própria cidade.

O discurso mais hegemônico, enfim, é aquele que trata a problemática dos rejeitos urbanos e da própria condição do catador mediante uma concepção técnico- instrumental, ordenadora de práticas administrativas das instituições que estão à frente da coordenação das ações municipais ou com grande margem de influência junto aos poderes administrativos do agente público municipal. Tal racionalidade prioriza a eficiência das manobras para retirar os dejetos das vias públicas da cidade. Para isso, algumas práticas são de suma importância, como o fornecimento de serviços terceirizados de empresas privadas ou por meio de iniciativas públicas, como o recolhimento e o transporte do lixo, afastando-o do meio da população.

Há poucos anos a estratégia da administração municipal de Passo Fundo era levar os materiais recolhidos das ruas para um aterro sanitário próprio, em Passo Fundo, ou de uma cidade vizinha (Marau / RS). Esse transporte acontecia pelo intermédio de empresas privadas contratadas pelo poder executivo municipal. Porém, com o esgotamento dos aterros sanitários locais e do embargo do Ministério Público em permitir que esses aterros continuassem recebendo o lixo da cidade, a Prefeitura Municipal de Passo Fundo (PMPF) organizou um mecanismo logístico que utiliza ainda o antigo aterro da cidade apenas como entreposto para que determinado volume de materiais seja triado por catadores de uma cooperativa local – Cooperativa de Recicladores Parque Bela Vista (Recibela). O que sobra da triagem ou aquilo que não teve a oportunidade de ser triado pelos catadores é alocado em caminhões maiores e levado para Minas do Leão / RS, município a 300 Km de distância, que possui um aterro privado que recebe lixo de diferentes municípios do RS, inclusive da capital gaúcha, Porto Alegre. Dessa forma, os catadores são funcionais a este sistema, pois separam materiais que não precisarão ser transportados até Minas do Leão, diminuindo o peso do transporte e, por consequência, seu custo. Nessa perspectiva, esses catadores (45 no total – novembro de 2017) são importantes para a eficácia da política municipal de gerenciamento do lixo urbano, assim como outros catadores que exercem atividades em outras três associações com as quais a PMPF também se articula para apoiar o transporte de materiais recicláveis para serem processados nessas associações.15

Nessa lógica, percebemos que também os catadores que trabalham de forma independente, sem associação formal de trabalho, são funcionais à limpeza da cidade e ao trabalho de gerenciamento do lixo executado pelo poder público, pois exercem autonomamente a subtração do lixo das ruas da cidade e, em última

15 Nas estruturas de trabalho, denominadas Cooperativa Amigos do Meio Ambiente (COAMA), Cooperativa Mista de Produção e Trabalho dos Empreendedores Populares da Santa Marta (COOTRAEMPO) e Associação dos Recicladores Esperança da Vitória (AREVI), a PMPF incentiva a atividade de seleção dos resíduos sólidos mediante uma cota em dinheiro para pagamento do transporte de materiais que são doados às associações por empresas, entidades e população em geral. Basicamente essas doações são agendadas diretamente com os catadores das associações, que vão buscar o material doado. Até pouco tempo atrás, a Prefeitura encaminhava alguns contêineres de lixo seco que estão dispostos na área central às associações, mas geralmente chegavam aos empreendimentos com muito material orgânico, o que dificultava o trabalho dos associados. A Cooperativa RECIBELA, todavia, recebe todos os tipos de resíduos domésticos encontrados nas lixeiras das residências e dos estabelecimentos, visto localizar-se no antigo aterro e ser um entreposto de materiais. Alguns desses materiais são selecionados pelos catadores e outros são realocados em outros caminhões e transportados para o aterro sanitário em Minas do Leão / RS. Descrevemos de forma sintética no Apêndice D algumas características das associações formais e um pouco de suas histórias.

instância, diminuem o peso do caminhão do lixo destinado ao aterro em Minas do Leão.

A ideia sempre em voga, segundo esta proposta hegemônica, é de que há necessidade de realizar-se um trabalho eficiente à população que paga seus impostos, não onerando demasiadamente os custos da operação. O custo e o benefício, assim, são sempre referências importantes para os agentes públicos, mas as referências aludidas aos benefícios do gerenciamento dos resíduos estão restritamente vinculadas à ideia do seu recolhimento e afastamento do meio social. Poucas são as referências que se preocupam efetivamente com o reaproveitamento desses materiais e o que ele pode gerar de rendimento levando em consideração o seu reuso e a geração de renda aos catadores. Ou seja, o lixo, segundo essa noção, é algo a ser gerenciado do ponto de vista de seu recolhimento, com relativa preocupação com o seu destino e reutilização.

Esta visão é sempre reativa às legislações ambientais e as possibilidades de ver-se livre do problema do lixo de forma mais imediata possível. Dessa forma, a “matéria-prima” do trabalho do catador é um problema, o catador também o é, embora sua relativa funcionalidade e ambivalência estejam sempre presentes, apesar de não ser ele que gerou o “problema” de resíduos no município.

A outra dimensão lógica conceitual de destaque deve ser aludida ao próprio catador, sujeito que faz o contraponto à dimensão anterior, meramente técnica- instrumental e voltada para os resultados de recolhimento do lixo. A dimensão racional dos catadores está mais vinculada ao caráter da vida prática cotidiana e dos valores circunscritos a seus grupos familiares e/ou comunitários. Este trabalho dará maior ênfase a essa última perspectiva à medida que formos destrinchando as fronteiras que nos separam e irmos buscando entender o trabalhador da catação. Não por sua simples funcionalidade vinculada ao sistema de gerenciamento do lixo de uma cidade, mas a partir do entendimento de que ele é elemento social dinâmico e heterogêneo, como referência social mediada por um cabedal de valores e disposições culturais amealhadas de suas próprias vivências e experiências de vida. Essas são as coordenadas epistemológicas que pretendemos produzir aqui e, de certo modo, nos ajudam a questionar percepções do mundo que nos cerca, comparando-as e relativizando-as para responder nossas indagações e permitir percebermos mais nitidamente a complexidade de nossa sociedade e o que nos envolve.

De qualquer forma, já podemos sinalizar que os catadores realmente buscam galgar o seu espaço na sociedade, vinculando seus próprios pressupostos e assimilando outros. Podemos constatar que, de fato, um terceiro campo de negociação e luta se forma, compondo e interligando as perspectivas que destacamos.

No documento ARI ROCHA DA SILVA 2018 (páginas 90-99)